Conto de um Natal desaparecido


Claro que toda a gente que passava reprovava tal mistura: um menino tão limpinho e filho da senhora D. Maria metido com os ciganos!…E logo iam, pressurosos, a avisar!…


O frio começava a apertar, caíam as primeiras neves, e na igreja a miudagem afinava as canções do Dia de Natal. Por essa altura, chegava invariavelmente à aldeia uma tribo cigana, família larga de muita gente, avós, pais, netos, carroças e burros e o inevitável acampamento num pinhal não longe da casa do Tòtito. Mesmo perante a hostilidade geral, os ciganos insistiam em passar aí os Natais, vá lá saber-se porquê!…

Nesse ano, os ciganitos traziam um carrinho daqueles que se compunham de uma caixa rectangular em cima de dois eixos com rodas, e que era usado para brincarem aos automóveis, ladeiras abaixo. Mas desta vez era um carro de luxo, com rodas de aço e rolamentos e um guiador topo de gama. O Tòtito contou lá em casa e logo lhe disseram que tinha sido certamente roubado. Ripostou que não: eles tinham-lhe dito que foi o avô que o fez!…

Ao lado da casa, havia uma estrada bastante inclinada onde se juntavam para brincar. A troco de uns bons pedaços de pão, o Tòtito era o único estranho a poder utilizar o bólide, embora espaçadamente, que eles exerciam o seu poder soberano, sem margem para grandes dúvidas.  O Tòtito andava, mas quando lhes desse na real gana!… Claro que toda a gente que passava reprovava tal mistura: um menino tão limpinho e filho da senhora D. Maria metido com os ciganos!…E logo iam, pressurosos, a avisar!…

Manhã cedo, ia um alvoroço lá em casa, um altear de vozes que o Tòtito não percebia, correrias, um sobressalto. Como ninguém atendesse a sua curiosidade, levantou-se para ver o que era. Deparou então com toda a gente da família e pessoal de fora no curral, à volta de um enorme porco que se contorcia com dores, levantando o focinho em assustadores espasmos. Discutia-se se se devia chamar o ferrador, que tudo sabia de doenças dos animais, ou o veterinário. A maioria preferia o ferrador, mas o pai do Tòtito resolveu mandar alguém ao telefone público, havia um na terra, chamar o veterinário. Mas este tardava em chegar e as contorções dolorosas do bicho metiam cada vez mais dó. Então, o pai do Tòtito decidiu matar o animal, encarregando-se da função à moda da matança tradicional, uma faca enterrada no pescoço, direita ao coração. Chegado, o veterinário mandou abrir o bicho. Rapidamente verificou que o porco tinha engolido o arganel (uma armação de arame que era espetada no nariz, com dois bicos afiados, para não fossar), e que este lhe ficara cravado na garganta, causando-lhe as dores que podemos imaginar. Descoberta a causa, discutiu-se se a carne do bicho estaria em condições de ir para a salgadeira ou não. O veterinário achou que não teria chegado a ganhar febre, pelo que deixava a opção aos donos. Dizendo a mãe do Tòtito que jamais provaria tal pitéu, foi decidido enterrar o porco. No chão nevado da quinta, fez-se um buraco e o animal foi enterrado.

Olhando por cima do muro baixo da propriedade, que confinava com a estrada, os miúdos ciganos assistiram à operação e logo contaram aos pais. Pelo que, passado algum tempo, apresentaram-se dois ciganos pedindo para desenterrarem o porco, pois o aproveitariam para lhe tirar o sebo ou até para comer, se estivesse em condições. Levaram um não do pai do Tòtito, pois se não servia para nós, não servia para ciganos, o que eles imediatamente desmentiram com veemência. Era Natal e até poderiam dar alguma carne aos filhos. Se ela estivesse boa, claro!…

Perante a negativa, foram embora, mas voltaram a insistir. Os miúdos rodearam o Tòtito e prometiam que o deixavam andar o que quisesse, se levassem o porco. Perante a fortíssima abordagem conjunta, do Tòtito e dos ciganos, o pai disse-lhes que não queria saber de nada, mas se, quando chegasse da vila e visse algum buraco, chamava logo a polícia.

Entendendo autorização na resposta, logo os ciganitos contaram aos pais que de imediato passaram à acção, dizendo o seu pai não vai ver, a gente tapa logo e até põe neve por cima!…

Homens e mulheres vestidos de preto lá desenterraram o porco, puseram-no na carroça, taparam o buraco, cobriram a terra com neve e abalaram felizes rumo às tendas.

Passados dois ou três dias, era Natal. Chegado a casa, depois da missa, o Tòtito ainda pôde ver a caravana que desaparecia na curva da estrada. E, ao entrar no portão, deparou com o carrito deixado como prenda, recompensa dos ciganitos por uma consoada porventura mais farta. Não estava embrulhado em papel nem tinha laços, mas seria, na sua singeleza, a melhor prenda do Menino Jesus. Felizes com o porco, quiseram deixar o Tòtito feliz com o carrinho. Não saberiam bem o que era o Natal, mas, no seu íntimo, estavam em consonância com a mensagem do Menino Jesus, cujos bracitos se abrem para com todos compartilhar e a todos abraçar, independentemente do seu estado, raça ou religião!…O significado do Natal!…

PS: Também para os leitores do i os votos de Boas Festas e de um Feliz Ano Novo

Economista e Gestor

Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

pcardao@gmail.com

Conto de um Natal desaparecido


Claro que toda a gente que passava reprovava tal mistura: um menino tão limpinho e filho da senhora D. Maria metido com os ciganos!...E logo iam, pressurosos, a avisar!...


