O problema das cerejas no topo do bolo


A incapacidade de avaliação crítica do passado recente estende-se ao Partido Socialista, cada vez mais preocupado com as cerejas individuais e com os topos do bolo sintonizados com os umbigos e as circunstâncias do que com a sua missão na sociedade portuguesa.


Amiúde o debate público e privado, até o familiar, centra-se nas cerejas no topo do bolo, não sei se para escamotear o resto, se por facilitismo na abordagem aos temas. É ver os media falarem de candidatos autárquicos e de lideranças partidárias, as instituições debaterem o estado da arte ou os cidadãos a queixarem-se das disfunções do funcionamento das diversas expressões do Estado ou da sociedade, sem que se interroguem sobre se mudar só a cereja no topo do bolo algum dia seria suficiente para operar as mudanças que se impõem ou que se desejam. É claro que as lideranças podem ajudar e muito na afirmação de uma visão, de um projeto e de iniciativas, mas também podem ser apenas um reflexo das circunstâncias, meros gestores dos quotidianos e de serviços mínimos orientados para a manutenção dos poderes ou dos equilíbrios existentes, por mais nocivos que possam ser para o interesse geral local, regional ou nacional. Quando se conjugam as lideranças de circunstância, por vontade própria ou condicionamento das existências, com as realidades instaladas, não há, nunca há, cereja no topo do bolo que seja suficiente para a mudança ou para a concretização de objetivos com ambição.

Vejamos três exemplos recentes. O PCP teve mais um Congresso Nacional, o vigésimo segundo, expressão maior do coletivo comunista do burgo, em que reafirmou por unanimidade a liderança de Paulo Raimundo. Foi um fim-de-semana a zurzir o Partido Socialista, a liderança atual e uma anterior, sem uma palavrinha sobre o tempo em que o partido fez parte da solução governativa, como nos casamentos, nas alegrias e nas tristezas, não apenas na reposição de direitos e de rendimentos levados pela governação tocada pela Troika, nos seus guiões e excessos. O PCP é parte de alguns dos resultados do estado de degradação a que chegámos nos serviços públicos e no Serviço Nacional de Saúde. Ou a destruição das PPP que funcionavam em Vila Franca de Xira e em Loures, sem reforço que baste do SNS, não tem por ação ou por omissão de conveniência ideológica a assinatura do PCP? O PCP, que tem uma histórica dimensão institucional, não tem nada a dizer sobre o passado recente da governação como não o faz no apego a regime de sinal de esquerda que a toque da ideologia desprezam os direitos, as liberdades e a diferença, logo rotulada de interesses de direita ou capitalistas. Sem uma avaliação autocrítica do passado recente e do longínquo, o PCP bem pode reafirmar cerejas no topo do bolo coletivo, proclamar aberturas a independentes (das Comissões de Utentes, dos Sindicatos ou dos Os Verdes), até colocar uns jovens dizer coisas velhas, as respostas de sempre para realidades bem diferentes, a substância mantém-se a mesma e a deriva de perda prosseguirá nas eleições autárquicas. É que nas autarquias, a matriz é de se colocar do lado do problema, no protesto inconsequente e no arremesso para o Poder Central das responsabilidades, mesmo quando fizeram parte da solução governativa (um pé no poder e outro na oposição). As pessoas e os territórios querem respostas, o PCP é a esquerda que não consegue contribuir para a construção de novas soluções para problemas e desafios que são diferentes das cartilhas e das realidades que povoam os seus imaginários.

Mas esta incapacidade de avaliação crítica do passado recente estende-se a um Partido Socialista cada vez mais preocupado com as cerejas individuais e com os topos do bolo sintonizados com os umbigos e as circunstâncias do que com a sua missão na sociedade portuguesa: concretizar respostas para as pessoas e os territórios com uma visão integrada e abrangente, focada no interesse geral, com novas abordagens de esquerda. Sem se preocupar com o bolo da configuração da militância e das estruturas partidárias em Lisboa e na Área Urbana de Lisboa, amassadas à imagem dos interesses instalados durante mais de uma década, primeiro na capital e depois no país, pode-se discutir as cerejas que quiserem. Sem uma autocrítica sobre o passado recente, um ajuste dos funcionamentos, uma erradicação de alguns protagonistas e mínimos de sintonia com as realidades e as suas necessidades, sem fundamentalismos ideológicos ou lirismos inconsequentes, dificilmente o conjunto obterá resultados positivos. Por mais atrativa que possa ser a cereja no topo do bolo. Em especial quando se instala uma histeria em relação a autarcas que todos os dias têm de colocar a mão na massa das respostas e na manutenção de equilíbrios mínimos de compromisso com a democracia, depois das sementeiras governativas de promoção do Chega, por falta de ação ou de noção nos maus exemplos de exercício de funções públicas.

