Um país de prepotências


Ninguém se preocupa em pôr fim ao desprezo com que no público e no privado as pessoas são tratadas.


Nota prévia: O ministro Pinto Luz começou a mexer no fundamental setor da habitação. Os primeiros passos vão no sentido de apoiar jovens da classe média na compra de casa, evitando o desembolso de quantias absurdas de preparos e impostos, até um limite de preço. Há depois ajustamentos que ainda ninguém percebeu, o que é má comunicação ou indício de manipulação. O que se anunciou é insignificante, face à dimensão colossal do problema. Apesar de fragilizado judicialmente, o ministro agiu, não se deixando inibir. Parece haver um esforço pragmático, ao contrário das decisões crípticas da jovem ministra vedeta que o antecedeu. Falta perceber muita coisa, tanto no apoio à construção como ao arrendamento num setor onde é preciso encontrar um difícil equilíbrio entre oferta e procura para todas as classes, sobretudo a dos mais desfavorecidos. Sem esquecer que há também um segmento de luxo essencial à economia nacional. O caminho vai durar muitos anos, possivelmente sem nunca chegar ao fim. Tornar o IHRU (o Instituto de Habitação) uma entidade eficiente pode levar dezenas de anos, se não for extinto e refeito. Esta semana, espera-se, entretanto, que Pinto Luz continue a atuar, anunciando, finalmente, a estratégia para o novo aeroporto de Lisboa, a qual implica uma decisão para o futuro da TAP, que desta vez, se espera sensata.

1, Um dos problemas que se perpetua na sociedade portuguesa é a sistemática prepotência do Estado e de certas empresas sobre o cidadão. A que se soma o desleixo e incompetência com que se tratam casos que a cada um afetam. A falta de respeito, eficácia e profissionalismo estende-se a dezenas de organizações privadas que prestam serviço à população. É o caso dos operadores de comunicações, dos correios, dos bancos, das empresas automóveis, das companhias aéreas, dos transportes públicos, dos fornecedores de energias e por aí fora. Este mundo gigantesco é, em regra, prepotente, despreza os clientes e deixa-os sistematicamente sem soluções. Até que desistam ou se resignem, desde logo porque os reguladores mais não são do que verbos de encher. No Estado, há centenas de entidades incapazes de cumprir com os mínimos, seja na saúde, nos impostos, na justiça, na educação e na prestação dos apoios sociais que estão legislados e prometidos. Nas autarquias dá-se o mesmo. Lisboa é disso exemplo flagrante. A desconsideração, a burocratização dos processos e um desprezo pelos direitos do cidadão tornaram qualquer funcionário de uma grande entidade (pública ou privada) um ser sem vontade e sem autonomia para resolver. Aliás, se a tivesse, também não a quereria provavelmente para evitar responsabilidades. O resultado é a existência de um conjunto incomensurável que vive para o seu interesse pessoal e corporativo, desprezando o serviço ao público. A sobranceria e/ou incapacidade agrava-se. Os meandros de resolução são cada vez mais complexos. A forma de atendimento a estrangeiros imigrantes é repugnante, desumana e geradora de criminalidade até violenta, uma vez que ninguém vive do ar. Com a invenção do atendimento agendado ou pela net, as coisas até se tornam mais complexas. No Estado, já se tornou impossível o cidadão lesado ir ao sítio e dizer duas a quem o destrata, como acontecia há uma década. Passam-se horas ao telemóvel, a carregar em botões, a escrever reclamações às quais ninguém, nenhum chefe, nenhum regulador ou entidade oficial liga. Pontualmente, assuntos graves resolvem-se porque a Lusa, uma televisão, uma rádio ou um jornal influente fazem a denúncia. A desconsideração geral atinge um ponto em que se fica reconhecido àqueles que, por inesperada diligência, tratam bem utentes e clientes. Nada disto é exclusivo da sociedade portuguesa. Há notícias semelhantes em muitos países, nomeadamente do Sul da Europa, o que não admira. É nessas regiões que há menos brilho profissional, menos direitos para a cidadania e onde a prepotência do Estado e dos grandes grupos é maior, beneficiando de cumplicidades às vezes corruptas. Uma das exceções quotidianas onde se presta atenção, conselho e carinho a qualquer utente/cliente são as farmácias, a guarda avançada da Saúde Pública, São poucos ou nenhuns casos em que alguém lá entre e seja mal atendido. Na governança ninguém se preocupa em defender quem é esmagado por estas máquinas. O mais que se faz é mudar os modelos, alterar as grandes linhas da política, anunciar novos procedimentos e programas supostamente inovadores. Porém, a prepotência mantém-se, a ineficácia agrava-se e as pessoas, sobretudo as mais velhas e menos aptas a procedimentos modernos, vão ficando cada vez mais marginalizadas. Uma vez que o Governo está há pouco tempo em funções, talvez seja o momento para mudar, no Estado e no privado, a forma de atender e resolver problemas concretos da vida quotidiana, sem que haja lugar a cunhas ou ao recurso a profissionais habituados a mexer os cordelinhos. O que se pretende é que haja quem ouça e resolva, sem demoras de meses ou anos. Isso, sim, seria reformar. Dito isto, o mais certo é termos de esperar…sentados.

