A literatura: esse grande cemitério

A literatura: esse grande cemitério


As efemérides passaram a dominar todos os balanços, e recaímos num constante furor celebratório, um ambiente de campanha em que se deita mão de qualquer vulto ou acontecimento, de modo a que esse quadro de moleza intelectual possa sempre dar uma ideia de dinamismo.


De entre os livros que a cada ano são editados, se parece cada vez mais raro surgirem propostas de visões de conjunto ou balanços de ordem crítica, não deixam de nos chegar os sinais de uma devoração constante por parte de um número de supostos ladrões de luz, que encenam um projeto enciclopédico, simulando a sua capacidade de lançar uma rede e reconhecer vagas formas, captando essas transferências, interferências e importações.
Mas se abundam as referências apressadas a títulos e autores, e se estas figuras salivantes congeminam, latejam e estremecem diante dos acontecimentos editoriais, acabam por se deter neles apenas o tempo suficiente para deixar uma sugestão de leitura, que reverte no ideal de aquisição de algum objeto, sendo hoje o livro um dos mais fetichizados e logo depois mais descartáveis neste ciclo de consumo acelerado. O difícil é que se consiga ao menos criar em torno deste nem que seja uma forma de bisbilhotice elevada em que cada leitor daria nota das páginas dobradas, dos sublinhados, das reflexões à margem dos textos, de forma a assinalar como foi «vincando a sua urgência no interior da rotina e do quotidiano». Para não falar de um desejo de partir daí para exercícios de análise menos apressados, lançando-se em ousados juízos sobre a sociedade ou a época. De algum modo tudo fica confinado, e sujeito ao mesmo solvente, à mesma consolação, como se qualquer acontecimento entre nós fosse levado em conta apenas enquanto ornamento ou outro impulso para alguma febre intermitente.
Em vez de alimentar a expansão de um imaginário, todo o esforço de compendiar novos exemplos se fica por essa documentação de um destino em minúsculas, e a busca desenfreada de novidades está menos ligada a um esforço de enquadrar alguma diferença, alguma outra coisa, do que de registar esses sinais de superfície. Assim, o novo passou a ser aquilatado a essa ânsia de abarcar as manifestações mais eloquentes da futilidade do tempo, regozijando-se com a abundância de títulos, numa lógica coerciva em que certos setores ficam dependentes da produção constante de novidades, uma torrente absurda que serve intuitos publicitários, funcionando apenas como chamariz para atrair os clientes que, em vez de um odor vivo que se desentranhe da banalidade dos dias, aquilo que buscam é esse perfume das fantasmagorias do inédito.


Como assinalava António Guerreiro na abertura do dossier que o mais recente número da revista Electra dedica ao tema (‘o novo’), este grande imperativo que se forma na superfície da atualidade satisfaz plenamente os desejos de homogeneização que vêm tomando conta do plano cultural. Não só isso, mas este efeito alimenta «uma ilusão historicista que faz da história uma perpétua atualização, para a qual há cada vez menos tempo». Guerreiro vinca que «o novo, como mandamento a que se deve estrita obediência (seja ela consciente ou inconsciente), sob pena de não estarmos sintonizados com as regras da vida social e cultural, é objeto de um culto religioso: o culto do presente, mas de um presente superficial e infecundo, reino de uma enorme tautologia, que não corresponde de modo nenhum a uma verdadeira atualidade».


De qualquer modo, qualquer análise que tenha em conta o ímpeto desta época para se dignificar pela produção acelerada de passado, deve ser infletida no sentido de se pensar o reverso desta espúria ficção quanto à atualidade. É que, ao mesmo tempo que o presente estagna, há uma irreprimível queda para submeter qualquer figura do passado a este efeito esterilizante, a tudo reduzir ao clichê, que não tem outra função que não seja castrar uma ideia ou obra. Neste quadro, não deixamos de sentir como as efemérides passaram a dominar todos os balanços, e recaímos num constante furor celebratório, um ambiente de campanha em que se deita mão de qualquer vulto ou acontecimento, de modo a que esse quadro de moleza intelectual possa sempre dar uma ideia de dinamismo.


Assim, também damos por uma compulsão um tanto mórbida para que tudo aquilo que recordamos possa ser instrumentalizado por essa grande corte dos seguidores em perpétuo atraso, mas hábeis em fazer crer que são capazes de prestigiar e reanimar os grandes exemplos do passado. Contudo, se nos detivermos no conteúdo dessas apreciações, não demoraremos a constatar como estas lembranças se inscrevem sob o signo das limitações, sendo todas as referências como que exorcizadas, de forma a poderem circular como motivos corroídos, enquanto fantasias impotentes: essas historietas, esses mitos inferiorizados e deformados, que se tornam o alvo de associações banais e de uma função mnemónica vulgarizadora, como elementos que comparecem para fixar a imagem de um homem, parcialmente anestesiado, a remexer nas próprias feridas com curiosidade. Eduardo Lourenço nota que, se durante milénios a Morte nos veio de «algures», desentranhando esse pânico inenarrável e uma urgência que nos empurrava para as respostas artísticas, hoje, parece ter chegado o tempo paradoxal da não-Morte… «Como se a perspetiva apenas pensável de uma morte coletiva, substancial e derradeira, nos libertasse da mais insuportável obrigação de morrer sozinhos num mundo que não está disposto a morrer connosco.»


