A campanha a que tínhamos direito


O debate sobre a Europa foi capturado pela politica nacional, quando não pelas minudências da política nacional. É uma total desvirtuação das eleições para o Parlamento Europeu ver nelas uma desforra de anteriores eleições legislativas nacionais ou eleições antecipadas de futuras eleições legislativas.


Pertenço àquele grupo de cidadãos que entendem que a campanha para as eleições para o Parlamento Europeu não está a ser produtiva porque nela não se estão a discutir as questões que verdadeiramente estão em causa nestas eleições. Estas eleições seriam uma excelente oportunidade para se explicar aos portugueses a participação de Portugal na União e para se discutir o que Portugal pode dar à União e o que a União pode dar a Portugal que não sejam apenas fundos financeiros. Ao contrário, discutem-se assuntos de pura política interna, ou questiúnculas internas, que têm pouca ou nenhuma relevância para as eleições para o Parlamento Europeu. Estou a pensar, a título de exemplo, na inclusão na campanha da “festa” ou “não festa” da viagem do Presidente da Ucrânia a Portugal (assunto que ocupou dois dias da campanha); nas questões da habitação (matéria que os Estados, pelos Tratados, reservaram exclusivamente para a sua soberania e que, portanto, escapam à competência do PE e doutras instituições da União); dos salários em Portugal, que não dependem do PE; das portagens nas SCUTs; de casos judiciais internos; dos contratos dentro do Ministério da Saúde, etc., etc. Oxalá a possibilidade do voto antecipado e a mobilidade no exercício do direito de voto convençam os eleitores de que, apesar de tudo, vale a pena votar e que votar é numa democracia um dever cívico.

Faz falta em Portugal os atores políticos, incluindo os partidos políticos e os candidatos que eles apresentam às eleições europeias, mas com a colaboração dos comentadores e da Comunicação Social, compreenderem que a participação de Portugal na União Europeia não se resume a um mero projeto financeiro de aplicação de fundos ou à circulação de jovens ao abrigo dos programas Erasmus. A União é muito mais do que isso. Ela é um projeto político antes mesmo de ser um profundo projeto económico e social. Quando falamos da União temos de começar por ler os seus Tratados. Ora, basta percorrer os considerandos dos preâmbulos desses Tratados e os seus primeiros artigos para se perceber que a União é, estamos a citar, um profundo e complexo projeto de democracia, de liberdade, de solidariedade na prossecução do progresso económico e social e do bem-estar dos povos dos Estados membros, um compromisso com a Economia Social de Mercado como modelo económico e social da União, um projeto de cidadania comum fundado na identidade europeia e caldeada no muito exigente rol de valores enunciados no artigo 2.º do TUE, e, acima de tudo isso, um projeto político de um espaço descentralizado (graças sobretudo ao princípio da subsidiariedade nas relações entre a soberania dos Estados e o poder supranacional da União) que se encontra já adiantado na sua marcha progressiva para um federalismo descentralizado e cooperativo (“uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa”, dizem os Tratados). Ora, um projeto tão avançado e complexo vale por si e não apenas como uma adenda ao projeto nacional dos Estados. Isso justifica que a participação de Portugal na União deva ser encarada e analisada como um projeto autónomo e de corpo inteiro e não apenas como uma faceta lateral da política interna.

Ora, não é isso que está a acontecer com a campanha eleitoral que está em curso. O debate sobre a Europa foi capturado pela politica nacional, quando não pelas minudências da política nacional. As eleições europeias impunham um debate autónomo sobre a Europa, obviamente que sem ignorar as suas implicações na vida quotidiana nacional. Mas, de um modo geral, e sem generalizar, os atores políticos não têm querido esse debate. É uma total desvirtuação das eleições para o PE ver nelas uma desforra de anteriores eleições legislativas nacionais ou eleições antecipadas de futuras eleições legislativas.