Por último, a cereja no topo do bolo do governo. É uma evidência que a massa do bolo governativo é fraca. Fraca nos ingredientes. Fraca na execução da receita. Fraca nos resultados e nas suas projeções em estudos de opinião. Pode ser forte na narrativa e na ocupação de lugares do Estado, como sempre, mas só o topo do bolo e as imediações é insuficiente para superar a governação de turno, sem maioria parlamentar. Resta-lhe a circunstância.

Em suma, em vez de debates incansáveis sobre as cerejas para os topos do bolo era bom que a sociedade portuguesa debatesse o bolo, que ingredientes, que receitas e que ambição para outro funcionamento, outras respostas e outros resultados. É que das cerejas até pode rezar a história, mas não se reforça de forma perene o compromisso com a democracia e com o desenvolvimento, persistindo os rabos de palha.

NOTAS FINAIS

A PANDEMIA DO “NÃO VÁ, TELEFONE”. Primeiro foi a pandemia. Não vá, agende. Depois era o covid longo e a deriva de redução da proximidade prosseguiu. Agora, por falta de capacidade de resposta do SNS é o telefone antes de ir. O problema é que não estamos a falar de hábitos de consumo, de apetites, mas de direitos a que os cidadãos contribuintes devem ter: acessos de proximidade a cuidados de saúde. Depois de tantos serviços públicos, agora as grávidas. Não vá, telefone!

JOTAESSE NO FEMINIMO. Quando se divulga que, entre 2002 e 2022, o peso das mulheres nos lugares de direção e gestão de empresas e entidades do setor privado subiu apenas quatro pontos percentuais, para 32%, é de saudar que a Juventude Socialista tenha eleito uma jovem, pelas suas competências e qualidades políticas. Parabéns, Sofia Pereira!

O problema das cerejas no topo do bolo


A incapacidade de avaliação crítica do passado recente estende-se ao Partido Socialista, cada vez mais preocupado com as cerejas individuais e com os topos do bolo sintonizados com os umbigos e as circunstâncias do que com a sua missão na sociedade portuguesa.


Amiúde o debate público e privado, até o familiar, centra-se nas cerejas no topo do bolo, não sei se para escamotear o resto, se por facilitismo na abordagem aos temas. É ver os media falarem de candidatos autárquicos e de lideranças partidárias, as instituições debaterem o estado da arte ou os cidadãos a queixarem-se das disfunções do funcionamento das diversas expressões do Estado ou da sociedade, sem que se interroguem sobre se mudar só a cereja no topo do bolo algum dia seria suficiente para operar as mudanças que se impõem ou que se desejam. É claro que as lideranças podem ajudar e muito na afirmação de uma visão, de um projeto e de iniciativas, mas também podem ser apenas um reflexo das circunstâncias, meros gestores dos quotidianos e de serviços mínimos orientados para a manutenção dos poderes ou dos equilíbrios existentes, por mais nocivos que possam ser para o interesse geral local, regional ou nacional. Quando se conjugam as lideranças de circunstância, por vontade própria ou condicionamento das existências, com as realidades instaladas, não há, nunca há, cereja no topo do bolo que seja suficiente para a mudança ou para a concretização de objetivos com ambição.

