Falhas informáticas, teorias da conspiração e microfluídica


Investigadores portugueses aliados a parceiros industriais já exploram a microfluídica, tanto para aplicações industriais, bem como noutros campos, como por exemplo, a engenharia biomédica.


No meio da “batalha” de final de semestre (terminar o semestre e tudo o que isso implica, em tempo útil, mantendo alguma sanidade mental) e uma agenda que parece estar sempre cheia, acedi alegre e ingenuamente ao desafio de escrever um artigo de índole não científica. Com o fim da tarefa a ser arrastado há vários dias porque há sempre algo mais prioritário a fazer, deparei-me com um acontecimento que me fez repensar o rumo da escrita do dito artigo: uma falha global informática provocava constrangimentos um pouco por toda a parte, desde aeroportos a hospitais, em todo o mundo. Numa época em que a inteligência artificial está em voga e o ChatGPT até serve para passear o cão, teorias da conspiração podem facilmente explicar esta falha (que aparentemente resultou de uma atualização mal sucedida) com níveis de complexidade espetaculares, que culminarão no domínio das máquinas sobre a humanidade. Quando chego ao laboratório e me deparo com um equipamento que não funciona porque o computador que controla o seu funcionamento está com um problema começo a pensar que a rebelião das máquinas já está em curso e que, no meu caso, há todo um esquema articulado para que não termine de escrever o artigo.

Teorias da conspiração à parte, é inegável o impacto que a eletrónica trouxe nas nossas vidas: temos aparelhos com processadores cada vez menores e com capacidades cada vez maiores. Basta olharmos para os nossos telemóveis, que usamos para tudo (e às vezes até para fazer ou receber um telefonema). Isso tem um preço: calor gerado no equipamento, que tem de ser dissipado. Os processadores atuais podem ter necessidade de dissipar megawatts por metro quadrado.

Há mais de uma década que o problema se coloca: não há ventoinhas que removam o calor com a taxa requerida, pelo que é necessário encontrar formas mais eficazes de dissipar e, se possível, de reaproveitar esse calor. Empresas como a Amazon, a Apple ou a Microsoft estão a considerar a ligação dos seus “data centers” para aproveitar o calor rejeitado, que poderá ser reutilizado em sistemas de aquecimento na Irlanda, Dinamarca e Finlândia. A solução é aparentemente simples: imergem-se os componentes eletrónicos em líquido que circula em circuito fechado. O líquido transporta o calor do equipamento, onde é indesejado porque prejudica o seu funcionamento e pode inclusivamente causar a sua falha, para um processo secundário onde seja mais útil. O processo é assim termodinâmica e energeticamente mais eficiente.

Existem, porém, algumas restrições, dado que estando em contacto com componentes eletrónicos, o líquido não pode ser condutor elétrico, o que condiciona as suas propriedades térmicas. Mas há alternativas, como aumentar as áreas de contacto do líquido com as superfícies a arrefecer, por exemplo criando microestruturas. As temperaturas de trabalho podem ser suficientemente elevadas para levar o líquido a ferver. A situação é bastante interessante do ponto de vista dos sistemas de arrefecimento dado que, ao ferver, o líquido está a mudar da fase líquida para a gasosa, à custa de energia que vai retirar à fonte mais próxima: o sistema que pretendemos arrefecer. O desafio aqui está em controlar os mecanismos de ebulição, de natureza aleatória, para que o vapor criado (quente e mau condutor térmico) não se acumule nas regiões que queremos arrefecer. Nos sistemas de menores dimensões podem recorrer-se a microcanais (um conhecido fabricante equipamentos eletrónicos da China já usa uma solução comercializável de arrefecimento a líquido nos seus “smartphones”). Estes sistemas, com dimensões características de alguns centímetros, forçam o escoamento do líquido em canais de dezenas ou centenas de micrómetros de diâmetro. As vantagens da microescala são relevantes, dado que possibilitam a redução de recursos materiais e da energia usada para fazer circular o líquido, que é necessário em quantidades diminutas. Neste caso, o controlo do escoamento a duas fases, líquido e vapor, é ainda desafiante dada a facilidade de entupimento dos canais e instabilidade do escoamento, mas o seu potencial de arrefecimento é elevado.

Por cá, investigadores portugueses aliados a parceiros industriais já exploram a microfluídica, tanto para aplicações industriais, bem como noutros campos, como por exemplo a engenharia biomédica. Novos materiais têm também sido explorados para controlar os mecanismos de ebulição e transportar o calor de forma eficiente. Algoritmos genéticos e inteligência artificial, implementados nos processadores dos nossos computadores, fornecem-nos ferramentas úteis para desenhar os microssistemas que nos permitem controlar o escoamento e fabricar equipamentos eficazes e comercialmente competitivos (por exemplo através do fabrico aditivo) que (também) servirão para arrefecer esses mesmos processadores.

O ciclo fecha-se, o computador já funciona e eu consigo finalmente terminar de escrever o artigo.

