A propósito dos acontecimentos do Martim Moniz, tem vindo a ser enfatizada, como constituindo fator de garantia da legalidade da ação policial, o seu acompanhamento presencial por magistrados do Ministério Público (MP).
Tal tipo de ações de prevenção e a presença nelas de magistrados do MP vêm reguladas em vários diplomas legais, designadamente: Regime Jurídico das Armas e Munições (Lei das Armas), Lei da Segurança Interna, Lei da Política Criminal e, mesmo, no próprio Estatuto do MP.
Sobre essa matéria, é ainda necessário ter em conta o que se dispõe no Código de Processo Penal (CPP) sobre os poderes, competências e funções desta magistratura, designadamente no que respeita à emissão de mandados busca e detenção.
Por outro lado, e para que não restem dúvidas, ou confusões, a Lei das Armas – que, neste caso, foi o diploma legal invocado pela Polícia para justificar a operação -, quando aborda a questão da presença e intervenção do MP, sujeita a sua atuação ao “respeito pela autonomia técnica e tática das forças de segurança”.
Diz, a esse propósito, o n.º 3 do artigo 110.º de tal diploma:
“3 – Sem prejuízo da autonomia técnica e tática das forças de segurança, as operações podem ser acompanhadas presencialmente por um magistrado, responsável pela prática dos atos da competência do Ministério Público que elas (as polícias) possam requerer, designadamente nos seguintes casos:
a) Recolher informações sobre qualquer encomenda ou transação que envolvam armas de fogo, suas partes, componentes essenciais e munições; e
b) Verificar a correta aplicação das medidas de controlo das exportações, o que pode incluir, em especial, o direito de acesso às instalações das pessoas interessadas numa operação de exportação.”
Isto significa que o MP está, em princípio, presente em tais operações quando a sua hierarquia assim o determinar, para, no fundamental, poder exercer, sendo necessário, mais rápida e oportunamente, as funções processuais que o CPP prevê e lhe atribui: “os atos da sua competência”.
Assim, bem balizados os termos do acompanhamento de tais ações por um ou mais magistrados, pode concluir-se que a presença destes não visa, no essencial, assegurar qualquer garantia suplementar de respeito pela legalidade.
O MP – mesmo quando presente em operações desta natureza – é, em princípio, alheio aos métodos e aos modos como os polícias procedem, por exemplo, nas revistas e buscas que levam a cabo no âmbito de tais ações de prevenção.
Isto, claro, se tais procedimentos não constituírem eles próprios, pela maneira como são executados, um crime de que os magistrados do MP possam, e legalmente devam, tomar imediato conhecimento.
Com efeito, a comparência de magistrados em tais operações não visa, primordialmente, vigiar o comportamento dos agentes de polícia.
Nem, por outro lado, garantir-lhes, de algum modo, a sua imunidade criminal ou, mesmo, certificar a legalidade e adequação da decisão da Polícia de concretizar uma determinada ação de prevenção.
O MP não adquire neste, como em outros casos, o papel de polícia das Polícias.
Não lhe é reconhecido, igualmente, o papel de seu consultor jurídico.
Se fossem esse o desígnio do legislador, então a presença do MP nas ações de prevenção a realizar pelas Polícias deveria ser obrigatória.
A distinção entre a presença e o papel do MP nestas operações e o papel que, mais tarde, esta a magistratura venha, eventualmente, a ter de assumir na análise das queixas relacionadas com o desempenho dos agentes de polícia e de quem os comandou no plano operacional, é, pois, fundamental.
Mais, essa distinção deve ser evidente, também e principalmente, para os próprios polícias.
O que se passou, há anos, quando um magistrado, questionado para tanto, autorizou in loco um atirador da Polícia a disparar e abater um sequestrador que mantinha reféns num estabelecimento bancário, é disso paradigmático.
O MP teve, necessariamente, depois, de determinar a abertura de um inquérito criminal visando os autores de tal ação.
Tal iniciativa do MP e alguma celeuma então ocorrida, ilustraram bem, em seguida, a existência de alguma confusão de papéis: no MP e na Polícia.
Seria, pois, importante, e oportuno, clarificar, por via legal ou regulamentar – neste último caso por via de uma diretiva da PGR –, qual o concreto papel que o magistrado presente em tais operações de polícia deve assumir, ou não, quando confrontado com atuações de legalidade duvidosa.
Referimo-nos, aqui, em especial, aos procedimentos policiais decorrentes de diretivas procedimentais e técnicas internas à Polícia e, ainda, às indicações que, no teatro de operações, sejam transmitidas aos agentes pelos comandos que, no terreno, dirigem a sua atuação.
Isto, claro, independentemente, da decisão que, como se disse já, cabe ao magistrado do MP presente, e só a ele, tomar relativamente àqueles atos que são da sua competência processual e que lhe sejam, no local e na hora, suscitados, pelos que dirigem uma tal operação policial.
Só assim, conscientes de tais diferenças e limites, se evitará que os agentes de polícia que nelas participam se julguem, erroneamente, imunes, em termos de responsabilidade criminal, por eventuais atos (ilegais) que desenvolveram na operação: não, não estão.
Só assim se evitará, também, que os magistrados se vejam, de algum modo, envolvidos em decisões que, em rigor, não são da sua competência e que podem originar responsabilidades criminais.
Só assim se impedirá, ainda, a instrumentalização – política, corporativa e mediática – que possa vir a ser feita da presença e acompanhamento por parte de magistrados do MP de tais operações de polícia.
Só assim se evitará, por fim, que os cidadãos venham a convencer-se que, com tal ambiguidade, o legislador apenas pretendeu escamotear responsabilidades de uns e de outros, especialmente dos comprometidos no modo como tais operações foram dirigidas e executadas.
Sendo embora incorreta, tal perceção pode contribuir, também ela, para debilitar, ainda mais, a imagem, já de si negativa, que os cidadãos fazem do funcionamento do Estado de Direito.
Bom Ano Novo para todos.