Há travessias aquáticas que mercamos em bilhetes de ida e volta, esquecendo que assim partilhamos o destino dos poucos (Orfeu, Dioniso, Psiquê,…) que transportados por Caronte tiveram talento para regressar da visita ao Aqueronte, sem nele terem deixado os sonhos e desejos não consumados em vida. Até nas quotidianas viagens de ida e volta há Mestres que, mais do dar-nos troco, nos devolvem o sentido da vida. Evoquemos um que deixou escritas alegorias que, tantos séculos volvidos, não deixam de nos interpelar pela via do sorriso:
“Estando o Corregedor nesta conversa com o Arrais infernal chegou um Procurador, carregado de livros, e diz o Corregedor ao Procurador:
CORREGEDOR – Ó senhor Procurador!
PROCURADOR – Beijo-vos as mãos, Juiz! Que diz este barqueiro? Que diz?
DIABO – Que sereis bom remador. Entrai, bacharel doutor, E ireis a dar à bomba.
PROCURADOR – Este barqueiro zomba…Gostais de ser gozador? Essa gente que aí está, Para onde a levais?
DIABO – Para as penas infernais.
PROCURADOR – Dix! Eu é que não vou para lá! Outro navio ali está, Muito melhor assombrado.
DIABO – Ora estás bem aviado! Entra, em muito má hora!
CORREGEDOR – Confessastes-vos, doutor?
PROCURADOR – Bacharel sou. Não tive tempo! Não pensei que era preciso, Nem de morte a minha dor. E vós, senhor Corregedor?
CORREGEDOR – Eu muito bem me confessei, Mas tudo quanto roubei Encobri ao confessor…
PROCURADOR – …Porque, se o não tornais, Não vos querem absolver, E é muito mau devolver Depois que o apanhais.
DIABO – Pois porque não embarcais?
PROCURADOR – Quia speramus in Deo.
DIABO – Imbarquemini in barco meo… Para quê esperais mais?
Vão-se ambos ao batel da Glória, e, chegando, diz o Corregedor ao Anjo:
CORREGEDOR – Ó barqueiro dos gloriosos, Passai-nos neste batel!
ANJO – Oh! Pragas para papel, E para as almas odiosos! Como vindes preciosos, Sendo filhos da ciência!”
Na quarta-feira Mestre Manuel nos morreu novo, ele que de almadravas e copejo sabia no fazer aquilo que um outro Manuel (Teixeira Gomes) deixou escrito. Indo mais além da Taprobana ensinou, algarviamente, aos japoneses a domesticação do atum. Às travessias emprestava a arte que, numa outra vida profissional, já tinha mostrado aos candidatos a passageiros da noite: muitos eram os escolhidos, poucos os que o mereciam. Aos herdeiros dos municipais que o detiveram em flagrante delito de livre exercício da profissão de pescador, associado a um balde de camarões de Monte Gordo, ensinou, pela via do exemplo, a importância da prova em processo contra-ordenacional: ubi non est principalis non potest esse accessorius. Apresentou-se à hierarquia policial com os camarões comidos, sendo, ainda que a contragosto, sumária e expeditamente inocentado.
Mestre Manuel continua entre nós, a gritar “dá-lhe gás!”, porque sempre nos deu mais do que merecíamos.