Caso não tivesse sido assim vejamos, até por confronto com o modo como a campanha está a decorrer, por exemplo, na Espanha na França ou na Alemanha, quais deveriam ser as matérias sobre os quais seria necessário conhecer-se a posição dos candidatos a eurodeputados para podermos escolher em quem votar. São matérias que ou têm a ver com a própria função do PE na UE, ou se referem a temas sobre os quais o PE vai ser chamado a pronunciar-se durante o próximo mandato de cinco anos, ou sobre os quais todos nós, cidadãos europeus na terminologia dos Tratados, vamos ter que tomar posição nos tempos mais próximos:

– competência do PE: seria muito importante que os eurodeputados tivessem deixado claro que ideia têm da competência do PE no conjunto global do quadro institucional da União. O PE faz parte de um modelo embrionário de um Congresso bicameral da União que é composto pelo PE e pelo Conselho da União Europeia (que não pode ser confundido com o Conselho Europeu). O PE e este Conselho colegislam e aprovam em conjunto verdadeiros atos legislativos, explicam-nos os artigos 289º e 293º e seguintes do Tratado de Funcionamento da União Europeia. Mas, para além disso, o PE fiscaliza a Comissão Europeia (que pode destituir por uma moção de censura) e examina os relatórios que o Conselho Europeu e o Alto Representante para os Negócios Estrangeiros lhe apresentam sobre a sua atividade. Era necessário que os candidatos a eurodeputados mostrassem que sabem isso, para não termos que ouvir que, como foi defendido entre nós há dias pela cabeça de lista de um partido da extrema esquerda, o Banco Central Europeu devia passar a ser fiscalizado pelo Parlamento Europeu. Se tivesse lido o Protocolo nº 4 anexo ao Tratado de Lisboa sobre o Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu (SEBC) ter-se-ia reparado que os Estados conceberam aquele Banco e os Bancos Centrais nacionais com total independência perante os órgãos políticos dos Estados e da União, respondendo eles apenas perante o Tribunal de Justiça da União Europeia. Não podia ser de outra forma em face das competências do BCE e dos bancos centrais nacionais. É a mesma razão pela qual, pelo SEBC, os governos nacionais não podem destituir os governadores dos respetivos bancos centrais. Como se vê, não é legítimo pedir-se aos eleitores que votem em candidatos que mostram ignorar os Tratados quanto à própria função do PE, ao qual concorrem.

– invasão da Ucrânia: no panorama das relações internacionais o problema da Ucrânia é muito simples, só o complica quem quer. A Ucrânia é um Estado soberano e independente, como tal reconhecido pela Comunidade Internacional e pelas Nações Unidas. Há um século, em 1928, o Pacto Internacional Briand-Kellogg deixou claro que os Estados não adquirem quaisquer direitos pelo uso da força. Portugal foi um dos muitos Estados que aderiram a esse Pacto. Ele foi depois incluído na Carta das Nações Unidas. Esta, para além de proibir o uso da força, veio, no seu artigo 51º, reconhecer ao Estado agredido um “direito natural” à legítima defesa, que depois foi tornado Direito Internacional consuetudinário, e tanto como defesa “individual” como “coletiva”. A prática internacional e a sentença do Tribunal Internacional de Justiça de 27-6-1986 no litígio EUA-Nicarágua confirmaram esse costume internacional obrigatório embora sujeitando-o ao princípio da proporcionalidade. Para o caso concreto da invasão da Ucrânia resulta daí que a Ucrânia, no respeito pelo artigo 51º da Carta da ONU, pode-se defender, com armamento próprio ou facultado por outros Estados, contra o ataque armado da Rússia tanto no interior do seu território como atuando no interior do território do Estado agressor, a Rússia, com o fim específico (em nome da proporcionalidade) de neutralizar e destruir as bases militares e todos os locais que estejam a ser utilizados para daí se atacar a Ucrânia. Até por uma questão de bom-senso não podia ser de outra forma. Isto não é uma questão de geopolítica ou de geoestratégia, que tantas vezes são invocadas para de forma sibilina se propor a rendição da Ucrânia, isto é simplesmente uma questão de Direito Internacional. E nas relações internacionais o que rege as relações entre Estados não é a geopolítica, é o Direito Internacional, sob pena de, doutra forma, transformarmos a Comunidade Internacional numa selva onde os mais pequenos e fracos teriam tudo a perder. Esta é uma questão vital para a paz na Europa. Qual é a posição sobre isso dos partidos portugueses que concorrem às eleições para o PE? Quase todos eles têm fugido à questão.

