Quartos nos anos 60/70. ‘Não tivemos outra opção. Não tínhamos dinheiro para arrendar uma casa’

Quartos nos anos 60/70. ‘Não tivemos outra opção. Não tínhamos dinheiro para arrendar uma casa’


Desengane-se quem pensa que arrendar quartos é uma coisa atual. Nas décadas de 60 e 70 eram muitas as pessoas que, por questões financeiras, não conseguiam arrendar uma casa, optando por ficar num quarto, mesmo já casadas e com filhos. Foi o caso de Maria Pereira e Maria Lúcio


Maria Pereira, de 83 anos, tinha 17 quando saiu de Grândola rumo à capital para estudar enfermagem. “Naquela altura, a maioridade eram os 21 anos e, por isso, ainda não tinha idade para estudar. O meu pai foi comigo assinar um papel para que me fosse permitido fazê-lo. Ou seja, deu-me a maioridade”, lembra. No entanto, era necessário encontrar um lugar para ficar. Os seus pais tinham um casal conhecido que morava em Lisboa e, por isso, não foi complicado arranjar um quarto. “Fiquei numa casa onde morava o casal, mais duas raparigas e um rapaz um bocadinho mais velhos que eu. Nessa altura, muita gente procurava quartos e, na maior parte das vezes, ficavam em casas de familiares, amigos da família ou conhecidos”, explica.

Maria pagava 500 escudos pelo quarto e estudava no Instituto de Oncologia de Lisboa. “Lembro-me que a casa era na Rua Carlos Mardel, junto à fonte luminosa, na Alameda. Na verdade eu não tinha um quarto. Aquilo era uma despensa com uma cama. O ambiente em casa não era bom. A proprietária era muito má, batia na empregada. Eu não passava lá muito tempo”, revela. Depois de partilhar isso com uma enfermeira chefe, que também era sua professora, esta decidiu ajudá-la. “Mudei-me para casa dela, mas não tinha quarto. Dormia no sofá, mas pagava quase o mesmo que na outra casa”, admite. Apesar disso, o lugar era melhor, devido à proximidade com o Instituto. Depois de algumas confusões com uma superior e um médico, acabou por sair do Instituto e ingressar noutro curso de enfermagem.

“O estágio era no Hospital São José. Acabei por mudar de novo de quarto. Desta vez, fui morar para o lar das enfermeiras do Arco do Cego. Não tínhamos de pagar nada pelo quarto, apenas pelo curso. Se não o terminássemos, eles devolviam o dinheiro”, conta. Maria gostava muito do ambiente da casa. “As freiras eram novas e simpáticas. Até tínhamos bailes e dançávamos rock todas juntas. Nessa altura, não havia rapazes nesses encontros”, acrescenta. Acabou por não terminar o curso, casou-se e engravidou pouco tempo depois. “Como não tínhamos dinheiro para uma casa, fomos morar para um quarto. Não havia outra opção. Não me recordo quanto pagávamos, mas devia ser próximo dos 500 escudos. A senhoria era muito querida e, quando a minha filha nasceu, ajudava-me com ela. Mas depois vim a saber que aquilo era uma antiga casa de prostitutas e quis vir-me embora”, revela. Acabaram por arranjar um pequeno apartamento para a família. 

Viver em ‘partes da casa’ 

Os arrendamentos de quartos nas décadas de 1960 e 1970 eram também conhecidos como “arredamento de partes de casa”, recorda Gonçalo Antunes, professor universitário na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH) e especialista em matérias relacionadas com as políticas de habitação e as dinâmicas do mercado imobiliário. “Na verdade, essa realidade não era nova, sendo que já nas décadas de 1940 e 1950 era público que uma parte substancial das famílias lisboetas viviam em ‘partes de casa’. Estima-se que na década de 1950 essa poderia ser a realidade de cerca de 30% das famílias lisboetas, embora existam conjeturas que nos falam de valores superiores”, explica.

“O funcionamento poderia ser, basicamente, de duas formas: ou o proprietário, por sua iniciativa, decidia arrendar informalmente os vários quartos de uma habitação a diferentes famílias, que partilhavam as restantes divisões, como a casa de banho e cozinha; ou uma determinada família arrendava toda a habitação, sublocando os quartos de que não necessitava e, nesse caso, a cozinha e a casa de banho começavam a ser partilhadas entre os residentes. Portanto, estamos a falar de uma habitação partilhada, por duas ou mais famílias, na maior parte das vezes desconhecidas, sendo que a cada família cabia um quarto, sendo o restante espaço partilhado”, exemplifica o especialista.

Esse foi também o caso de Maria José Lúcio, de 70 anos, natural de Odivelas do Alentejo. Em 1975, pouco tempo depois de se ter casado, o seu marido recebeu uma proposta de trabalho para trabalhar no porto de Sines. “Arrendar casa estava fora do nosso alcance. As rendas eram muito altas, por isso, optámos por ficar num quarto. A renda era de 2500 escudos. Um preço alto para o ordenado do meu marido, que ganhava 7500. Só ele é que trabalhava, eu fazia apenas alguns trabalhinhos de costura. Não havia muitos trabalhos para as mulheres na zona, nessa altura. Ainda estava em expansão”, revela. 

