Dalton Trevisan. O anjo irado da literatura brasileira

Dalton Trevisan. O anjo irado da literatura brasileira


Morreu aos 99 anos o escritor que ficou conhecido como o Vampiro de Curitiba, e que, ao longo de quase oito décadas e 50 títulos, autopsiou em vida as tantas figuras que se dissolvem de solidão e mágoa no pano de fundo das mais ordinárias ficções contemporâneas.


Na página mais fria do jornal, as aquisições feitas pela morte nos últimos dias. Os retratos vão desmentindo inutilmente os títulos, e, nos melhores casos, distanciam-se daquela imagem dolorosa que associamos ao fim, a de um rosto em que «a caveira mordia a pele enrugada, pêssego murcho a se crispar em volta do caroço». Basta que os mortos não leiam jornais para que muitos nem saibam o que lhes aconteceu. E se nos cabe dar, semana após semana, esta estranha notícia – que a grande coisa veio e lhes riscou o nome –, também há aqueles, como Dalton Trevisan, que ao longo da vida ergueram uma obra estarrecedora registando eventuais notas de suicídio para pessoas vulgarmente anónimas, uma gente que normalmente não acha o seu nome na secção de obituários. Desta vez, a morte é a dele, a desse escritor que fazia desde há muito uma vida de «severo anacoreta», compondo obsessivamente uma épica do fracasso, sendo o eixo e, talvez involuntariamente, um protagonista de uma mitologia feita de todo o tipo de baixezas, e cultivando um género literário bastante distinto, a que por facilidade chamamos contos, mas que está mais próximo de lapidares crónicas num esforço de vivissecção de uma humanidade «falhada». Morreu na passada segunda-feira, dia 9, aos 99 anos, e a família não adiantou uma causa para a morte. Era mais conhecido já pela sua aversão ao aparato mediático, tendo-se defendido de toda a atenção que a sua obra foi conquistando com uma existência o mais discreta possível, em linha com o «laconismo» narrativo que praticava, sem cedências a qualquer noção romântica, e como um absoluto negativo do fabulismo e das irisações do realismo mágico. Trevisan punha em relevo o lado grotesco da vida, preferindo um humor que de tão negro era quase nefando, e viu bem como o fragmento podia ser bem mais ardiloso que um romance, sendo que, nas quase oito décadas de dedicação à escrita, apenas por uma vez alargou aquela ossatura tão elementar quanto repetitiva, assinando uma novela – A Polaquinha (1985). No prefácio a O vampiro de Curitiba, duas décadas antes, ele vincava a sua opção por esse regime de subtracção: «Há o preconceito de que depois do conto você deve escrever novela e afinal romance. Meu caminho será do conto para o soneto e dele para o haicai». A virtude para ele estava em cinzelar até dar relevo ao martírio, chegar aos ossos e às sínteses, num regime drástico que faz emergir aspectos tragicómicos, e «a um pelo do pícaro», como assinalou Fernando Assis Pacheco. Também ele assinalava como o autor paranaense denunciou a capa de fingimento de uma Curitiba que viu multiplicada várias vezes no tempo da sua vida, ganhando aquela capa de fingimento urbanístico. E então devolveu-se aquela dimensão cruenta, absurda, enfisemática, anacrónica, através de um itinerário que se desenha entre “sangue, riso e lágrimas em sua própria escritura concentrada, sempre em busca da síntese que só um haicai ou um bilhete de suicida pode conter” (Jorge H. Wolff).

Ali nascido, a 14 de junho de 1925, numa família abastada, proprietária de uma fábrica de vidros onde trabalhou antes de se formar em Direito pela então Universidade do Paraná, Trevisan cresceu ambicionando uma carreira de atleta, mas nalgum momento foi engolido pelos livros. Ainda exerceu advocacia durante uns anos, mas não demorou a procurar um canto nos jornais para fazer a mão, primeiro como crítico de cinema e depois como repórter policial. Em 1946, com apenas 21 anos, criou com os amigos Erasmo Pilotto e Poty Lazarotto a revista literária Joaquim, «em homenagem a todos os Joaquins do Brasil». Em três anos, e com 21 números, acabou por se tornar um marco decisivo na actuação literária e crítica da nova geração de escritores, reunindo nas suas páginas um elenco extraordinário de colaboradores, entre eles Antônio Cândido, Mário de Andrade, Candido Portinari, Di Cavalcanti, Carlos Drummond de Andrade ou Vinicius de Moraes. Foi ali que saíram os seus primeiros contos, alguns dos que ele viria a reunir mais tarde no volume que acabou por marcar a sua estreia, Novelas Nada Exemplares (1949), embora antes tenha ele mesmo pago do seu bolso dois pequenos volumes. Mas aquela nota de contenção esteve lá desde o início, tal como a sua cidade natal, «território de mitos cruentos, desagradáveis, indigestos, mas que, pelo que carregam de humano, falam a respeito das partes mais secretas de todos nós», como anotou o crítico literário brasileiro José Castello, que sendo oriundo do Rio de Janeiro, também se radicou em Curitiba. «Somos, todos, seres pequenos e angustiados. A realidade nos massacra», adiantou ele. No entender deste leitor, o itinerário que a obra de Trevisan descreve, obriga a compreender a realidade muito própria desta cidade que, fundada em 1693, durante um largo período foi mais um lugar de passagem, «uma espécie de largo e turbulento corredor para tropeiros, desbravadores, aventureiros e viajantes». Castello refere como foi só dois séculos mais tarde, ao tornar-se capital da província do Paraná, que esta ganhou verdadeiros ares urbanos. «Só se transformou na cidade que hoje conhecemos depois que o urbanista e ex-governador, o inspirado Jaime Lerner, tratou de reinventá-la. Localizada a quase mil metros de altura, Curitiba guarda, com grande recato, o espírito desse passado longínquo, em que foi uma rota de fuga, mas também de conquistas, para mercadores, traficantes, fugitivos e almas penadas.»