O frio começava a apertar, caíam as primeiras neves, e na igreja a miudagem afinava as canções do Dia de Natal. Por essa altura, chegava invariavelmente à aldeia uma tribo cigana, família larga de muita gente, avós, pais, netos, carroças e burros e o inevitável acampamento num pinhal não longe da casa do Tòtito. Mesmo perante a hostilidade geral, os ciganos insistiam em passar aí os Natais, vá lá saber-se porquê!…

Nesse ano, os ciganitos traziam um carrinho daqueles que se compunham de uma caixa rectangular em cima de dois eixos com rodas, e que era usado para brincarem aos automóveis, ladeiras abaixo. Mas desta vez era um carro de luxo, com rodas de aço e rolamentos e um guiador topo de gama. O Tòtito contou lá em casa e logo lhe disseram que tinha sido certamente roubado. Ripostou que não: eles tinham-lhe dito que foi o avô que o fez!…

Ao lado da casa, havia uma estrada bastante inclinada onde se juntavam para brincar. A troco de uns bons pedaços de pão, o Tòtito era o único estranho a poder utilizar o bólide, embora espaçadamente, que eles exerciam o seu poder soberano, sem margem para grandes dúvidas.  O Tòtito andava, mas quando lhes desse na real gana!… Claro que toda a gente que passava reprovava tal mistura: um menino tão limpinho e filho da senhora D. Maria metido com os ciganos!…E logo iam, pressurosos, a avisar!…

Manhã cedo, ia um alvoroço lá em casa, um altear de vozes que o Tòtito não percebia, correrias, um sobressalto. Como ninguém atendesse a sua curiosidade, levantou-se para ver o que era. Deparou então com toda a gente da família e pessoal de fora no curral, à volta de um enorme porco que se contorcia com dores, levantando o focinho em assustadores espasmos. Discutia-se se se devia chamar o ferrador, que tudo sabia de doenças dos animais, ou o veterinário. A maioria preferia o ferrador, mas o pai do Tòtito resolveu mandar alguém ao telefone público, havia um na terra, chamar o veterinário. Mas este tardava em chegar e as contorções dolorosas do bicho metiam cada vez mais dó. Então, o pai do Tòtito decidiu matar o animal, encarregando-se da função à moda da matança tradicional, uma faca enterrada no pescoço, direita ao coração. Chegado, o veterinário mandou abrir o bicho. Rapidamente verificou que o porco tinha engolido o arganel (uma armação de arame que era espetada no nariz, com dois bicos afiados, para não fossar), e que este lhe ficara cravado na garganta, causando-lhe as dores que podemos imaginar. Descoberta a causa, discutiu-se se a carne do bicho estaria em condições de ir para a salgadeira ou não. O veterinário achou que não teria chegado a ganhar febre, pelo que deixava a opção aos donos. Dizendo a mãe do Tòtito que jamais provaria tal pitéu, foi decidido enterrar o porco. No chão nevado da quinta, fez-se um buraco e o animal foi enterrado.

Olhando por cima do muro baixo da propriedade, que confinava com a estrada, os miúdos ciganos assistiram à operação e logo contaram aos pais. Pelo que, passado algum tempo, apresentaram-se dois ciganos pedindo para desenterrarem o porco, pois o aproveitariam para lhe tirar o sebo ou até para comer, se estivesse em condições. Levaram um não do pai do Tòtito, pois se não servia para nós, não servia para ciganos, o que eles imediatamente desmentiram com veemência. Era Natal e até poderiam dar alguma carne aos filhos. Se ela estivesse boa, claro!…

Perante a negativa, foram embora, mas voltaram a insistir. Os miúdos rodearam o Tòtito e prometiam que o deixavam andar o que quisesse, se levassem o porco. Perante a fortíssima abordagem conjunta, do Tòtito e dos ciganos, o pai disse-lhes que não queria saber de nada, mas se, quando chegasse da vila e visse algum buraco, chamava logo a polícia.

Entendendo autorização na resposta, logo os ciganitos contaram aos pais que de imediato passaram à acção, dizendo o seu pai não vai ver, a gente tapa logo e até põe neve por cima!…

Homens e mulheres vestidos de preto lá desenterraram o porco, puseram-no na carroça, taparam o buraco, cobriram a terra com neve e abalaram felizes rumo às tendas.

Passados dois ou três dias, era Natal. Chegado a casa, depois da missa, o Tòtito ainda pôde ver a caravana que desaparecia na curva da estrada. E, ao entrar no portão, deparou com o carrito deixado como prenda, recompensa dos ciganitos por uma consoada porventura mais farta. Não estava embrulhado em papel nem tinha laços, mas seria, na sua singeleza, a melhor prenda do Menino Jesus. Felizes com o porco, quiseram deixar o Tòtito feliz com o carrinho. Não saberiam bem o que era o Natal, mas, no seu íntimo, estavam em consonância com a mensagem do Menino Jesus, cujos bracitos se abrem para com todos compartilhar e a todos abraçar, independentemente do seu estado, raça ou religião!…O significado do Natal!…

PS: Também para os leitores do i os votos de Boas Festas e de um Feliz Ano Novo

Economista e Gestor

Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

pcardao@gmail.com