– defesa europeia: Está provado que a União Europeia deve ter a sua defesa própria. Os Tratados prevêem a criação de uma “defesa comum” da União no quadro da OTAN. Enquanto ela não for criada os Tratados prevêem que a União tenha uma “política comum de segurança e defesa” (artigo 42º do TUE). Essa política comum vai exigir às Forças Armadas de cada Estado membro o reforço dos seus meios militares e humanos, o que os Estados se comprometeram a fazer nos Tratados. Como deve o Estado português reforçar a sua capacidade militar perante o desafio de aumentar a capacidade de defesa da Europa depois da guerra na Ucrânia? Não se sabe o que os candidatos a eurodeputados pensam disso.

– Emigração: A AD, o PS e a IL concordam em que o Pacto sobre Migração e Asilo foi o acordo possível mas que ficaram questões por resolver e que esperam pelo reexame da matéria, como, só a título de exemplo, a da retenção de menores. Até agora não ficou explicado nesta campanha como é que os eurodeputados portugueses lidarão com essas novas matérias quando elas voltarem ao PE;

– Alargamento da União: o próximo alargamento a cerca de dez Estados de leste da Europa está previsto para por volta de 2030 mas terá que ser preparado desde já, portanto, durante o próximo mandato do PE. Portugal não pode criar reticências ao alargamento. As razões que levam esses Estados a pedir agora a adesão são as mesmas que levaram Portugal a requerer em 1977 a adesão que ocorreu em 1986, ou seja, a necessidade de consolidar a Democracia e de promover o desenvolvimento económico e social. Mas o alargamento pode trazer algumas dificuldades a Portugal, dificuldades cujos efeitos têm de ser previamente afastados ou atenuados. O alargamento envolve riscos para Portugal na revisão da Política Agrícola Comum, na nossa continuação no Grupo da Coesão e pode passar o nosso País para contribuinte líquido na União. Tudo problemas muito sérios, que passarão também pelo PE. É difícil de entender que nesta campanha eleitoral até agora ninguém se tenha lembrado deles, nem partidos, nem candidatos, nem comentadores, nem moderadores;

– Pacto Ecológico Europeu e Clima: esta matéria tem de ser ligada à emergência climática e à aprovação em 2021 do Direito Climático Europeu, que pretende que a Europa seja em 2050 o primeiro continente neutro em matéria climática. Para tanto, o PE e o Conselho da União Europeia, como órgãos do Poder legislativo da União, preparam-se para começar a aprovar legislação europeia sobre a matéria. Nessa legislação terão de ser atendidas, de modo especial, as preocupações dos agricultores com este assunto. Como vão os eurodeputados portugueses votar no PE para levarem em conta a especificidade de Portugal perante o Pacto?

– Inteligência artificial: a IA tem aspetos positivos e negativos. A União Europeia foi a primeira a ter um Regulamento sobre a Inteligência Artificial. Ele é comummente considerado um ótimo instrumento para aproveitar a IA para a Economia, a Saúde, a Justiça. Mas, ao mesmo tempo, ele faz questão de na utilização da IA serem respeitados os valores da União, a Ética e os direitos fundamentais que a União reconhece aos cidadãos europeus. Esse Regulamento vai ter de ser seguido por outros atos legislativos. Quais devem ser as linhas fundamentais dessa legislação e como vão os eurodeputados portugueses votar na participação do PE na sua aprovação? Para o PE a IA deve estar ao serviço do Cidadão e do seu Bem-Estar ou vão estes ser vítimas dos malefícios da IA?

Aqui estão algumas das questões sobre as quais seria necessário que os candidatos a eurodeputados tomassem posição para podermos votar neles de modo consciente. Anda estamos a tempo de sermos esclarecidos?

