Em cada «caso» uma  direção estratégia coerente para a realização da justiça


Podemos encarar a Justiça e a sua oscilante e sempre moldável interpretação dos valores e princípios que hão de, em cada momento, prevalecer na sociedade, como tendo a função de, em concreto, aferir e justificar, ou não, as atuações dos que institucional ou informalmente governam e dos que, por estes, são governados.


Podemos encarar a Justiça e a sua oscilante e sempre moldável interpretação dos valores e princípios que hão de, em cada momento, prevalecer na sociedade, como tendo a função de, em concreto, aferir e justificar, ou não, as atuações dos que institucional ou informalmente governam e dos que, por estes, são governados.

  • Depois de ter transmitido uma série ficcionada sobre um caso real acontecido no Reino Unido (RU) denominada «O escândalo dos Correios», a RTP2 exibiu ainda um documentário com entrevistas a alguns dos verdadeiros empregados dessa empresa que haviam sido já retratados na série e que sofrearam, deveras, a atuação da direção daquela empresa na própria carne.

O visionamento de tal documentário tem a vantagem de nos fazer alcançar a indubitável qualidade da série: a qualidade do guião e a da representação dos comportamentos tidos pelos administradores e trabalhadores dos Correios daquele país.

Ele mostra-nos, mais espantosamente ainda do que na série, o cinismo do exercício do poder que os responsáveis pela administração daquela empresa sempre exibiram, mesmo quando confrontados com a Justiça britânica.

O que mais surpreende, além da vergonhosa atitude pessoal assumida por tais responsáveis empresariais ante os seus trabalhadores, foi a possibilidade que lhes foi dada de, continuadamente, sonegarem informação a inspetores internos e externos, a comissões parlamentares de inquérito e, mesmo, à Justiça.

Com isso impossibilitaram, durante anos, a indispensável averiguação dos factos, a identificação da responsabilidade pelos erros e a correção dos procedimentos adotados, que afetaram, financeiramente, não só a vida pessoal dos trabalhadores, como também a da própria a empresa.

Dificultaram, também o mais que podiam, a reparação dos funcionários vítimas da mentira inicial e sucessiva dos Correios, procurando, ainda, diluir a sua culpa relativamente aos erros provocados pelo sistema informático adquirido por eles para gerir o negócio da empresa.

O documentário – na realidade muito bem feito – não esclarece, por fim, o que veio a suceder a tais gestores.

Já assim acontecera, de resto, com a série romanceada; sobre isso, nada.

  • Contou-me um primo que um seu conhecido lhe havia, recentemente, exposto uma teoria pessoal sobre o papel das Forças Armadas (FA) e da Justiça numa ditadura e num regime democrático.

Em suma, tal teoria propunha que as ditaduras são suportadas pelo poder das FA e as democracias pelo poder da Justiça.

Nesta afirmação podem descortinar-se diferentes apreciações sobre o papel daquelas duas instituições: as FA e a Justiça.

No que respeita ao papel das FA, tal afirmação parece de mais fácil compreensão: sem o poder das armas, nenhuma ditadura resiste, politicamente, muito tempo.

Já quanto ao papel da Justiça, tal asserção parece conter alguma duplicidade de sentidos, que importa dilucidar.

Podemos, simplesmente, por um lado, encarar a Justiça e o seu exército de juízes e procuradores como responsáveis pela manutenção na sociedade democrática do respeito devido por todos à lei.

É, institucionalmente, essa a sua função: defender e fazer cumprir por todos a legalidade democrática.

Podemos, ainda, encarar a Justiça e a sua oscilante e sempre moldável interpretação dos valores e princípios que, em cada momento, prevalecem na sociedade, como tendo a função de, em concreto, aferir e justificar as atuações que lhe compete apreciar, validando-as ou não.

Sendo semelhantes e dependendo a última leitura da primeira, na realidade é esta que mais se aproxima da verdade.

Agindo, em alguns casos, por iniciativa própria, não procedendo, no entanto, em outros, a Justiça vai equilibrando ou desequilibrando os pratos da balança onde se situam os interesses que sustentam, em cada momento, o sempre mutável compromisso político-social em que assenta a democracia liberal.

As FA, quando suportam uma ditadura, agem no pressuposto da inquestionável superioridade dos valores que, com verdade ou sem ela, a justificam.

A Justiça, atuando em Democracia, e na sua função de fazer cumprir o estado de direito e a paz social desarmada, tem de manter a sua atuação num plano politicamente menos demarcado, menos óbvio e, por isso, mais instável.

Portanto, num plano mais exposto à crítica.

É o que podemos constatar visionando e refletindo com mais atenção e sentido analítico na série televisiva e no documentário que a completa.