Professora do Instituto Superior Técnico e Investigadora do IN+ – Centro de Estudos em Inovação Tecnologia e Políticas de Desenvolvimento

Falhas informáticas, teorias da conspiração e microfluídica


Investigadores portugueses aliados a parceiros industriais já exploram a microfluídica, tanto para aplicações industriais, bem como noutros campos, como por exemplo, a engenharia biomédica.


No meio da “batalha” de final de semestre (terminar o semestre e tudo o que isso implica, em tempo útil, mantendo alguma sanidade mental) e uma agenda que parece estar sempre cheia, acedi alegre e ingenuamente ao desafio de escrever um artigo de índole não científica. Com o fim da tarefa a ser arrastado há vários dias porque há sempre algo mais prioritário a fazer, deparei-me com um acontecimento que me fez repensar o rumo da escrita do dito artigo: uma falha global informática provocava constrangimentos um pouco por toda a parte, desde aeroportos a hospitais, em todo o mundo. Numa época em que a inteligência artificial está em voga e o ChatGPT até serve para passear o cão, teorias da conspiração podem facilmente explicar esta falha (que aparentemente resultou de uma atualização mal sucedida) com níveis de complexidade espetaculares, que culminarão no domínio das máquinas sobre a humanidade. Quando chego ao laboratório e me deparo com um equipamento que não funciona porque o computador que controla o seu funcionamento está com um problema começo a pensar que a rebelião das máquinas já está em curso e que, no meu caso, há todo um esquema articulado para que não termine de escrever o artigo.

Teorias da conspiração à parte, é inegável o impacto que a eletrónica trouxe nas nossas vidas: temos aparelhos com processadores cada vez menores e com capacidades cada vez maiores. Basta olharmos para os nossos telemóveis, que usamos para tudo (e às vezes até para fazer ou receber um telefonema). Isso tem um preço: calor gerado no equipamento, que tem de ser dissipado. Os processadores atuais podem ter necessidade de dissipar megawatts por metro quadrado.

Há mais de uma década que o problema se coloca: não há ventoinhas que removam o calor com a taxa requerida, pelo que é necessário encontrar formas mais eficazes de dissipar e, se possível, de reaproveitar esse calor. Empresas como a Amazon, a Apple ou a Microsoft estão a considerar a ligação dos seus “data centers” para aproveitar o calor rejeitado, que poderá ser reutilizado em sistemas de aquecimento na Irlanda, Dinamarca e Finlândia. A solução é aparentemente simples: imergem-se os componentes eletrónicos em líquido que circula em circuito fechado. O líquido transporta o calor do equipamento, onde é indesejado porque prejudica o seu funcionamento e pode inclusivamente causar a sua falha, para um processo secundário onde seja mais útil. O processo é assim termodinâmica e energeticamente mais eficiente.

Existem, porém, algumas restrições, dado que estando em contacto com componentes eletrónicos, o líquido não pode ser condutor elétrico, o que condiciona as suas propriedades térmicas. Mas há alternativas, como aumentar as áreas de contacto do líquido com as superfícies a arrefecer, por exemplo criando microestruturas. As temperaturas de trabalho podem ser suficientemente elevadas para levar o líquido a ferver. A situação é bastante interessante do ponto de vista dos sistemas de arrefecimento dado que, ao ferver, o líquido está a mudar da fase líquida para a gasosa, à custa de energia que vai retirar à fonte mais próxima: o sistema que pretendemos arrefecer. O desafio aqui está em controlar os mecanismos de ebulição, de natureza aleatória, para que o vapor criado (quente e mau condutor térmico) não se acumule nas regiões que queremos arrefecer. Nos sistemas de menores dimensões podem recorrer-se a microcanais (um conhecido fabricante equipamentos eletrónicos da China já usa uma solução comercializável de arrefecimento a líquido nos seus “smartphones”). Estes sistemas, com dimensões características de alguns centímetros, forçam o escoamento do líquido em canais de dezenas ou centenas de micrómetros de diâmetro. As vantagens da microescala são relevantes, dado que possibilitam a redução de recursos materiais e da energia usada para fazer circular o líquido, que é necessário em quantidades diminutas. Neste caso, o controlo do escoamento a duas fases, líquido e vapor, é ainda desafiante dada a facilidade de entupimento dos canais e instabilidade do escoamento, mas o seu potencial de arrefecimento é elevado.

Por cá, investigadores portugueses aliados a parceiros industriais já exploram a microfluídica, tanto para aplicações industriais, bem como noutros campos, como por exemplo a engenharia biomédica. Novos materiais têm também sido explorados para controlar os mecanismos de ebulição e transportar o calor de forma eficiente. Algoritmos genéticos e inteligência artificial, implementados nos processadores dos nossos computadores, fornecem-nos ferramentas úteis para desenhar os microssistemas que nos permitem controlar o escoamento e fabricar equipamentos eficazes e comercialmente competitivos (por exemplo através do fabrico aditivo) que (também) servirão para arrefecer esses mesmos processadores.

O ciclo fecha-se, o computador já funciona e eu consigo finalmente terminar de escrever o artigo.

Professora do Instituto Superior Técnico e Investigadora do IN+ – Centro de Estudos em Inovação Tecnologia e Políticas de Desenvolvimento