Maria Lúcio acabou, por isso, a partilhar casa com outros casais. “A casa era dividida por mais um casal e a senhoria. Ficámos lá durante dois meses. Depois, mudámos para outro quarto um pouco mais barato. Pagávamos 2000 escudos com as mesmas condições. Depois, mudámo-nos de novo. Pagávamos 1700 por este último quarto. Andámos assim durante um ano. Teve mesmo de ser”, admite. O casal ia encontrando quartos por referência de amigos. “Nessa altura só interessava a nossa residência. Não pediam caução como nos dias de hoje”, explica. Com o nascimento do filho e depois de muitos esforços para não terem de se separar (o marido ficar a trabalhar em Sines, e Maria Lúcio regressar a Odivelas do Alentejo), o gabinete da área de Sines alugou-lhes um T0 em Vila Nova de Santo André onde vive até hoje. “Na altura, ainda estava a ser construída! Não havia água canalizada, luz ou esgotos, mas foi muito bom para nós. Estávamos juntos! Pagávamos 700 escudos”, recorda.

Arrendar um quarto era uma situação quase sempre tida como provisória que apenas sucedia “por incapacidade financeira de arrendar uma casa por inteiro, casa essa que fosse realmente o ‘lar familiar’, em que, verdadeiramente, se pudesse constituir família”. “Penso não ser muito difícil de imaginar os transtornos psicológicos e emocionais que tal situação acarretaria, de dividir, 24 horas por dia, um apartamento de 70 ou 80 metros quadrados com outra família e de ter de partilhar divisões fundamentais como a casa de banho e a cozinha. Veja-se também que estamos a falar do período de uma ditadura conservadora, que não via com bons olhos esta questão de duas ou mais famílias partilharem a mesma casa, com todas as promiscuidades e tensões que inevitavelmente teriam lugar”, nota Gonçalo Antunes.

Poucos recursos financeiros 

Além das casas partilhadas, acrescenta o professor universitário, em meados do século XX o arrendamento era “a forma hegemónica de acesso à habitação”, ou seja, “as cidades eram cidades de inquilinos e não de proprietários de casa própria, como são maioritariamente hoje”. “Portanto, quase todas as famílias acediam a habitação por via do arrendamento, a compra de casa própria era muito rara, e para aqueles que não podiam suportar uma renda por inteiro no centro da cidade, uma das opções era o arrendamento de um quarto”, revela. 

Atualmente este fenómeno também ocorre, mas está particularmente relacionado ou com estudantes universitários em mobilidade, ou com imigrantes. Há algumas décadas, quem procurava este tipo de habitações era, obviamente, a população de menores rendimentos. “Estamos a falar sobretudo de jovens famílias em início de vida, pós casamento, e, também, muito, de famílias com origem no ambiente rural, que participaram no êxodo rural e, ao chegar à cidade, com poucos ou nenhuns recursos financeiros, viam na opção de arrendar um quarto uma das únicas alternativas para aceder à habitação”, conta. De acordo com Gonçalo Antunes, as opções alternativas, na verdade, não eram muitas: podiam passar por montar uma habitação abarracada num bairro de lata, ou arrendar uma casa nos arrabaldes, a grande distância do emprego, “num momento em que a rede de transportes era muito incipiente”.

No que toca aos preços praticados, atualmente os preços das habitações sobem por um conjunto muito alargado de fatores: “Infelizmente, essas subidas têm sido ao longo do último decénio muito acima da inflação”. Na altura, “os preços funcionavam como agora, em grande medida, para simplificar, pelas condições de mercado, ou seja, a oferta e procura, sendo certo que a procura era quase sempre superior à oferta, pelo que os preços eram muito elevados”. “Hoje o tema do acesso à habitação está na ordem do dia, mas deverá ser sublinhado que em meados do século XX o acesso à habitação era tão ou mais difícil do que aquilo que é hoje”, afirma o especialista.

Um dos maiores problemas de que ouvimos falar atualmente é o arrendamento de quartos a mais do que uma pessoa, ficando sobrelotados e sem condições dignas. Isso já acontecia nos anos 60 e 70. “Hoje, essas situações ocorrem sobretudo com imigrantes, em situações de clara sobrelotação de casas e de quartos. Mas essa situação, que hoje está sobretudo relacionada com imigrantes, já foi também o cenário para muitos indivíduos que chegavam a Lisboa, em meados do século passado, por via do êxodo rural, e que acabavam a residir em casas e quartos partilhados, exatamente da mesma forma que hoje sucede com os imigrantes. Há vários relatos disso mesmo, sobretudo no centro de Lisboa”