Não há nada que não possa ser convertido numa arma improvisada. Um fósforo, uma vela, um charuto, a fivela de um cinto maneiro, o tacão de um sapato de gala, a ponta de um gancho de cabelo, o frasco de um perfume, o tapete-veludo que começou por abafar os passos inaudíveis de quem se aproximou, a caneta com que escrevemos as nossas dívidas de amor, ou até mesmo, recordando esse homicídio perfeito de um dos romances de Camilo Castelo Branco, aquela mulher que mata o velho durante a consumação, trocando o vir-se por ir-se, acelerando tão desmesuradamente o ritmo da andadura que o coração dele não aguentou, servindo-o morto. Os vestígios do abate precedem a definição da morte e a violência, para muitos, a noção de indivíduo e objecto. Uns nascem com ela entalada nos nervos, outros conquistam-na nos canais do sangue, outros, ainda, perdem-na de vista. Mas antes de termos em conta aqueles que a conservam e excitam, provocando-a diariamente, importa pensar como a violência esteve sempre entranhada nas raízes e nos capítulos da criação, contaminando o imaginário e destilando o comportamento de tudo aquilo que tenta permanecer vivo.
“Sob a parábola de uma bola, / uma criança prestes a tornar-se homem, / contemplei lentamente o ar. / A minha mão segura a bola que canta / em meu punho fechado: Abre-me / vê a prenda de matar.”, escreveu Keith Douglas, poeta morto aos 24 anos durante a guerra da Normandia, esboçando a proximidade entre o trajecto desenhado por uma bola e as granadas que voavam nos campos de guerra. São muitas as coisas que não se sabem perigosas, as armas que não dizem o seu nome. A civilização não é senão a construção dessa mesma violência, que encerra em si tanto de natural quanto de arbitrário, pois, contrariamente ao discurso corrente,nenhum lugar a pratica (Hannah Arendt), razão pela qual o mundo evita ter de tocar no assunto e auscultar aquilo que é mais evidente e óbvio para todos.
Provenientes dessa sociedade em que “bater-se é debater-se inutilmente, é ser-se batido/a” (Elsa Dorlin), parece-nos hoje urgente estender a discussão em torno de dois livros para extrairmos deles as suas farpas: “Autodefesa: uma filosofia da violência” de Elsa Dorlin e “O Dogma da Não-Violência” de Rolando D’Alessandro. O primeiro chega-nos com a chancela de Antígona e o segundo com a edição colectiva – rara – de três editoras: Contracapa, Língua Morta e Tigre de Papel. A partir de ambos, percebemos desde logo que são inúmeros os casos de violência desconhecidos, e cada vez mais frequentes. A catástrofe e o desastre converteram-se na nossa nova normalidade. Até agora, serviam-nos de exemplo apenas aqueles descritos continuamente pelo aparelho mediático, cuja seleção deriva da herança de um passado acrítico e da fraca inteligibilidade desses acontecimentos, sugerindo que venham percepcionados, interpretados e reconhecidos moralmente como legítimos aqueles que melhor se encaixam na História. Mais do que um apelo provocador para a violência enquanto defesa, estes dois livros surgem-nos como manifestos imprescindíveis a favor do debate em torno dela. Apelam, sobretudo, para a impossibilidade de nos encostarmos a um sujeito passivo, confortado, distraído face ao futuro pérfido que se adivinha.
Por tudo isto, Elsa Dorlin dedica um capítulo à breve história do porte de armas, demonstrando que esta não representa mais do que as primícias de uma narrativa hegemónica, inscrita e ditada pelos reis, os nobres, os aristocratas e os mercadores, um fetiche sinistro daqueles que nos governam e que têm em vista o desenvolvimento de um sistema sem espaço à partida para a discussão ou contestação dos limites por eles impostos. Comprova-nos que, mais do que uma emergência casual e inesperada, o estado actual da violência resulta precisamente de um sistema venenoso que a partir dela se fundou.
