Já escrevi várias vezes sobre a Europa nesta série de artigos. A evolução da cena internacional e a eleição de Trump, impõe voltar ao tema. Falar na atual situação europeia é para mim doloroso, porque se trata de uma realidade sombria e complexa.
A maioria das pessoas pode não ter essa noção, mas no seu conjunto, o PIB dos 27 países da UE (agregado) de mais de 18 biliões de USD (ou seja, 18 milhões de milhões) fazem da União a 2.ª maior economia do Mundo, tendo os EUA um PIB de 27,7 biliões (a que os americanos chamam triliões…) e a China de 17,8.
Com 450 milhões de habitantes, a UE tem uma massa demográfica muito considerável, contando com o maior número de gente educada, informada e bem paga do mundo.
Detemos um nível de vida médio impressionante, três vezes e meio a média da China (40.000 USD contra 12,600).
A União é o maior exportador do mundo de produtos manufaturados e assegura 14% do comércio mundial de mercadorias.
O ponto é que não estamos a crescer: em 50 anos passámos de cerca de 25% do PIB mundial para 17%, ao contrário da China que passou de 2% para 17% …
O nosso crescimento económico é muito inferior ao dos EUA e da China e, a longo prazo, a nossa posição relativa será seguramente pior, se nada for feito.
No entanto, no curto prazo, que é agora, a economia europeia apenas é segunda em relação aos EUA e tem trunfos impressionantes de capacidade industrial , inovação e relacionamento com o resto do mundo.
Tudo isto são dados estatísticos que podem ser encontrados nos sites do Banco Mundial, do FMI ou da Comissão Europeia, mas que não refletem a perceção pública das realidades.
A perceção pública é a de que a Rússia é um terrível inimigo, capaz de nos aniquilar apenas com os raios que saem dos olhos do Sr. Putin.
Na realidade, o PIB Russo é de menos de metade do Alemão e metade do do Reino Unido, pouco superior ao de Espanha.
A Rússia tem 140 milhões de habitantes menos de um terço dos da UE e com um PIB per capita, que também é menos de um terço do nosso, igual ao dos chineses.
A Rússia é, portanto, um país pobre e subdesenvolvido (na gíria das Nações Unidas, em desenvolvimento, mas na realidade, em regressão), mas que calha, tal como a Coreia do Norte, ter armas nucleares. É mesmo o maior detentor de armas nucleares do mundo, com cerca de 6.000 ogivas nucleares. Falta saber se funcionam, mas preferíamos ficar sem saber…
Por razões várias, que vão desde a nostalgia imperial russa até ao ódio do Sr. Putin à experiência democrática ucraniana, os russos invadiram a Ucrânia.
A Europa ficou transida. Transida de medo que a seguir à Ucrânia seja a Finlândia ou os países bálticos; transida porque teve de pôr um (quase …) ponto final na importação de gás natural russo, num momento em que os génios que nos governam decidiram acabar com as centrais termo elétricas a carvão e, com exceção da França, com as centrais nucleares, tudo em nome da transição para uma economia descarbonizada.
Penso que o Sr. Putin decidiu invadir a Ucrânia num momento em que antecipou que a EU não responderia, por estar refém do gás russo. Quase que tinha razão…
Mas a Europa também está transida porque nem dentro das suas fronteiras se entende: desde a crise das dividas soberanas de 2008 a 2014, que a Europa vive numa crise existencial permanente, agravada por um problema insolúvel de imigração, num pano de fundo de subida permanente da extrema-direita.
Os grandes projetos da reação coletiva, como o célebre plano de recuperação e resiliência, não deram em nada, a não ser em mais despesa pública, porque há uma crise permanente do financiamento dos setores sociais e das pensões e, por mais impostos que se cobrem, os Estados não têm dinheiro para acorrer a todos os problemas.
A tudo isto, soma-se a necessidade proclamada de fazer face à transição energética, tendo-se criado o sistema energético mais caro e disfuncional do mundo, o que põe as empresas europeias numa enorme desvantagem concorrencial face aos seus competidores americanos ou chineses.
Como é que se pode esperar desta Europa que, em cima de tudo isto, desenvolva uma estrutura de defesa capaz de ser dissuasiva das aventuras do Sr. Putin e de tantos Srs Putins que pululam por esse mundo fora?
E, no entanto… tem de ser! Se queres a paz, prepara-te para a guerra, diz o velho adágio romano, e é bem verdade.
Quando não se tem força (só soft power, e disso a Europa tinha em abundância) tenta-se apaziguar o inimigo, com bons modos, promessas e o sacrifício dos aliados.
Como dizia Churchill, um apaziguador é alguém que vai alimentando um crocodilo, na esperança de ser o último a ser comido.
Por muitas décadas a Europa viveu feliz debaixo do guarda-chuva nuclear americano. Na verdade, a Europa delegou nos EUA a sua defesa e, até, a definição dos seus objetivos estratégicos, no âmbito da NATO.
Com a reeleição de Donald Trump, esses pressupostos estão em crise. Começa a ser evidente que face à emergência de novos desafios no Pacifico, os EUA se desinteressaram da Europa, sobretudo desde a dissolução da antiga União Soviética.
A Europa hoje está confrontada com um mundo diferente do pós-guerra, um mundo em que o seu poder relativo é visto como fraco a sua capacidade militar como inexistente.
Se a segunda maior potência económica do mundo, dotada de uma localização estratégica soberba, de uma demografia poderosa, de uma indústria pujante, não é capaz de se impor pelo seu peso próprio a uma potência de segunda linha, como a Rússia, e a tenta apaziguar com o sacrifício da Ucrânia, então, temo bem que esperança se nos escape pelos dedos, ou pelos dédalos dos corredores de Bruxelas.
Também não tenho dúvidas de que transformar este gigante de pés de barro numa força temível e considerável, é uma empreitada de grande vulto, ao alcance, só de estadistas verdadeiros e gente que entenda que no mundo actual ou singramos juntos ou perecemos sozinhos.
A geração do pós-guerra, dos Adenauer e dos De Gaulle, há muito que partiu; mesmo a dos implementadores, dos Kohl, Mitterrand, Thatcher, Delors, também já foi. Hoje estamos entregues a gente de menor gabarito, mais refém das reações imediatas das opiniões públicas e da armadilha das redes sociais, que falam muitas línguas mas são incapazes de se entender sobre o essencial.
O essencial é simples: ser o que podemos e temos de ser, um porto de calma no meio da tempestade, uma força para o bem, mas capaz de impor os seus princípios aos seus adversários, uma verdadeira União forte na sua diversidade, um exemplo de democracia e de respeito pelos direitos dos cidadãos.
Nos seus dois milénios e meio de história registada, a Europa ainda tem muito para dar ao mundo e a si própria. Tem é de querê-lo.
Advogado, ex-secretário de estado da Justiça,
subscritor do Manifesto por uma Democracia de Qualidade