Sendo um mestre do mimetismo, o estilo cunhado por Dalton Trevisan, e que fez dele um dos mais admirados e imitados cultores da narrativa como estilhaço, lembra a tal faca só lâmina, de que fala João Cabral de Melo Neto… «assim como uma faca/ que sem bolso ou bainha/ se transformasse em parte/ de vossa anatomia;// qual uma faca íntima/ ou faca de uso interno,/ habitando num corpo/ como o próprio esqueleto// de um homem que o tivesse,/ e sempre, doloroso,/ de homem que se ferisse/ contra seus próprios ossos». É uma escrita que dilacera, que se serve da avareza como um modo de apertar o leitor, sacudi-lo, com golpes curtos, agarrando-o, empurrando-lhe a cara sobre elementos mínimos, numa composição «simultaneamente orgânica e fragmentária, cristalina e arruinada», diz-nos Wolff, enquanto Castello o compara no seu processo a um agiota, com uma habilidade pavorosa, que em vez da elegância, busca os seus materiais do lado mesquinho da existência. «Dalton Trevisan lida, portanto e em diferentes sentidos, com as ruínas da língua brasilis: no seu caso particular, com o uso infatigável de um português castiço castigado — grâce à Dieu — pela lábia fescenina», adianta Wolff. Os seus personagens são exemplos, são sovados e expostos, rasgados e virados do avesso, enquanto Trevisan vai afinando a sua «lira maldizente». Não há uma linha ética, nem são alardeados valores assim ou assado, a prosa é ela mesma um facto, e através dela turva-se a nitidez, o plano foca e desfoca, o narrador dissolve-se na acção, a abordagem é bastante difusa, naquilo que Wolff descreve como «uma poética da crueldade e do grotesco, da repetição e da concentração, parecendo a cada ano mais cruel e mais grotesca, mais iterativa e mais minimalista».

No fundo, Trevisan é o contrário de um asceta, por meio da sua «arqueologia do frívolo e do feio», ele devolve a representação das vidas e da realidade a um quadro de experiência íntima, pungente e dolorosamente subjectiva, e faz isto através de uma inversão magnífica das fórmulas esvaziadas que são cuspidas pelos órgãos de comunicação de massas. A sua matéria-prima são precisamente as frases feitas, os lugares-comuns e os clichês difundidos sem cessar, de tal modo que Berta Waldman, a mais importante intérprete do escritor curitibano, propõe a filiação da sua literatura no campo da pop art, uma vez que esta «também rouba uma linguagem — a imagem comum fabricada pelos meios de comunicação de massas —, também nos fornece a repetição e realiza uma obra dentro de um idioma propositadamente desleixado, que requer a habilidade de trabalhar com os recursos da linguagem e da paisagem da cultura popular». Dalton Trevisan parece assim «servir o feijão aguado em baixela de prata», pela forma como vai saqueando esses recursos banais e os trabalha com um ferocíssimo apuro formal, numa denúncia radical do quadro de representação em que vivemos submersos. Deste modo, e por um efeito de sufocação, ele torna-se um cronista do inferno na terra, detalhando os sinais da sistemática danação a que nos vemos condenados, mostrando-se genial ao devolver qualquer dito alheio, recompondo-o naquela escrita feita de elipses, implícitos, sugestões, que fazem emergir de novo uma consciência crítica do silêncio. Assim, e recorrendo a restos, ruínas e cacos, salva-nos da inexpressão, desse cemitério de uma linguagem ordenada segundo estereótipos e frases feitas, camisas-de-forças, uma «fala falida» que não permite aos réus dizerem nada em sua defesa. Parecendo à primeira vista um executor ou um cangalheiro, na verdade, Trevisan é uma espécie de anjo irado, que anda pelo submundo e pelos antros onde se concentram os desgraçados, a colher elementos, exemplos dessa humanidade humilhada, desfeita, de forma a devolver tudo isso na forma de um processo escandaloso para atirar à cara da administração.