2. A diplomacia e os supostos serviços de informações portugueses acordaram há dias com a notícia de que a Rússia e São Tomé reconfirmaram a cooperação militar que existia durante a descolonização, vai para 50 anos. Não se conhecem pormenores do acordo, que não está ratificado em definitivo em São Tomé. O anúncio prova que Moscovo mantém o interesse por África e os seus recursos, onde está cada vez mais presente, ocupando, nomeadamente, o espaço de que a França vai desertando. Nada que a China não faça também, embora de forma mais sofisticada, construindo infraestruturas e dando crédito. Os são-tomenses são livres de fazerem acordos com quem querem. Mas é bom que se lhes explique que há gestos que podem ter consequências, por exemplo, no processo de imigração e em certos apoios concretos. É que nem sempre é inteligente jogar em todos os tabuleiros. Portugal e a Europa têm de dar um sinal claro de resposta. Paulo Rangel deve fazê-lo, falando baixinho, como se faz nas chancelarias.

3. Aparentemente, o celebrado André Ventura deu um valente tiro no pé ao escolher para cabeça de lista às europeias o embaixador Tânger Correia. A criatura deu uma entrevista surrealista e primariamente antissemita ao Observador em que desenvolve a tese conspirativa de que os judeus não sofreram com o ataque do 11 de Setembro porque foram prevenidos e que Macron é um de boneco nas mãos dos banqueiros Rothschild. O delírio prosseguiu ao ponto de tornar Trump um moderado. É arrepiante pensar que Correia andou pelo mundo a representar um país europeu, moderado e aberto como o nosso. É certo que paranoicos desses há por todo o lado na extrema-direita, assim como há fanáticos comunistas pró-russos que asseguram que os ucranianos são nazis. Tânger Correia é um arauto do “bas-fond” das redes sociais. Só num ponto pode ter razão: há efetivamente o perigo de uma substituição islâmica da sociedade europeia. A entrevista permitiu a Sebastião Bugalho rebater e brilhar numa entrevista à CNN. Se quiser evitar um desastre, Ventura deveria descartar Correia. As europeias poderão consolidar o quadro político português, se os resultados mantiverem três grandes partidos destacados (AD, PS e Chega). Porém, se voltarmos a uma situação mais equilibrada entre AD e PS, com um Chega nos 10%, Ventura entrará em perda. A 9 de junho é ele quem mais tem a perder, porque todos os outros partidos têm candidatos melhores e mais sóbrios do que Tânger Correia.

4. O cinismo da televisão espetáculo é notável. O caso das alegadas agressões a Betty Grafstein por parte da criatura que vive com ela ocupa horas a fio. O “voyeurismo” manteve-se nos canais generalistas, nos de nicho “jet-set” e estendeu-se profusamente aos de informação. Tem sido um regabofe. Ao ponto do exótico concubino dar entrevistas em direto logo que saiu da cadeia, cerca da meia noite (ali não houve aplicação do segredo de justiça nem respeito pela vítima). Para salvaguardar uma imagem de seriedade, certa imprensa finge atuar para denúncia geral de casos de velhos maltratados. Espetáculo e audiências, é o que é! Podiam evitar de atirar-nos areia para os olhos. Até porque, na verdade, há em cada um de nós uma parcela, maior ou menor, que não resiste a espreitar um caso mediático que deixou para trás a Ucrânia, o Médio Oriente e até a bola.

Um país de prepotências


Ninguém se preocupa em pôr fim ao desprezo com que no público e no privado as pessoas são tratadas.


Nota prévia: O ministro Pinto Luz começou a mexer no fundamental setor da habitação. Os primeiros passos vão no sentido de apoiar jovens da classe média na compra de casa, evitando o desembolso de quantias absurdas de preparos e impostos, até um limite de preço. Há depois ajustamentos que ainda ninguém percebeu, o que é má comunicação ou indício de manipulação. O que se anunciou é insignificante, face à dimensão colossal do problema. Apesar de fragilizado judicialmente, o ministro agiu, não se deixando inibir. Parece haver um esforço pragmático, ao contrário das decisões crípticas da jovem ministra vedeta que o antecedeu. Falta perceber muita coisa, tanto no apoio à construção como ao arrendamento num setor onde é preciso encontrar um difícil equilíbrio entre oferta e procura para todas as classes, sobretudo a dos mais desfavorecidos. Sem esquecer que há também um segmento de luxo essencial à economia nacional. O caminho vai durar muitos anos, possivelmente sem nunca chegar ao fim. Tornar o IHRU (o Instituto de Habitação) uma entidade eficiente pode levar dezenas de anos, se não for extinto e refeito. Esta semana, espera-se, entretanto, que Pinto Luz continue a atuar, anunciando, finalmente, a estratégia para o novo aeroporto de Lisboa, a qual implica uma decisão para o futuro da TAP, que desta vez, se espera sensata.