Faz sentido situar neste resumo essa prevalência dos fetichismos da cultura, essas manobras sempre reacionárias para recalcar a contradição e a miséria, como vincou Eduardo Prado Coelho. Em vez de se dar largas à melodia abissal que se ouve nos textos dos grandes escritores, concebendo a sua passagem para a vibração mais íntima do tempo, estes vão sendo empurrados para formas de louvor enfastiante, entregues a um destino de castração. Sucedem-se entre nós os centenários de tantas das figuras mais marcantes do século passado, e, em lugar de uma espécie de vertigem, de um diálogo interminável e que dê margem a incisões recíprocas, e à instabilidade de um processo de descoberta, ficamos cativos dessa «turbulência de fenómenos circunstanciais (renda, babugem)». Deste modo, aquilo que ressalta de todo esse cerimonial que passou a definir a própria cultura é um tremendo exercício de despudor, em que tudo é fixado de forma a servir de ornamento a esse ânimo de auto-exposição de um temperamento cobarde, mórbido, em que aquele que se recusa a morrer sozinho arrasta tudo e enche o seu túmulo de distrações, de modo a preparar uma eternidade igualmente fútil. E se não falta quem procure servir-se da literatura para este fim, esquecem, no entanto, como o espaço literário é quase irrespirável, um «espaço convulsivo de vertigem e cumplicidade», para citar Prado Coelho, em que as obras denunciam este patético regime conservador.


Assim, no ano em que se assinalavam os 500 anos do nascimento do insuperável bardo desta língua, foi quase uma benesse que o Estado tenha negligenciado as comemorações de Camões, como se este devesse ser esquecido para surgir espontaneamente apenas enquanto fantasma que se encosta àqueles que de noite cantam junto ao mar. Pois se nenhuma noite impede o alarme do canto, foi possível desta forma, mais autenticamente, reconhecermos entre a miséria da memória as irrepetíveis imagens que ainda sacodem o cadáver dos nossos dias. Se Camões foi esse em que, como notou José Régio, «o mar entrou nele e coube», se nos fica dele a impressão de um génio que melhor dispôs em português a eterna agilidade que oferece um apaixonado saber das distâncias, que melhor forma haveria de contornar o vazio habitual das manifestações que se multiplicam apenas para nos transmitir o sentimento da sordidez disto tudo, servindo apenas para nos vermos confrontados com os mesmos, estes que vivem da beatitude cultural, exibindo a sensatez do bolor.


A Eduardo Lourenço não se associa habitualmente aquele ímpeto de feroz laceração do meio, mas foi dele que veio uma das denúncias mais perfunctórias dessa classe, referindo-se às «ratazanas académicas ou autodidatas a quem são confiados tão poderosos meios, porém, raro ultrapassam a glosa banalmente historicista ou apologética, sem alcance espiritual verdadeiro». E o que resulta daí é que «durante uma eternidade as belezas redivivas têm de suportar o odor dos coveiros que o acaso de privilégios sem conteúdo transformou em estetas».


Vemos, hoje, como tantos poetas e escritores são forçados a residir no limbo, dominados por esse ruído de sentido que gera esse ambiente de aclamação tão inócua, tentando-se simular um esforço de aproximação ou familiaridade, quando o que ocorre tipicamente é que todas essas figuras são transformadas em personagens de um folclorismo que procura derrotar o elemento de ameaça e denúncia constante nas suas obras. Não existe verdadeira criação sem que esta contenha um impulso crítico, tantas vezes devastador, mas para isso mesmo se organizam as comissões cerimoniais, no intuito de precaver esse esforço para que o alvoroço dos textos não venha desordenar hoje os ânimos.