Professor Catedrático Jubilado de Direito Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Cátedra Europeia Jean Monnet ad personam em Direito Constitucional Europeu
Autor de dois manuais em Direito Europeu: Droit de l’Union européenne, (Bruylant. Bruxelas) e Direito da União Europeia (Almedina, Coimbra)

A campanha a que tínhamos direito


O debate sobre a Europa foi capturado pela politica nacional, quando não pelas minudências da política nacional. É uma total desvirtuação das eleições para o Parlamento Europeu ver nelas uma desforra de anteriores eleições legislativas nacionais ou eleições antecipadas de futuras eleições legislativas.


Pertenço àquele grupo de cidadãos que entendem que a campanha para as eleições para o Parlamento Europeu não está a ser produtiva porque nela não se estão a discutir as questões que verdadeiramente estão em causa nestas eleições. Estas eleições seriam uma excelente oportunidade para se explicar aos portugueses a participação de Portugal na União e para se discutir o que Portugal pode dar à União e o que a União pode dar a Portugal que não sejam apenas fundos financeiros. Ao contrário, discutem-se assuntos de pura política interna, ou questiúnculas internas, que têm pouca ou nenhuma relevância para as eleições para o Parlamento Europeu. Estou a pensar, a título de exemplo, na inclusão na campanha da “festa” ou “não festa” da viagem do Presidente da Ucrânia a Portugal (assunto que ocupou dois dias da campanha); nas questões da habitação (matéria que os Estados, pelos Tratados, reservaram exclusivamente para a sua soberania e que, portanto, escapam à competência do PE e doutras instituições da União); dos salários em Portugal, que não dependem do PE; das portagens nas SCUTs; de casos judiciais internos; dos contratos dentro do Ministério da Saúde, etc., etc. Oxalá a possibilidade do voto antecipado e a mobilidade no exercício do direito de voto convençam os eleitores de que, apesar de tudo, vale a pena votar e que votar é numa democracia um dever cívico.

Faz falta em Portugal os atores políticos, incluindo os partidos políticos e os candidatos que eles apresentam às eleições europeias, mas com a colaboração dos comentadores e da Comunicação Social, compreenderem que a participação de Portugal na União Europeia não se resume a um mero projeto financeiro de aplicação de fundos ou à circulação de jovens ao abrigo dos programas Erasmus. A União é muito mais do que isso. Ela é um projeto político antes mesmo de ser um profundo projeto económico e social. Quando falamos da União temos de começar por ler os seus Tratados. Ora, basta percorrer os considerandos dos preâmbulos desses Tratados e os seus primeiros artigos para se perceber que a União é, estamos a citar, um profundo e complexo projeto de democracia, de liberdade, de solidariedade na prossecução do progresso económico e social e do bem-estar dos povos dos Estados membros, um compromisso com a Economia Social de Mercado como modelo económico e social da União, um projeto de cidadania comum fundado na identidade europeia e caldeada no muito exigente rol de valores enunciados no artigo 2.º do TUE, e, acima de tudo isso, um projeto político de um espaço descentralizado (graças sobretudo ao princípio da subsidiariedade nas relações entre a soberania dos Estados e o poder supranacional da União) que se encontra já adiantado na sua marcha progressiva para um federalismo descentralizado e cooperativo (“uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa”, dizem os Tratados). Ora, um projeto tão avançado e complexo vale por si e não apenas como uma adenda ao projeto nacional dos Estados. Isso justifica que a participação de Portugal na União deva ser encarada e analisada como um projeto autónomo e de corpo inteiro e não apenas como uma faceta lateral da política interna.

Ora, não é isso que está a acontecer com a campanha eleitoral que está em curso. O debate sobre a Europa foi capturado pela politica nacional, quando não pelas minudências da política nacional. As eleições europeias impunham um debate autónomo sobre a Europa, obviamente que sem ignorar as suas implicações na vida quotidiana nacional. Mas, de um modo geral, e sem generalizar, os atores políticos não têm querido esse debate. É uma total desvirtuação das eleições para o PE ver nelas uma desforra de anteriores eleições legislativas nacionais ou eleições antecipadas de futuras eleições legislativas.