  • A série não põe, diretamente, em causa a legitimidade das decisões fragmentárias de cada um dos tribunais britânicos.

Mostra, contudo, como, mesmo depois do conhecimento da vergonhosa trama criminosa sustentada pelos gestores dos Correios, a Justiça inglesa, ao não lhe ser permitido agir autonomamente, não terá sido chamada a penalizar quem foram, de facto, os responsáveis pelos prejuízos materiais e morais de muitos trabalhadores dos Correios.

Os trabalhadores tiveram, mesmo, de tomar a iniciativa de propor – eles próprios – uma ação cível no tribunal, para que a verdade ficasse evidente e, de alguma maneira, fosse feita Justiça.

Para o fazerem, não tendo eles no seu conjunto meios financeiros suficientes para custear os proibitivos custos do processo, tiveram ainda de se socorrer do «mecenato» de uns fundos financeiros que, no final, guardaram para si uma parte substancial da indemnização que o tribunal lhes atribuiu.

Recordemos, por outro lado, que em Inglaterra o poder para abrir uma investigação criminal pertence à polícia e que esta é tutelada pelo Governo.

Sobre se esta tomou, depois, tal iniciativa, ficámos, contudo, sem saber.

Este «caso» parece ser, assim, o exemplo claro de que, em certas circunstâncias e em certos países, a Justiça, aparentando embora procurar equilibrar os diferentes interesses que se confrontam, na prática, não age, autónoma e coerentemente, para se realizar a si mesma.

  • A nossa Constituição, elaborada já em Democracia e num momento de rutura clara com a filosofia da ditadura que a precedeu, desenhou um sistema bem compensado que permite à Justiça agir autonomamente através da conjugação das atribuições e competências dos seus órgãos: os Tribunais e o Ministério Público.

No sistema português, permite-se, ainda, que o MP atue, articuladamente, nas diversas jurisdições, para que os valores da lei se sobreponham à lei dos valores.

Assim se pretende evitar a formação de um espaço vazio na ação da Justiça, que resulte, precisamente, da falta do poder de iniciativa das vítimas: tal função está atribuída ao MP.

Acontece, na realidade, assim?

Nos últimos anos, procurou-se dar alguns passos nesse sentido sem, contudo, se terem atingido, ainda, muitos dos resultados que se ambicionavam.

Para que resultassem, era preciso que o MP tivesse uma organização diferente e olhasse para a factualidade sobre que tem de atuar, não apenas como um conjunto de processos, tendo cada um o seu titular, mas como um «caso»: um caso complexo, mas um caso, um mesmo caso.

Nesta perspetiva, «um caso» deve ser entendido como referindo-se às necessárias e diversas ações que permitem ao MP encarar, como uma entidade coerente, a sua iniciativa processual nas diferentes jurisdições.

Isto, de molde a que não permaneçam vazios, nem responsabilidades por apurar e a reparar quando se trate de uma mesma atuação ilegal e com implicações diversas ao nível da efetivação das responsabilidades.

 Tal atuação combinada implica uma direção estratégica das diversas iniciativas e intervenções processuais do MP.

Contudo, alguns procuradores continuam a olhar para o «seu» processo como algo cujo fim se esgota nele mesmo.

Deste modo, porém, «o processo de cada magistrado», realizando-se em si mesmo e, unicamente, para si mesmo, não chega, frequentemente, para realizar Justiça.

A Justiça só pode acontecer se, por via de uma atuação estrategicamente concertada, se repuserem os valores que cimentam, em cada momento, a sociedade.

Só assim, podem ser protegidos, mesmo que em diferentes proporções, todos os interesses atingidos por uma mesma ação ilegal.

O limitado conceito de autonomia que muitos magistrados perfilham impede-os, todavia, de procurar e aceitar uma metodologia de trabalho mais integrada e capaz, por isso, de proporcionar um apuramento mais amplo de responsabilidades.

Uma metodologia que cubra toda a complexa dimensão do «caso» submetido à intervenção pacificadora da Justiça.

Não é isso, afinal, o que fazem os bons advogados quando lhes incumbe defender, integral e coerentemente, os direitos e interesses defraudados dos seus clientes?

O Estatuto atual do MP não é perfeito – nenhum o é – mas contem já instrumentos que permitem a esta magistratura agir coerente e articuladamente.

  • PS: O novo Procurador-geral da República – que aqui saúdo vivamente e a quem desejo as melhores felicidades – por ser um homem sério, um magistrado experimentado, ter trabalhado já em diferentes jurisdições, está, seguramente, nas melhores condições para promover uma reflexão interna, e mesmo externa, tendo em vista aproveitar e articular mais eficientemente as diferentes sinergias do sistema judicial-judiciário português e o papel que nele deve ter o MP.

Não podia, pois, ter havido melhor escolha. 

