O Mário Soares que conheci, respeitei e respeito


Hoje, no reino do politicamente correto, da hipocrisia mais cínica, mais evidente e desavergonhada, seria difícil a muitos – políticos, comentadores, jornalistas, juristas de todas as profissões e simpatias – suportar, facilmente, a sua frontalidade.


Há dias e momentos que nos marcam e que, por isso, quando são relembrados ganham nova atualidade, mesmo que revistam, por vezes, vistos à luz de outros e mais novos tempos, diferentes significados.

Na última semana, muito se falou, e quase sempre bem, mesmo que com diferentes registos, da memória de Mário Soares, a propósito do aniversário do seu nascimento, e isso fez-me relembrar alguns episódios da minha vida em que ele foi, sem dúvida alguma, o principal protagonista.

Recordo o espanto geral causado pela sua presença, inédita num Presidente da República, na abertura de uma conferência organizada pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público destinada a refletir sobre o primeiro ano da entrada em vigor do novo Código de Processo Penal e as implicações que tal reforma, atribuindo a o MP investigação judiciária, inevitavelmente teve depois, na consagração constitucional da sua autonomia.

Recordo, com gratidão, a sua generosa presença no Centro de Estudos Judiciários na apresentação pública do meu livro “Pensar o Ministério Público Hoje”.

Recordo as reuniões que a direção do SMMP com ele manteve regularmente e durante vários anos, para discutir a situação desta magistratura, o sistema judicial em geral e a curiosidade que sempre manifestou pela sua ação e as razões dela.

Recordo, honrado, a proposta que me fez para, com a Fundação Mário Soares, organizar a comemoração conjunta do 25 de Abril em Portugal e na Itália – data em que, também nesse país, foi derrubado o fascismo – e que me permitiu convidar dois filósofos italianos do Direito: Stefano Rodotá e Gianni Vattimo.

A sua presença e intervenções permitiram, então, analisar os caminhos do Direito Penal e o papel e impacto da, então crescente, proatividade da jurisdição penal na vida política democrática na Europa.

Recordo, a um nível mais privado, a minha convocação a Belém, para me pronunciar, previamente, sobre a relevância e atualidade dos temas a incluir em alguns dos discursos que fez em certas cerimónias de abertura do ano judicial, no Supremo Tribunal de Justiça.

Recordo tudo isso e lembro, também, que ele sabia que eu não partilhava, propriamente, de muitas das suas ideias e da sua orientação política, sem que isso em nada o incomodasse.

Recordo que, por vezes, me deixou pregado ao chão e sem resposta e que, em outras, tive, ousadamente, de lhe replicar num tom semelhante, sem daí advirem problemas no relacionamento que mantinha com o SMMP.

Recordo muitas outras estórias – que ainda não é momento de contar – em que nos situámos, serenamente, em planos distintos – o que implicou tomadas de posição antagónicas, sem que ele, alguma vez, tivesse feito refletir tais divergências nas relações descomplexadas e na estima pessoal que me dirigia.

Em momentos decisivos, a sua intervenção foi, acredito, fundamental para reequilibrar o plano já inclinado de certas intervenções públicas de distintos atores e forças institucionais, designadamente quando, em dada altura, o poder judicial e as autoridades judiciárias passaram a ser vistas como “forças de bloqueio”.

Reler, por isso, na Revista do Ministério Público, alguns dos seus discursos nas cerimónias de abertura do ano judicial, permitirá, porventura, a muitos magistrados mais novos e alguns juristas e políticos com uma visão muito crítica dos princípios que orientam o nosso modelo de Justiça de inspiração continental, compreender melhor o pensamento de Mário Soares sobre as relações entre o poder político e o poder judicial.

Estou certo de que – à margem de algumas das suas intervenções circunstanciais de pendor puramente mediático – muitos se surpreenderão com a clareza do seu pensamento sobre este tema.

