Tenho escrito nestas páginas, na esteira do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade. Queremos melhorar a nossa democracia, aumentando a proximidade entre eleitores e eleitos e promovendo o efectivo escrutínio pela cidadania. Mas há países em que as necessidades são ainda mais básicas, primárias, aflitivamente prementes. Alguns desses países são-nos especialmente próximos, como é o caso de Moçambique.
A União Europeia tem uma Missão de Observação Eleitoral a acompanhar as eleições em Moçambique, país em que tem, aliás, grande experiência. Em 2004, como deputado ao Parlamento Europeu, acompanhei missão semelhante em Maputo, Beira e Nampula. Chefiei também três missões no Equador, em 2007, 2008 e 2009. São missões muito sólidas, com grande capital de sabedoria. Não querem ser polo de controvérsia, mas encontram sempre modo de dizer o que importa dizer. O resto, depois, é com a política.
A declaração preliminar da MOE/UE em 11 de Outubro, dois dias depois das eleições, contém um conjunto de apreciações que, há 15 ou 20 anos, não era habitual surgirem logo com este detalhe. Isto pode ser o efeito natural de as constatações negativas serem de tal magnitude e densidade que era impossível deixá-las para o relatório final. E a divulgação precoce das deficiências podia ser chamada objectiva à administração eleitoral para não agravar o panorama, na fase final de apuramento e proclamação dos resultados.
A missão da UE começa por recordar os graves antecedentes das eleições autárquicas de 2023, que tiveram como alvos salientes Venâncio Mondlane, em Maputo, e Manuel Araújo, em Quelimane: “Na sequência das controvérsias que envolveram as eleições autárquicas de 2023, estas eleições decorreram num contexto de altos níveis de descontentamento e de uma forte exigência popular de reforço do Estado de Direito e de melhoria da administração eleitoral.” A seguir, aponta pontos negativos das eleições de 9 de Outubro: (1) “falta de confiança na imparcialidade e independência da CNE e do STAE”. (2) “desconfiança em relação a outras instituições públicas, incluindo o Conselho Constitucional”. (3) “falta de confiança na fiabilidade dos cadernos eleitorais”. (4) “distorção evidente das condições da campanha”, a favor da FRELIMO, com abuso dos recursos estatais. (5) “casos em que agentes acreditados do PODEMOS não foram autorizados a entrar nas assembleias de voto”. (6) em mesas observadas, “conjuntos de boletins de voto dobrados (…), o que indica um possível enchimento de urnas”. (7) “não reconciliação dos números constantes dos editais”. Passando aos aspectos positivos: (1) “Em geral, a campanha eleitoral desenrolou-se de forma pacífica”. (2) A votação decorreu de forma calma e os procedimentos foram maioritariamente seguidos durante a votação. (3) “A liberdade de expressão foi geralmente respeitada.”
Esta podia ser a síntese: o povo moçambicano está preparado para a democracia, a FRELIMO não. O mais exuberante sinal da maturidade da cidadania está nesta parte: “A sociedade civil esteve ativa em todo o país e foi fundamental para o acesso à informação relacionada com as eleições. (…) O Consórcio Eleitoral para uma Maior Integridade organizou um apuramento paralelo nas províncias de Nampula e Zambézia. De acordo com a última actualização, a CNE acreditou 11.516 observadores nacionais.” E a MOE/UE terminava com um apelo: “A MOE/UE apela à administração eleitoral para que aplique as boas práticas internacionais, publicando os resultados eleitorais desagregados por assembleia de voto, a bem da transparência.”
O sistema de poder respondeu como sabemos: (1) na noite de 18 de Outubro, emboscou e assassinou brutalmente Elvino Dias e Paulo Guambe, figuras muito próximas de Venâncio Mondlane, o mais forte candidato da oposição; (2) não exibe uma só acta eleitoral; (3) e consumou a descarada fraude, ao proclamar a vitória total da FRELIMO.
Fernando Jorge Cardoso, homem independente, professor universitário, especialista em política africana, grande conhecedor de Moçambique, fez na Antena 1 e na RTP3 a melhor síntese da verdade: todos os editais originais foram fotografados e enviados para o Conselho Constitucional e as embaixadas, entre outros destinatários qualificados; os editais mostram, sem margem para dúvidas, que a FRELIMO perdeu e Venâncio Mondlane foi eleito; a FRELIMO desenvolve uma fraude eleitoral, generalizada e organizada.
É isto que a FRELIMO quer esconder e enterrar, cobrindo também assassinatos quando preciso. Vamos deixar? África deixará? A Europa deixará? O mundo conforma-se? Portugal assobia para o lado? A CPLP nada diz? Esta fraude é de proporções venezuelanas, em muito pior, seja pela magnitude dos números e sua arrogante desfaçatez, seja porque já assassinou gente que apenas quer um futuro melhor, no respeito das regras democráticas.
O poder em Moçambique apodreceu: de eleição em eleição, em vez de melhorar, piora. A moda é esconder os editais e apresentar apenas alegados subtotais provinciais e os totais nacionais. (Em Angola, infelizmente é igual.) É a transparência da fraude, porque, como é evidente, só não mostra quem quer esconder; e só quer esconder quem quer roubar. A UE deve adoptar a doutrina de que nunca reconhecerá resultados eleitorais em que os editais não sejam acessíveis e escrutináveis pelas partes e pelos observadores. Fazer diferente disto é aceitar acompanhar fraudes de que, depois, é muito difícil e melindroso libertar-se.
A UE não pode reconhecer os falsos resultados proclamados. Não é verdade que Daniel Chapo tenha sido eleito – nunca será um Presidente da República legítimo. Não é verdade que a FRELIMO tenha elegido 195 deputados, 78% da Assembleia da República. Não é verdade que a FRELIMO tenha elegido todos os 11 governadores provinciais. Estes “resultados” são escandalosa mentira. Todos o sabem. Segundo revelou Fernando Jorge Cardoso, as provas mostram que a FRELIMO só ficou à frente em Gaza e Niassa.
Nestes momentos de dificuldade, crise e transição, é costume identificarem-se duas correntes: as pombas e os falcões. Para a paz, a transição e a democracia, é prioritário, quanto aos do poder, acantonar os falcões e encorajar as pombas. Os falcões dos “negócios dos raptos, da droga e das concessões” estão sentados em cima do país e do povo: só trarão mais desgraça. Têm de sair. Só as pombas trarão a paz.
Como aponta Fernando Jorge Cardoso, a FRELIMO transformou-se de “movimento de libertação nacional em movimento de ocupação nacional”. Passou a intimidar, condicionar e coagir toda a gente, incluindo os seus. É preciso estar ao lado do povo que sofre e libertar também os “libertadores”. No ano em que passam 50 anos da independência, era bom que Moçambique e os moçambicanos acedessem à liberdade e democracia. Já é tempo.