Um dos casos mais complexos que aborda e que à primeira vista parece fugir à regra, é o dos Estados Unidos da América, em que, contrariamente à maioria dos países, sabemos ter sido fundado a partir do direito fundamental de portar armas, com o objectivo de nivelar a autonomização, a auto-preservação e o combate aos privilégios da “mania totalitária”. Porém, apercebemo-nos que esse chavão que pretende aludir a um estado democrático que apoia a preservação dos direitos do indivíduo, em pouco mais se concretiza do que na garantia das respetivas contribuições para o crescimento económico do país. Em 2023, os Estados Unidos da América obtiveram 4,3 milhões de novos proprietários de armas e um lucro, apenas nessa indústria de armas de fogo e munições, que ultrapassou os 944 milhões de dólares. Nessas circunstâncias, o argumento da autodefesa social e nacional, enraizado e “constitutivo da jovem nação americana” representa não só o exemplo de mais um modelo empresarial, como também o próprio ideal de formação da identidade americana, de modo a que os jovens sintam que quanto mais próximos estão desse direito, mais americanos se sentem. “A história do direito à autodefesa armada é inseparável das organizações judiciárias privadas e faz parte de uma genealogia do Estado liberal.” (Elsa Dorlin). Deste modo, ser-nos-ia impossível servirmo-nos desse direito como um verdadeiro confronto contra o Estado, visto que essa mesma possibilidade provém precisamente de uma das suas decisões mais originárias. A execução desse falso direito, não só representaria em si o Estado, na medida em que este lucra, encena, incita, cobiça, controla e prevê a possibilidade da acção individual, como se concretizaria “não acima das leis mas ao lado delas”. Apesar de poder ser encarada como uma proposta mais justa, poder-se-ia arriscar que grande parte daqueles que vêem no direito ao porte de arma alguma proximidade com a vanguarda, procuram-no principalmente com o objectivo de indemnizar o vazio, a desilusão e a impotência que arrastam por dentro, o que por si só não garante a coragem, a força e o alcance necessários para que venham convertidos em resistência. “Acima de tudo, em toda a sua intrínseca legalidade, a arma torna-se o último garante de uma sociedade de iguais e o espectro medonho de uma agência individual que desapareceu” (Jonathan Crary).
Para a investigadora e filósofa francesa, um dos sintomas dessa manobra assenta no modo como se inverteu a distinção entre armas ofensivas e defensivas. Romain Wenz explica-nos que os escudos e as armaduras eram consideradas armas ofensivas porque garantiam a pré-disposição para o combate, enquanto que as armas brancas, “trazidas habitualmente à cintura”, eram tidas como defensivas. Sendo assim, face ao modo como são hoje tidos por defensores aqueles que habitualmente trazem os coletes à prova de bala, os capacetes, as cadeiras giratórias e as carrinhas blindadas, diz-nos Dorlin, “mais do que uma tendência para o monopólio, poderíamos formular a hipótese de uma economia imperial da violência que, paradoxalmente, defende indivíduos a quem já conhece legitimidade para se defenderem por si mesmos. Essa economia mantém a legitimidade de certos sujeitos para usarem a força física, confere-lhes um poder de conservação e de jurisdição (de auto-justiça), concede-lhes licenças para matar”. Logo, torna-se evidente que ante o projecto de um Estado que afirme dispôr das forças de autoridade para proteger os civis, treinando-as, tapando-lhes o rosto e munindo-as de todo o equipamento militar, resta-nos a convicção de que, num momento de confronto em que para um e outro só a vida esteja em jogo, o primeiro – a força reconhecida pelo estado – venha duplamente legitimado e inquestionavelmente beneficiado juridicamente, enquanto que o segundo será sempre visto como uma ameaça selvagem sobre o primeiro. Do mesmo modo, as respostas que nos serão dadas por qualquer cidadão que não pertença ou se reveja nessa minoria incriminada e que arrisque a sua expressão enquanto sujeito político, só poderão coincidir com as do Estado, assim como com as que encontramos frequentemente na boca dos jornalistas e líderes de opinião, porque também este agirá dentro da legalidade que reconhece, do desejo de se ver cumprir moralmente, instituindo desde logo o mundo que quer ver instalado.