Soares teorizou e explanou metodicamente o que pensava sobre a necessidade de um rigor exemplar no relacionamento institucional da Justiça com os outros órgãos de soberania e destes com a Justiça, e a importância que tal correção sempre reveste numa Democracia que, como ele refere em tais discursos, só consegue realizar-se, plenamente, no respeito pelo Estado de Direito.

Por tal razão, mesmo que nem sempre compreendesse e aceitasse bem certas decisões concretas da Justiça – quem nunca assim pensou que atire a primeira pedra – e o dissesse de viva voz, criando por vezes problemas relativamente sérios às autoridades judiciais, rapidamente superava esses seus estados de alma e os problemas que deles decorriam, para, no plano institucional, repor os equilíbrios que defendia teoricamente.

Fui, pois, num ou noutro caso, testemunha – e mesmo interveniente – em algumas situações emocionais que ele gerava em muitas individualidades, mas que, rapidamente, e com toda a racionalidade e diplomacia, remediava depois.

Posso, por isso, dizer que, se o seu caráter o levava, por vezes, a superar certos limites, a sua ponderação posterior e, sobretudo, a sua racionalidade democrática o levavam a procurar, de imediato, aquietar as tempestades que, não raro, o seu temperamento, voluntária ou involuntariamente. desencadeava.

Hoje, no reino do politicamente correto, da hipocrisia mais cínica, mais evidente e desavergonhada, seria, estou certo, difícil a muitos – políticos, comentadores, jornalistas, juristas de todas as profissões e simpatias – suportar e encarar, facilmente, a sua frontalidade.

Conviver  social e intelectualmente com um tal homem, um tal político, nunca foi fácil, sendo, no entanto, sempre estimulante.

Os políticos democráticos de antes eram assim; se o não tivessem sido, nunca teriam, com a coragem moral e física que demonstraram, afrontado a ditadura fascista e os seus aparelhos repressivos: tribunais políticos, polícias secretas e milícias armadas.   

O Mário Soares que conheci, respeitei e respeito


Hoje, no reino do politicamente correto, da hipocrisia mais cínica, mais evidente e desavergonhada, seria difícil a muitos – políticos, comentadores, jornalistas, juristas de todas as profissões e simpatias – suportar, facilmente, a sua frontalidade.


Há dias e momentos que nos marcam e que, por isso, quando são relembrados ganham nova atualidade, mesmo que revistam, por vezes, vistos à luz de outros e mais novos tempos, diferentes significados.

Na última semana, muito se falou, e quase sempre bem, mesmo que com diferentes registos, da memória de Mário Soares, a propósito do aniversário do seu nascimento, e isso fez-me relembrar alguns episódios da minha vida em que ele foi, sem dúvida alguma, o principal protagonista.

Recordo o espanto geral causado pela sua presença, inédita num Presidente da República, na abertura de uma conferência organizada pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público destinada a refletir sobre o primeiro ano da entrada em vigor do novo Código de Processo Penal e as implicações que tal reforma, atribuindo a o MP investigação judiciária, inevitavelmente teve depois, na consagração constitucional da sua autonomia.

Recordo, com gratidão, a sua generosa presença no Centro de Estudos Judiciários na apresentação pública do meu livro “Pensar o Ministério Público Hoje”.

Recordo as reuniões que a direção do SMMP com ele manteve regularmente e durante vários anos, para discutir a situação desta magistratura, o sistema judicial em geral e a curiosidade que sempre manifestou pela sua ação e as razões dela.

Recordo, honrado, a proposta que me fez para, com a Fundação Mário Soares, organizar a comemoração conjunta do 25 de Abril em Portugal e na Itália – data em que, também nesse país, foi derrubado o fascismo – e que me permitiu convidar dois filósofos italianos do Direito: Stefano Rodotá e Gianni Vattimo.