Caso não tivesse sido assim vejamos, até por confronto com o modo como a campanha está a decorrer, por exemplo, na Espanha na França ou na Alemanha, quais deveriam ser as matérias sobre os quais seria necessário conhecer-se a posição dos candidatos a eurodeputados para podermos escolher em quem votar. São matérias que ou têm a ver com a própria função do PE na UE, ou se referem a temas sobre os quais o PE vai ser chamado a pronunciar-se durante o próximo mandato de cinco anos, ou sobre os quais todos nós, cidadãos europeus na terminologia dos Tratados, vamos ter que tomar posição nos tempos mais próximos:

– competência do PE: seria muito importante que os eurodeputados tivessem deixado claro que ideia têm da competência do PE no conjunto global do quadro institucional da União. O PE faz parte de um modelo embrionário de um Congresso bicameral da União que é composto pelo PE e pelo Conselho da União Europeia (que não pode ser confundido com o Conselho Europeu). O PE e este Conselho colegislam e aprovam em conjunto verdadeiros atos legislativos, explicam-nos os artigos 289º e 293º e seguintes do Tratado de Funcionamento da União Europeia. Mas, para além disso, o PE fiscaliza a Comissão Europeia (que pode destituir por uma moção de censura) e examina os relatórios que o Conselho Europeu e o Alto Representante para os Negócios Estrangeiros lhe apresentam sobre a sua atividade. Era necessário que os candidatos a eurodeputados mostrassem que sabem isso, para não termos que ouvir que, como foi defendido entre nós há dias pela cabeça de lista de um partido da extrema esquerda, o Banco Central Europeu devia passar a ser fiscalizado pelo Parlamento Europeu. Se tivesse lido o Protocolo nº 4 anexo ao Tratado de Lisboa sobre o Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu (SEBC) ter-se-ia reparado que os Estados conceberam aquele Banco e os Bancos Centrais nacionais com total independência perante os órgãos políticos dos Estados e da União, respondendo eles apenas perante o Tribunal de Justiça da União Europeia. Não podia ser de outra forma em face das competências do BCE e dos bancos centrais nacionais. É a mesma razão pela qual, pelo SEBC, os governos nacionais não podem destituir os governadores dos respetivos bancos centrais. Como se vê, não é legítimo pedir-se aos eleitores que votem em candidatos que mostram ignorar os Tratados quanto à própria função do PE, ao qual concorrem.

– invasão da Ucrânia: no panorama das relações internacionais o problema da Ucrânia é muito simples, só o complica quem quer. A Ucrânia é um Estado soberano e independente, como tal reconhecido pela Comunidade Internacional e pelas Nações Unidas. Há um século, em 1928, o Pacto Internacional Briand-Kellogg deixou claro que os Estados não adquirem quaisquer direitos pelo uso da força. Portugal foi um dos muitos Estados que aderiram a esse Pacto. Ele foi depois incluído na Carta das Nações Unidas. Esta, para além de proibir o uso da força, veio, no seu artigo 51º, reconhecer ao Estado agredido um “direito natural” à legítima defesa, que depois foi tornado Direito Internacional consuetudinário, e tanto como defesa “individual” como “coletiva”. A prática internacional e a sentença do Tribunal Internacional de Justiça de 27-6-1986 no litígio EUA-Nicarágua confirmaram esse costume internacional obrigatório embora sujeitando-o ao princípio da proporcionalidade. Para o caso concreto da invasão da Ucrânia resulta daí que a Ucrânia, no respeito pelo artigo 51º da Carta da ONU, pode-se defender, com armamento próprio ou facultado por outros Estados, contra o ataque armado da Rússia tanto no interior do seu território como atuando no interior do território do Estado agressor, a Rússia, com o fim específico (em nome da proporcionalidade) de neutralizar e destruir as bases militares e todos os locais que estejam a ser utilizados para daí se atacar a Ucrânia. Até por uma questão de bom-senso não podia ser de outra forma. Isto não é uma questão de geopolítica ou de geoestratégia, que tantas vezes são invocadas para de forma sibilina se propor a rendição da Ucrânia, isto é simplesmente uma questão de Direito Internacional. E nas relações internacionais o que rege as relações entre Estados não é a geopolítica, é o Direito Internacional, sob pena de, doutra forma, transformarmos a Comunidade Internacional numa selva onde os mais pequenos e fracos teriam tudo a perder. Esta é uma questão vital para a paz na Europa. Qual é a posição sobre isso dos partidos portugueses que concorrem às eleições para o PE? Quase todos eles têm fugido à questão.