“Há, de facto, poucas coisas que são mais assustadoras do que o prestígio cada vez maior dos especialistas que acreditam dispôr de uma mentalidade científica nos conselhos de governo durante as últimas décadas. O problema não é terem sangue frio suficiente para “pensar o impensável”, mas sim não pensarem. (…) A falha lógica nestas construções hipotéticas de acontecimentos futuros é sempre a mesma: o que primeiro aparece como uma hipótese – com ou sem as suas alternativas implícitas, de acordo com o nível de sofisticação – transforma-se imediatamente, geralmente após alguns parágrafos, num facto, o que dá então origem a toda uma série de não-factos semelhantes, com o resultado de que o carácter puramente especulativo de todo o discurso fica esquecido”, denuncia Hannah Arendt em “Sobre a Violência”, reforçando, tal como Rolando D’Alessandro, o modo como o aparelho mediático banaliza e difunde a palavra de ordem da não-violência, construindo os seus argumentos a partir de uma primeira suposição e procurando a partir daí ensinar a opinião pública. “O jornalista / líder de opinião de classe média e com formação universitária tende a ter um discurso politicamente correcto, sensato, fechado à compreensão de qualquer manifestação de conflito que saia dos parâmetros de uma visão do mundo liberal e conciliadora. Pode ser solidário com a raiva de um mineiro que perde o emprego, mas nunca justifica os seus excessos. (…) E adopta sempre, mas sempre, a linguagem dominante, alimentando a criação de figuras que se opõem à normalidade, à conveniência civil: o terrorista, o anti-sistema, o violento” (Rolando d’Alessandro). Surge daí o aperto, o empurrão sobre as figuras que nunca são ouvidas. Anulando-se a possibilidade do indivíduo, produzem-se sujeitos degenerativos, marginalizados e exaustos, que quanto mais avançam, mais se esgotam, e que “quanto mais se defendem, mais se arruinam” (Elsa Dorlin), para sempre estagnados na base de um sistema socialmente degradado. Nascem aos pés de um horizonte de possibilidades extintas, de tal modo distantes, que passam a não depender delas para se reproduzirem. E perdendo-se a possibilidade da reversão, perde-se também a convicção e o desejo da mudança, a urgência de converter a legítima defesa em acções imprevisíveis, criativas, sinérgicas, convidativas e inteligentes, acções verdadeiramente eficazes, proporcionais à força que nos vem infligida e cuja reversão e contraproposta do Estado o comprometa e desequilibre.
Eis a principal razão pela qual se consolidou a ideia de que, à excepção do exército, da polícia e de outras forças de autoridade reconhecidas pelo Estado, a violência existe apenas como licença e privilégio para a nobreza. O povo, coagido e amontoado do outro lado da cidade, não tem senão a opção de se unir na falta de efectividade das greves, das ocupações, das manifestações frouxas e das petições impotentes, dançando e antecipando fatalmente o cântico da derrota, antes de voltarem para casa. “Confundimos a política e o espectáculo, e aquilo a que chamamos ‹‹lutar›› resulta frequentemente num happening: pomo-nos em cena em modo de ‹‹como se››, apresentamo-nos como sujeito que luta… sem gastarmos tempo a questionarmo-nos o que significaria realmente lutar. Como se, na verdade, preferíssemos os ganhos psíquicos e subjectivos – narcísicos – da luta à obtenção de uma vitória real”, vinca Geoffroy de Lagasnerie. Em sociedades como a nossa, de tal modo perturbadas e dependentes da lógica do espectáculo, apercebemo-nos que, muitas vezes, aqueles que anseiam pertencer a uma luta o fazem unicamente através do espírito da imitação das massas, ou através da procura de um reconhecimento moral por trás da covardia que chafurda nas emoções de que pensa ter-se emancipado, sem no entanto chegar sequer a lutar ou a afirmar enquanto força colectiva. Movem-se pelas ruas como se, inconscientemente, bastasse a pertença à mobilidade do grupo, o empréstimo individual da voz excitada e amplificada, sentindo-se útil, sem precisar de se incomodar ou mudar o comportamento. Mesmo assim, quando por vezes se acende um pavio de resistência que procura atingir objectivos concretos e discutir um desacordo legítimo, recorrendo a cenários pacíficos como a ocupação, a denúncia, a desobediência ou o boicote, comprova-se a brutalidade do sistema vigente, uma vez que estes terminam frequentemente com arrastões, distribuições de porrada, espancamentos na esquadra, detenções ou disparos, pois “o seu objectivo é substituir os laços de solidariedade social, a empatia, a compaixão, a aspiração à justiça por um clima de desconfiança, suspeição e de ‹‹cada um por si››” (Rolando D’Alessandro), o que prova que já nem a mera acção pacífica se revela capaz de neutralizar a agressividade do adversário.