Em cada «caso» uma  direção estratégia coerente para a realização da justiça


Podemos encarar a Justiça e a sua oscilante e sempre moldável interpretação dos valores e princípios que hão de, em cada momento, prevalecer na sociedade, como tendo a função de, em concreto, aferir e justificar, ou não, as atuações dos que institucional ou informalmente governam e dos que, por estes, são governados.


Podemos encarar a Justiça e a sua oscilante e sempre moldável interpretação dos valores e princípios que hão de, em cada momento, prevalecer na sociedade, como tendo a função de, em concreto, aferir e justificar, ou não, as atuações dos que institucional ou informalmente governam e dos que, por estes, são governados.

  • Depois de ter transmitido uma série ficcionada sobre um caso real acontecido no Reino Unido (RU) denominada «O escândalo dos Correios», a RTP2 exibiu ainda um documentário com entrevistas a alguns dos verdadeiros empregados dessa empresa que haviam sido já retratados na série e que sofrearam, deveras, a atuação da direção daquela empresa na própria carne.

O visionamento de tal documentário tem a vantagem de nos fazer alcançar a indubitável qualidade da série: a qualidade do guião e a da representação dos comportamentos tidos pelos administradores e trabalhadores dos Correios daquele país.

Ele mostra-nos, mais espantosamente ainda do que na série, o cinismo do exercício do poder que os responsáveis pela administração daquela empresa sempre exibiram, mesmo quando confrontados com a Justiça britânica.

O que mais surpreende, além da vergonhosa atitude pessoal assumida por tais responsáveis empresariais ante os seus trabalhadores, foi a possibilidade que lhes foi dada de, continuadamente, sonegarem informação a inspetores internos e externos, a comissões parlamentares de inquérito e, mesmo, à Justiça.

Com isso impossibilitaram, durante anos, a indispensável averiguação dos factos, a identificação da responsabilidade pelos erros e a correção dos procedimentos adotados, que afetaram, financeiramente, não só a vida pessoal dos trabalhadores, como também a da própria a empresa.

Dificultaram, também o mais que podiam, a reparação dos funcionários vítimas da mentira inicial e sucessiva dos Correios, procurando, ainda, diluir a sua culpa relativamente aos erros provocados pelo sistema informático adquirido por eles para gerir o negócio da empresa.

O documentário – na realidade muito bem feito – não esclarece, por fim, o que veio a suceder a tais gestores.

Já assim acontecera, de resto, com a série romanceada; sobre isso, nada.

  • Contou-me um primo que um seu conhecido lhe havia, recentemente, exposto uma teoria pessoal sobre o papel das Forças Armadas (FA) e da Justiça numa ditadura e num regime democrático.

Em suma, tal teoria propunha que as ditaduras são suportadas pelo poder das FA e as democracias pelo poder da Justiça.

Nesta afirmação podem descortinar-se diferentes apreciações sobre o papel daquelas duas instituições: as FA e a Justiça.

No que respeita ao papel das FA, tal afirmação parece de mais fácil compreensão: sem o poder das armas, nenhuma ditadura resiste, politicamente, muito tempo.

Já quanto ao papel da Justiça, tal asserção parece conter alguma duplicidade de sentidos, que importa dilucidar.

Podemos, simplesmente, por um lado, encarar a Justiça e o seu exército de juízes e procuradores como responsáveis pela manutenção na sociedade democrática do respeito devido por todos à lei.

É, institucionalmente, essa a sua função: defender e fazer cumprir por todos a legalidade democrática.

Podemos, ainda, encarar a Justiça e a sua oscilante e sempre moldável interpretação dos valores e princípios que, em cada momento, prevalecem na sociedade, como tendo a função de, em concreto, aferir e justificar as atuações que lhe compete apreciar, validando-as ou não.

Sendo semelhantes e dependendo a última leitura da primeira, na realidade é esta que mais se aproxima da verdade.

Agindo, em alguns casos, por iniciativa própria, não procedendo, no entanto, em outros, a Justiça vai equilibrando ou desequilibrando os pratos da balança onde se situam os interesses que sustentam, em cada momento, o sempre mutável compromisso político-social em que assenta a democracia liberal.

As FA, quando suportam uma ditadura, agem no pressuposto da inquestionável superioridade dos valores que, com verdade ou sem ela, a justificam.

A Justiça, atuando em Democracia, e na sua função de fazer cumprir o estado de direito e a paz social desarmada, tem de manter a sua atuação num plano politicamente menos demarcado, menos óbvio e, por isso, mais instável.

Portanto, num plano mais exposto à crítica.

É o que podemos constatar visionando e refletindo com mais atenção e sentido analítico na série televisiva e no documentário que a completa.