– defesa europeia: Está provado que a União Europeia deve ter a sua defesa própria. Os Tratados prevêem a criação de uma “defesa comum” da União no quadro da OTAN. Enquanto ela não for criada os Tratados prevêem que a União tenha uma “política comum de segurança e defesa” (artigo 42º do TUE). Essa política comum vai exigir às Forças Armadas de cada Estado membro o reforço dos seus meios militares e humanos, o que os Estados se comprometeram a fazer nos Tratados. Como deve o Estado português reforçar a sua capacidade militar perante o desafio de aumentar a capacidade de defesa da Europa depois da guerra na Ucrânia? Não se sabe o que os candidatos a eurodeputados pensam disso.

– Emigração: A AD, o PS e a IL concordam em que o Pacto sobre Migração e Asilo foi o acordo possível mas que ficaram questões por resolver e que esperam pelo reexame da matéria, como, só a título de exemplo, a da retenção de menores. Até agora não ficou explicado nesta campanha como é que os eurodeputados portugueses lidarão com essas novas matérias quando elas voltarem ao PE;

– Alargamento da União: o próximo alargamento a cerca de dez Estados de leste da Europa está previsto para por volta de 2030 mas terá que ser preparado desde já, portanto, durante o próximo mandato do PE. Portugal não pode criar reticências ao alargamento. As razões que levam esses Estados a pedir agora a adesão são as mesmas que levaram Portugal a requerer em 1977 a adesão que ocorreu em 1986, ou seja, a necessidade de consolidar a Democracia e de promover o desenvolvimento económico e social. Mas o alargamento pode trazer algumas dificuldades a Portugal, dificuldades cujos efeitos têm de ser previamente afastados ou atenuados. O alargamento envolve riscos para Portugal na revisão da Política Agrícola Comum, na nossa continuação no Grupo da Coesão e pode passar o nosso País para contribuinte líquido na União. Tudo problemas muito sérios, que passarão também pelo PE. É difícil de entender que nesta campanha eleitoral até agora ninguém se tenha lembrado deles, nem partidos, nem candidatos, nem comentadores, nem moderadores;

– Pacto Ecológico Europeu e Clima: esta matéria tem de ser ligada à emergência climática e à aprovação em 2021 do Direito Climático Europeu, que pretende que a Europa seja em 2050 o primeiro continente neutro em matéria climática. Para tanto, o PE e o Conselho da União Europeia, como órgãos do Poder legislativo da União, preparam-se para começar a aprovar legislação europeia sobre a matéria. Nessa legislação terão de ser atendidas, de modo especial, as preocupações dos agricultores com este assunto. Como vão os eurodeputados portugueses votar no PE para levarem em conta a especificidade de Portugal perante o Pacto?

– Inteligência artificial: a IA tem aspetos positivos e negativos. A União Europeia foi a primeira a ter um Regulamento sobre a Inteligência Artificial. Ele é comummente considerado um ótimo instrumento para aproveitar a IA para a Economia, a Saúde, a Justiça. Mas, ao mesmo tempo, ele faz questão de na utilização da IA serem respeitados os valores da União, a Ética e os direitos fundamentais que a União reconhece aos cidadãos europeus. Esse Regulamento vai ter de ser seguido por outros atos legislativos. Quais devem ser as linhas fundamentais dessa legislação e como vão os eurodeputados portugueses votar na participação do PE na sua aprovação? Para o PE a IA deve estar ao serviço do Cidadão e do seu Bem-Estar ou vão estes ser vítimas dos malefícios da IA?

Aqui estão algumas das questões sobre as quais seria necessário que os candidatos a eurodeputados tomassem posição para podermos votar neles de modo consciente. Anda estamos a tempo de sermos esclarecidos?

Professor Catedrático Jubilado de Direito Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Cátedra Europeia Jean Monnet ad personam em Direito Constitucional Europeu
Autor de dois manuais em Direito Europeu: Droit de l’Union européenne, (Bruylant. Bruxelas) e Direito da União Europeia (Almedina, Coimbra)