Vejamos três exemplos recentes. O PCP teve mais um Congresso Nacional, o vigésimo segundo, expressão maior do coletivo comunista do burgo, em que reafirmou por unanimidade a liderança de Paulo Raimundo. Foi um fim-de-semana a zurzir o Partido Socialista, a liderança atual e uma anterior, sem uma palavrinha sobre o tempo em que o partido fez parte da solução governativa, como nos casamentos, nas alegrias e nas tristezas, não apenas na reposição de direitos e de rendimentos levados pela governação tocada pela Troika, nos seus guiões e excessos. O PCP é parte de alguns dos resultados do estado de degradação a que chegámos nos serviços públicos e no Serviço Nacional de Saúde. Ou a destruição das PPP que funcionavam em Vila Franca de Xira e em Loures, sem reforço que baste do SNS, não tem por ação ou por omissão de conveniência ideológica a assinatura do PCP? O PCP, que tem uma histórica dimensão institucional, não tem nada a dizer sobre o passado recente da governação como não o faz no apego a regime de sinal de esquerda que a toque da ideologia desprezam os direitos, as liberdades e a diferença, logo rotulada de interesses de direita ou capitalistas. Sem uma avaliação autocrítica do passado recente e do longínquo, o PCP bem pode reafirmar cerejas no topo do bolo coletivo, proclamar aberturas a independentes (das Comissões de Utentes, dos Sindicatos ou dos Os Verdes), até colocar uns jovens dizer coisas velhas, as respostas de sempre para realidades bem diferentes, a substância mantém-se a mesma e a deriva de perda prosseguirá nas eleições autárquicas. É que nas autarquias, a matriz é de se colocar do lado do problema, no protesto inconsequente e no arremesso para o Poder Central das responsabilidades, mesmo quando fizeram parte da solução governativa (um pé no poder e outro na oposição). As pessoas e os territórios querem respostas, o PCP é a esquerda que não consegue contribuir para a construção de novas soluções para problemas e desafios que são diferentes das cartilhas e das realidades que povoam os seus imaginários.

Mas esta incapacidade de avaliação crítica do passado recente estende-se a um Partido Socialista cada vez mais preocupado com as cerejas individuais e com os topos do bolo sintonizados com os umbigos e as circunstâncias do que com a sua missão na sociedade portuguesa: concretizar respostas para as pessoas e os territórios com uma visão integrada e abrangente, focada no interesse geral, com novas abordagens de esquerda. Sem se preocupar com o bolo da configuração da militância e das estruturas partidárias em Lisboa e na Área Urbana de Lisboa, amassadas à imagem dos interesses instalados durante mais de uma década, primeiro na capital e depois no país, pode-se discutir as cerejas que quiserem. Sem uma autocrítica sobre o passado recente, um ajuste dos funcionamentos, uma erradicação de alguns protagonistas e mínimos de sintonia com as realidades e as suas necessidades, sem fundamentalismos ideológicos ou lirismos inconsequentes, dificilmente o conjunto obterá resultados positivos. Por mais atrativa que possa ser a cereja no topo do bolo. Em especial quando se instala uma histeria em relação a autarcas que todos os dias têm de colocar a mão na massa das respostas e na manutenção de equilíbrios mínimos de compromisso com a democracia, depois das sementeiras governativas de promoção do Chega, por falta de ação ou de noção nos maus exemplos de exercício de funções públicas.

Por último, a cereja no topo do bolo do governo. É uma evidência que a massa do bolo governativo é fraca. Fraca nos ingredientes. Fraca na execução da receita. Fraca nos resultados e nas suas projeções em estudos de opinião. Pode ser forte na narrativa e na ocupação de lugares do Estado, como sempre, mas só o topo do bolo e as imediações é insuficiente para superar a governação de turno, sem maioria parlamentar. Resta-lhe a circunstância.

Em suma, em vez de debates incansáveis sobre as cerejas para os topos do bolo era bom que a sociedade portuguesa debatesse o bolo, que ingredientes, que receitas e que ambição para outro funcionamento, outras respostas e outros resultados. É que das cerejas até pode rezar a história, mas não se reforça de forma perene o compromisso com a democracia e com o desenvolvimento, persistindo os rabos de palha.

NOTAS FINAIS

A PANDEMIA DO “NÃO VÁ, TELEFONE”. Primeiro foi a pandemia. Não vá, agende. Depois era o covid longo e a deriva de redução da proximidade prosseguiu. Agora, por falta de capacidade de resposta do SNS é o telefone antes de ir. O problema é que não estamos a falar de hábitos de consumo, de apetites, mas de direitos a que os cidadãos contribuintes devem ter: acessos de proximidade a cuidados de saúde. Depois de tantos serviços públicos, agora as grávidas. Não vá, telefone!

JOTAESSE NO FEMINIMO. Quando se divulga que, entre 2002 e 2022, o peso das mulheres nos lugares de direção e gestão de empresas e entidades do setor privado subiu apenas quatro pontos percentuais, para 32%, é de saudar que a Juventude Socialista tenha eleito uma jovem, pelas suas competências e qualidades políticas. Parabéns, Sofia Pereira!