  • A série não põe, diretamente, em causa a legitimidade das decisões fragmentárias de cada um dos tribunais britânicos.

Mostra, contudo, como, mesmo depois do conhecimento da vergonhosa trama criminosa sustentada pelos gestores dos Correios, a Justiça inglesa, ao não lhe ser permitido agir autonomamente, não terá sido chamada a penalizar quem foram, de facto, os responsáveis pelos prejuízos materiais e morais de muitos trabalhadores dos Correios.

Os trabalhadores tiveram, mesmo, de tomar a iniciativa de propor – eles próprios – uma ação cível no tribunal, para que a verdade ficasse evidente e, de alguma maneira, fosse feita Justiça.

Para o fazerem, não tendo eles no seu conjunto meios financeiros suficientes para custear os proibitivos custos do processo, tiveram ainda de se socorrer do «mecenato» de uns fundos financeiros que, no final, guardaram para si uma parte substancial da indemnização que o tribunal lhes atribuiu.

Recordemos, por outro lado, que em Inglaterra o poder para abrir uma investigação criminal pertence à polícia e que esta é tutelada pelo Governo.

Sobre se esta tomou, depois, tal iniciativa, ficámos, contudo, sem saber.

Este «caso» parece ser, assim, o exemplo claro de que, em certas circunstâncias e em certos países, a Justiça, aparentando embora procurar equilibrar os diferentes interesses que se confrontam, na prática, não age, autónoma e coerentemente, para se realizar a si mesma.

  • A nossa Constituição, elaborada já em Democracia e num momento de rutura clara com a filosofia da ditadura que a precedeu, desenhou um sistema bem compensado que permite à Justiça agir autonomamente através da conjugação das atribuições e competências dos seus órgãos: os Tribunais e o Ministério Público.

No sistema português, permite-se, ainda, que o MP atue, articuladamente, nas diversas jurisdições, para que os valores da lei se sobreponham à lei dos valores.

Assim se pretende evitar a formação de um espaço vazio na ação da Justiça, que resulte, precisamente, da falta do poder de iniciativa das vítimas: tal função está atribuída ao MP.

Acontece, na realidade, assim?

Nos últimos anos, procurou-se dar alguns passos nesse sentido sem, contudo, se terem atingido, ainda, muitos dos resultados que se ambicionavam.

Para que resultassem, era preciso que o MP tivesse uma organização diferente e olhasse para a factualidade sobre que tem de atuar, não apenas como um conjunto de processos, tendo cada um o seu titular, mas como um «caso»: um caso complexo, mas um caso, um mesmo caso.

Nesta perspetiva, «um caso» deve ser entendido como referindo-se às necessárias e diversas ações que permitem ao MP encarar, como uma entidade coerente, a sua iniciativa processual nas diferentes jurisdições.

Isto, de molde a que não permaneçam vazios, nem responsabilidades por apurar e a reparar quando se trate de uma mesma atuação ilegal e com implicações diversas ao nível da efetivação das responsabilidades.

 Tal atuação combinada implica uma direção estratégica das diversas iniciativas e intervenções processuais do MP.

Contudo, alguns procuradores continuam a olhar para o «seu» processo como algo cujo fim se esgota nele mesmo.

Deste modo, porém, «o processo de cada magistrado», realizando-se em si mesmo e, unicamente, para si mesmo, não chega, frequentemente, para realizar Justiça.

A Justiça só pode acontecer se, por via de uma atuação estrategicamente concertada, se repuserem os valores que cimentam, em cada momento, a sociedade.

Só assim, podem ser protegidos, mesmo que em diferentes proporções, todos os interesses atingidos por uma mesma ação ilegal.

O limitado conceito de autonomia que muitos magistrados perfilham impede-os, todavia, de procurar e aceitar uma metodologia de trabalho mais integrada e capaz, por isso, de proporcionar um apuramento mais amplo de responsabilidades.

Uma metodologia que cubra toda a complexa dimensão do «caso» submetido à intervenção pacificadora da Justiça.

Não é isso, afinal, o que fazem os bons advogados quando lhes incumbe defender, integral e coerentemente, os direitos e interesses defraudados dos seus clientes?

O Estatuto atual do MP não é perfeito – nenhum o é – mas contem já instrumentos que permitem a esta magistratura agir coerente e articuladamente.

  • PS: O novo Procurador-geral da República – que aqui saúdo vivamente e a quem desejo as melhores felicidades – por ser um homem sério, um magistrado experimentado, ter trabalhado já em diferentes jurisdições, está, seguramente, nas melhores condições para promover uma reflexão interna, e mesmo externa, tendo em vista aproveitar e articular mais eficientemente as diferentes sinergias do sistema judicial-judiciário português e o papel que nele deve ter o MP.

Não podia, pois, ter havido melhor escolha.