Querido inimigo. Quando a amizade dá lugar ao rancor

Querido inimigo. Quando a amizade dá lugar ao rancor


Ben-Hur e Messala, Dante e Cavalcanti, John Adams e Thomas Jefferson, Lennon e McCartney: há amizades que não resistem ao tempo e, passado o prazo de validade, transformam-se em ódios viscerais.


O coração tem as suas razões que a razão desconhece”, escreveu em meados do século XVII o matemático e filósofo francês Blaise Pascal. Os motivos por que gostamos ou não gostamos de alguém podem permanecer para sempre um mistério. Mas mais misteriosos ainda são os caminhos que levam a que amizades assolapadas se transformem em ódios viscerais.

Como podem dois amigos de infância tornar-se inimigos mortais? Em Ben-Hur, o filme épico de 1959 protagonizado por Charlton Heston e inspirado no romance homónimo de Lew Wallace, Judah Ben-Hur e Messala crescem juntos. O primeiro é o herdeiro de uma rica e influente família judaica de Jerusalém; o segundo é filho do governador romano da Judeia, mas acaba por ficar órfão. Acolhido e criado pela família do amigo, tornam-se inseparáveis – até que Messala vai para Roma para seguir uma carreira militar.

Ao fim de cinco anos, Messala regressa à Judeia já como general, agora incumbido de pacificar a região, e espera contar com a ajuda do amigo. O imperador está atento, e se ele for bem-sucedido terá Roma a seus pés. Para isso, basta-lhe que Ben-Hur denuncie os nomes dos rebeldes que contestam o domínio de Roma. Ben-Hur obviamente recusa. “Faria tudo por ti, Messala. Exceto trair o meu próprio povo”. Os dois velhos amigos separam-se de candeias às avessas.

A oportunidade para mostrar quem é o mais forte não demora a chegar. O novo governador da Judeia desfila pelas ruas de Jerusalém e a família Hur assiste do telhado de sua casa quando há uma telha que se desprende e cai com estrépito lá em baixo. O cavalo do governador assusta-se, o cavaleiro estatela-se no chão e fica gravemente ferido. Messala vai investigar o que se passou e percebe que foi um acidente. Apesar disso, acusa a antiga família adoptiva: Ben-Hur é condenado às galés e a sua mãe e irmã presas.

Mais tarde, o herói da história conhecerá os motivos da condenação pela boca do ex-amigo: “Ao fazer de ti um exemplo desencorajei a traição. Ao condenar sem hesitação um velho amigo tornei-me temido”.

Desta vez é Judah que jura vingança. Depois de três anos torturantes nas galés será ainda vendido como escravo e finalmente liberto. O confronto final dá-se na pista do circo máximo, numa corrida de quadrigas – carruagens puxadas por quatro cavalos. Numa das cenas mais famosas da história do cinema, Messala e Judah seguem lado a lado a uma velocidade alucinante. Messala leva vantagem, até porque a sua carruagem está equipada com lâminas que destroem as rodas das carruagens dos adversários – e ele não têm escrúpulos em recorrer a esse expediente, ou ao chicote, para afastar a concorrência. Os antigos amigos, criados como irmãos, travam uma corrida que é mais que uma corrida, é uma luta de morte que não pode acabar bem.

Assassínio Poético

Fora da ficção, mesmo que sem chegar aos extremos de Ben-Hur e Messala, não é incomum as amizades azedarem. No seu livro Desamigados ou como cancelar amizades sem carregar no botão (ed. Tinta da China), António Mega Ferreira conta 11 histórias de amizades “que se transformaram em inimizades ferozes, começando com César e Bruto (embora este fosse adoptado pelo grande general e ditador, acabou por fazer parte da conspiração que assassinou César com 23 facadas), e terminando com o “divórcio” entre García Marques e Vargas Llosa.

Outro dos casos apresentados por Mega Ferreira é o de Dante Alighieri e Guido Cavalcanti, também poeta e um membro da “elite aristocrática dominante”, na Florença do século XIII. Cavalcanti, reconhecendo o talento invulgar de Dante, ter-lhe-á dirigido sete poemas. Dante, cerca de dez anos mais jovem, respondeu na mesma moeda:

“Guido, eu queria que tu e Lapo e eu/ fôssemos tomados por encantamento/ e postos numa nave que a qualquer vento/ andasse pelos mares ao gosto vosso e meu”.