Assim, o papel das efemérides, dos centenários, não é relembrar, mas antes dissipar os aspetos mais cáusticos e dolorosos, e o cânone resulta entre nós como essa colónia penal que exige apertada vigilância para alguns, mesmo depois de mortos. E é por isso que as evocações se detêm em pormenores e elementos anedóticos, numa ressuscitação que entrega os mortos a uma senilidade que a vida falhou em impor-lhes. Assim, e em lugar da juventude definitiva das suas melhores páginas, vemos o seu exemplo tornar-se indistinto, degradante como tudo ao nosso redor, num efeito de acrítica conclamação. Cabe aos agentes das mortuárias vigiar este grande cemitério e ir colhendo as ervas daninhas como quem separa as obras da sua expressão vital, reduzindo tudo a um lirismo de catálogo, reduzindo a radicalidade de um discurso às formas fossilizadas, em torno das quais o entendimento se absorve e estagna. E, para citar Alexandre O’Neill, que há dias viu a sua semelhança em regime rigor mortis servir de molde a outra das figuras de cera do museu centenário, «todos lá estão certos: (…) o circunspecto colecionador de referências que, desconfiado, por natureza, do seu instinto, quer sempre provas de que o que está a ver se enraíza culturalmente no tempo (e se for no tempo bem passado, melhor será…); (…) os que vão dispostos a adorar tudo a todo o transe;/ os que apenas querem circular;/ os que esperavam entrar em mais um templo da arte e descobrem que é a arte que os contempla e desafia;/ os apenas curiosos;/ os visitadores de tudo e, portanto, de ‘mais aquilo’;/ os que não podem falhar um encontro que, na curta biografia que será a deles, vão considerar, durante filhos e netos, como um encontro histórico;/ os que…/ os que …»


Numa conferência intitulada ‘O tempo, hoje’ (1987), Lyotard defende que para pensar ou escrever, para fazer algo acontecer, nos nossos dias, é preciso construir um «cordão sanitário» à nossa volta, é preciso habitar um gueto temporal. Pior que o silêncio são, afinal, essas formas de apropriação redutoras, esses vendedores de passados e memórias falsas, com a sua compulsão de forçar tudo a uma mitologia patética, os mercadores de um mundo patologicamente afogado em reminiscências que tudo desagregam e falsificam, de tal modo que o passado se torna o coveiro do presente. «É certo que precisamos de História, mas precisamos dela de outro modo», diz-nos Benjamin. «Isto é, precisamos dela para a vida e a ação, e não para a cómoda recusa da vida e da ação…»


Ora, bem pior do que o esquecimento é a doença de uma memória que se entrega a esta compulsão para produzir mitos tacanhos, os quais servem apenas para nos imobilizar, sendo curioso notar como são aqueles mordem o pó nestas celebrações, os únicos que poderiam exprimir o horror diante do abstrato da História, desta representada como coisa morta, num quadro em que vivos e mortos se misturam no mesmo plano, estes instrumentalizados por aqueles, de tal modo que todas as linhagens acabam feridas de banalidade, tudo resulta inofensivo. A tradição fica a saque, sujeita a todo o tipo de deformações, e a própria cultura se faz sentir mais enquanto ausência, algo que não requer de nós qualquer compromisso nem uma ética de confronto, mas oferece uma melodia cujo intuito é precisamente o de ser «cantarolada em coro», enquanto o que resta do cânone é sujeito a fumigação para eliminar todos os elementos sinistros, desoladores, inóspitos, e que de algum modo denunciam este regime diluente. Porque nem é já a História o que comparece nesses balanços, mas apenas esse seu lastro morto que facilita as formas de catalogação de museu, no qual objetos fetiche proliferam. E, por isso, fazer renascer um propósito cultural deve passar por criar zonas excludentes face ao mercado, uma vez que a diferença só pode comparecer na sua face clandestina, abolindo a relação pontual, não reforçando o estupor academizante, mas apostar antes nas variações, versões incessantes que emergem e resultam tantas vezes de um nomadismo ilimitado, que vive no fulgor das intuições.


Hoje, os grandes do passado são incensados de forma a desencorajar leituras exorbitantes, essa forma de partir delas para o pesadelo dessa reescrita enérgica e dilacerante, que põe tudo de novo em causa. Vai-se praticando um jejum de correlações no exame crítico que deixa de fora tudo aquilo que de realmente novo é proposto. Não há margem nem para a diferença, nem sequer para a repetição, e se há orçamentos para uma infinidade de atividades e para o genérico recital que acolhe um público que se deixou em larga medida embalar, continua a não haver espaço para que a crítica introduza as suas exceções, a sua articulação que, em vez de se limitar à lógica aditiva, ao processo construtivo, se aproveita daquela noção dialética, afastando-se da linearidade cronológica, e da circularidade cíclica, para formular argumentos que se exercem a partir de uma visão descontínua, quebrada, e que segue ao arrepio das instruções gerais, explorando as zonas de contradição. Ora, «perdida a âncora, anoitecido o cais», de pouco nos vale continuarmos a insistir em enredos cerimoniais, sendo importante honrar as grandes obras ao recapturar pela errância o que só na dispersão se constrói, permitindo a descoberta, e a incerteza. Raspar o fundo de um som, estar apto a captar aquele sentido que se alcança do exterior, pelo acidente, a derivação. Mas continuamos a empregar apenas aqueles que zelam pelos cemitérios, e depois queixamo-nos que nada de verdadeiramente novo irrompe e transforma as nossas vidas.