“Numa época em que aquilo a que há algumas décadas se chamava escândalo passou a fazer parte da crónica política e económica quotidiana dos nossos países, com bancos que burlam, enganam, esmagam e falsificam; com políticos corruptos e corruptores, multinacionais reincidentes na violação dos direitos humanos, jornalistas mentirosos compulsivos, exércitos que assassinam populações civis, ministros cleptómanos, presidentes putanheiros, reis aniquilados de elefantes, não é de admirar que muito boa gente deseje a instauração do império da lei, considerado como um travão à arrogância dos mais fortes.” (Rolando D’Alessandro).Coroados pela sua permanência, não nos resta outra coisa que o conceito vago de uma violência já aveludada, maquilhada e manipulada, uma palavra que se tornou órfã da língua, frequentemente neutralizada nas suas múltiplas expressões, porque enquanto ideal se tornou símbolo, capaz de apagar o rasto da sua tradição e a potência do seu uso consciente. Em vez disso, veio substituída por um outro formato: a veneração do seu aparecimento recorrente nos videojogos, nos filmes, e nos dados estatísticos que anunciam o aumento das guerras, dos genocídios centenários, dos casos de sem-abrigo e violência doméstica, dos suicídios provocados pelos despejos, da epidemia das depressões e dos ansiolíticos, dos incêndios constantes, das cheias imprevisíveis, dos mais de dez mil imigrantes que morreram no mar durante os últimos dois anos a caminho de Espanha, imagens veladas de um planeta desfigurado e tantas outras que por vários motivos nos escapam à ideia de colapso. Também a economia e o fosso desequilibrado da sua não-distribuição vem encarada por D’Alessandro como um modelo de violência: “Novecentos e vinte e cinco milhões de pessoas passam fome. Oito multinacionais controlam o mercado alimentar mundial com lucros astronómicos. (…) Em 2006, 30 por cento das operações dos mercados financeiros eram efectuadas por algoritmos informáticos sem qualquer intervenção humana. Em 2009, essas operações representavam 60 por cento do total. Em quatro dias circula mais dinheiro nos mercados financeiros do que na economia real durante todo o ano, 90 por cento das trocas de moeda são pura especulação. (…) As fronteiras entre a economia legal, ilegal e ilícita são cada vez mais ténues.”.
Que efeito deveriam ter estes números actualmente, senão o de nos oferecerem o abismo? O colapso? E, no entanto, para uns mais não fazem do que saturá-los, amedrontá-los, cobri-los de ansiedade e paranóia. Para outros, entorná-los sobre o descaso, abafando os diálogos, impedindo a resistência e contornando a possibilidade real da comoção – a capacidade de cada um, verdadeiramente, acreditar em si próprio. “Um facto bem conhecido pode ser tão intolerável que é habitualmente relegado para as margens da lógica, ou, por outro lado, pode estar presente em todos os cálculos e nunca ser admitido como facto, nem dentro da própria mente” (George Orwell). Vivemos dentro de uma ficção sintonizada, uma visão única do mundo que impede qualquer movimento de transformação. O objectivo talvez seja cegar-nos, desviar-nos e projetar-nos para dentro da oferta do próximo número. Retirar-nos a capacidade de pesarmos as suas consequências. Teria sido mais fácil, como propunha Jonathan Crary, se tivéssemos começado por trazer da finitude da vida a alavanca indispensável para o entusiasmo e o propósito da existência, servindo-a de base para a maneira como amamos os outros e deles dependemos? Os novos dicionários já apontam o luto como o “direito de ausência ao serviço ou funções devido a falecimento de familiar ou afim”. Tal como a violência, a morte surge-nos, hoje, enquanto projecção de um tempo sem duração, um tempo em que o tempo não pesa. Entre os que dominam e os que obedecem, os que matam e os que vêem morrer, alimenta-se a ideia de um corpo por natureza desapossado, um corpo-artifício, um corpo-fingido e permanentemente absorto, espelhado nos ecrãs da vida. Todos se esgotam. Todos se encontram emparedados pelo abismo. A partir destas duas noções – a do duplo desaparecimento da morte e do corpo, condição que deveria constar permanentemente na consciência – vem necessariamente de arrasto o fim da arte de a comunicar. O luto, a morte, a violência perderam o seu significado. De todas as funções que a morte sempre teve, talvez tenha perdido a mais determinante e urgente de ser restituída, a sua função pública: a de falar com os homens. Mas e se a morte não for a concepção mais amarga da existência? Para aquele que vier a seguir, não haverá outra opção senão a de partir do zero. “Os homens não melhoraram / e matam-se como percevejos. / Os percevejos heróicos renascem. / Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado. / E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.” (Carlos Drummond de Andrade).