E na Vida Nova, a sua obra de juventude, chama a Cavalcanti “primo de li miei amici”, “o primeiro dos meus amigos”. Isto por volta de 1292 ou 93. Poucos anos depois, em julho de 1300, as coisas azedavam, “quando, na sequência de graves confrontações públicas entre partidários dos Cerchi e dos Donati, os priori [a mais alta magistratura da cidade] se viram obrigados a expulsar de Florença oito chefes da fação ligada aos Donati […] e sete do bando dos Cerchi, nomeadamente Guido Cavalcanti. Dante votou a favor da expulsão dos 15 desordeiros, entre os quais se contava aquele que tivera como seu «primo amico»”.

Cavalcanti morreu de malária nesse verão de 1300. Na Divina Comédia, Dante coloca o pai do amigo de juventude a perguntar novas dele ao narrador. Este não quer dizer ao velho que o filho morreu, e por isso fica num comprometedor silêncio. Mais: embora Dante não o diga, deixa subentendido que o lugar daquele será no inferno. “Dante faz figurar Cavalcanti, ainda que in absentia, no Inferno, lugar dos mortos condenados à expiação eterna. É portanto um assassínio poético”, conclui Mega Ferreira.

Amizade, rivalidade e reconciliação

A política é indiscutivelmente um campo fértil de rivalidades e facadas nas costas. Avançando para finais do século XVIII, a relação entre dois dos ‘pais fundadores’ da democracia americana teve um percurso acidentado. Thomas Jefferson e John Adams assinaram lado a lado a Declaração da Independência e estiveram juntos em França como diplomatas durante a presidência de George Washington (ver texto das págs. 4-5).

O clima de amizade haveria de terminar de forma abrupta quando Jefferson se candidatou contra Adams em 1796. Adams venceu e sucedeu a Washington na Casa Branca. Mas na eleição seguinte, em 1800, reeditando-se a corrida, foi Jefferson quem ganhou. A rivalidade manteve-se muito para lá das respetivas presidências, mas Jefferson e Adams haveriam de reconciliar-se na última década das suas vidas. Acabariam por morrer ambos no dia 4 de julho de 1826.

Quando velhos amigos se zangam é natural que antigas quezílias e conflitos reprimidos emerjam à superfície e vejam a luz do dia. Paul e John conheciam-se desde os 15 anos e 16 anos, respetivamente, desde o dia em que um amigo comum convidara Paul para ver a banda de John, The Quarrymen, a tocar numa igreja de Liverpool.

Paul, impressionado com o líder da banda, não quis ficar só a assistir. Chegou-se à frente, subiu os degraus que davam acesso ao palco e pediu para os acompanhar na guitarra. John gostou e a partir daí passaram a tocar juntos. Estava formado o núcleo original dos Beatles.

Alguns anos depois, consumada a dissolução da banda, as coisas entre os dois azedaram. Paul telefonava a John e este respondia com sete pedras na mão: ‘What the fuck d’you want, man?’.

Na origem do desentendimento terão estado questões pessoais, financeiras e artísticas. Nunca ninguém disse que era fácil lidar com o sucesso.

Numa das suas músicas a solo, How Do You Sleep?, Lennon questionava como é que McCartney conseguia dormir descansado. E noutra ocasião afirmou, de forma deselegante e injusta, que ‘Yesterday’ tinha sido a única música de jeito composta pelo companheiro.

John e Paul acabariam por normalizar as relações e reconciliar-se – McCartney reconheceu que teria sido ainda mais difícil lidar com o inesperado assassínio de Lennon caso a hostilidade se mantivesse encarniçada.

No final de contas, Adams perdoou a Jefferson, Paul perdoou a John… e até Judah Ben-Hur perdoou a Messala, quando este se encontrava à beira da morte, depois de ter sido espezinhado pelos seus próprios cavalos. As amizades podem não durar para sempre. Mas o rancor também não.