A sua presença e intervenções permitiram, então, analisar os caminhos do Direito Penal e o papel e impacto da, então crescente, proatividade da jurisdição penal na vida política democrática na Europa.

Recordo, a um nível mais privado, a minha convocação a Belém, para me pronunciar, previamente, sobre a relevância e atualidade dos temas a incluir em alguns dos discursos que fez em certas cerimónias de abertura do ano judicial, no Supremo Tribunal de Justiça.

Recordo tudo isso e lembro, também, que ele sabia que eu não partilhava, propriamente, de muitas das suas ideias e da sua orientação política, sem que isso em nada o incomodasse.

Recordo que, por vezes, me deixou pregado ao chão e sem resposta e que, em outras, tive, ousadamente, de lhe replicar num tom semelhante, sem daí advirem problemas no relacionamento que mantinha com o SMMP.

Recordo muitas outras estórias – que ainda não é momento de contar – em que nos situámos, serenamente, em planos distintos – o que implicou tomadas de posição antagónicas, sem que ele, alguma vez, tivesse feito refletir tais divergências nas relações descomplexadas e na estima pessoal que me dirigia.

Em momentos decisivos, a sua intervenção foi, acredito, fundamental para reequilibrar o plano já inclinado de certas intervenções públicas de distintos atores e forças institucionais, designadamente quando, em dada altura, o poder judicial e as autoridades judiciárias passaram a ser vistas como “forças de bloqueio”.

Reler, por isso, na Revista do Ministério Público, alguns dos seus discursos nas cerimónias de abertura do ano judicial, permitirá, porventura, a muitos magistrados mais novos e alguns juristas e políticos com uma visão muito crítica dos princípios que orientam o nosso modelo de Justiça de inspiração continental, compreender melhor o pensamento de Mário Soares sobre as relações entre o poder político e o poder judicial.

Estou certo de que – à margem de algumas das suas intervenções circunstanciais de pendor puramente mediático – muitos se surpreenderão com a clareza do seu pensamento sobre este tema.

Soares teorizou e explanou metodicamente o que pensava sobre a necessidade de um rigor exemplar no relacionamento institucional da Justiça com os outros órgãos de soberania e destes com a Justiça, e a importância que tal correção sempre reveste numa Democracia que, como ele refere em tais discursos, só consegue realizar-se, plenamente, no respeito pelo Estado de Direito.

Por tal razão, mesmo que nem sempre compreendesse e aceitasse bem certas decisões concretas da Justiça – quem nunca assim pensou que atire a primeira pedra – e o dissesse de viva voz, criando por vezes problemas relativamente sérios às autoridades judiciais, rapidamente superava esses seus estados de alma e os problemas que deles decorriam, para, no plano institucional, repor os equilíbrios que defendia teoricamente.

Fui, pois, num ou noutro caso, testemunha – e mesmo interveniente – em algumas situações emocionais que ele gerava em muitas individualidades, mas que, rapidamente, e com toda a racionalidade e diplomacia, remediava depois.

Posso, por isso, dizer que, se o seu caráter o levava, por vezes, a superar certos limites, a sua ponderação posterior e, sobretudo, a sua racionalidade democrática o levavam a procurar, de imediato, aquietar as tempestades que, não raro, o seu temperamento, voluntária ou involuntariamente. desencadeava.

Hoje, no reino do politicamente correto, da hipocrisia mais cínica, mais evidente e desavergonhada, seria, estou certo, difícil a muitos – políticos, comentadores, jornalistas, juristas de todas as profissões e simpatias – suportar e encarar, facilmente, a sua frontalidade.

Conviver  social e intelectualmente com um tal homem, um tal político, nunca foi fácil, sendo, no entanto, sempre estimulante.

Os políticos democráticos de antes eram assim; se o não tivessem sido, nunca teriam, com a coragem moral e física que demonstraram, afrontado a ditadura fascista e os seus aparelhos repressivos: tribunais políticos, polícias secretas e milícias armadas.