1, Um dos problemas que se perpetua na sociedade portuguesa é a sistemática prepotência do Estado e de certas empresas sobre o cidadão. A que se soma o desleixo e incompetência com que se tratam casos que a cada um afetam. A falta de respeito, eficácia e profissionalismo estende-se a dezenas de organizações privadas que prestam serviço à população. É o caso dos operadores de comunicações, dos correios, dos bancos, das empresas automóveis, das companhias aéreas, dos transportes públicos, dos fornecedores de energias e por aí fora. Este mundo gigantesco é, em regra, prepotente, despreza os clientes e deixa-os sistematicamente sem soluções. Até que desistam ou se resignem, desde logo porque os reguladores mais não são do que verbos de encher. No Estado, há centenas de entidades incapazes de cumprir com os mínimos, seja na saúde, nos impostos, na justiça, na educação e na prestação dos apoios sociais que estão legislados e prometidos. Nas autarquias dá-se o mesmo. Lisboa é disso exemplo flagrante. A desconsideração, a burocratização dos processos e um desprezo pelos direitos do cidadão tornaram qualquer funcionário de uma grande entidade (pública ou privada) um ser sem vontade e sem autonomia para resolver. Aliás, se a tivesse, também não a quereria provavelmente para evitar responsabilidades. O resultado é a existência de um conjunto incomensurável que vive para o seu interesse pessoal e corporativo, desprezando o serviço ao público. A sobranceria e/ou incapacidade agrava-se. Os meandros de resolução são cada vez mais complexos. A forma de atendimento a estrangeiros imigrantes é repugnante, desumana e geradora de criminalidade até violenta, uma vez que ninguém vive do ar. Com a invenção do atendimento agendado ou pela net, as coisas até se tornam mais complexas. No Estado, já se tornou impossível o cidadão lesado ir ao sítio e dizer duas a quem o destrata, como acontecia há uma década. Passam-se horas ao telemóvel, a carregar em botões, a escrever reclamações às quais ninguém, nenhum chefe, nenhum regulador ou entidade oficial liga. Pontualmente, assuntos graves resolvem-se porque a Lusa, uma televisão, uma rádio ou um jornal influente fazem a denúncia. A desconsideração geral atinge um ponto em que se fica reconhecido àqueles que, por inesperada diligência, tratam bem utentes e clientes. Nada disto é exclusivo da sociedade portuguesa. Há notícias semelhantes em muitos países, nomeadamente do Sul da Europa, o que não admira. É nessas regiões que há menos brilho profissional, menos direitos para a cidadania e onde a prepotência do Estado e dos grandes grupos é maior, beneficiando de cumplicidades às vezes corruptas. Uma das exceções quotidianas onde se presta atenção, conselho e carinho a qualquer utente/cliente são as farmácias, a guarda avançada da Saúde Pública, São poucos ou nenhuns casos em que alguém lá entre e seja mal atendido. Na governança ninguém se preocupa em defender quem é esmagado por estas máquinas. O mais que se faz é mudar os modelos, alterar as grandes linhas da política, anunciar novos procedimentos e programas supostamente inovadores. Porém, a prepotência mantém-se, a ineficácia agrava-se e as pessoas, sobretudo as mais velhas e menos aptas a procedimentos modernos, vão ficando cada vez mais marginalizadas. Uma vez que o Governo está há pouco tempo em funções, talvez seja o momento para mudar, no Estado e no privado, a forma de atender e resolver problemas concretos da vida quotidiana, sem que haja lugar a cunhas ou ao recurso a profissionais habituados a mexer os cordelinhos. O que se pretende é que haja quem ouça e resolva, sem demoras de meses ou anos. Isso, sim, seria reformar. Dito isto, o mais certo é termos de esperar…sentados.

2. A diplomacia e os supostos serviços de informações portugueses acordaram há dias com a notícia de que a Rússia e São Tomé reconfirmaram a cooperação militar que existia durante a descolonização, vai para 50 anos. Não se conhecem pormenores do acordo, que não está ratificado em definitivo em São Tomé. O anúncio prova que Moscovo mantém o interesse por África e os seus recursos, onde está cada vez mais presente, ocupando, nomeadamente, o espaço de que a França vai desertando. Nada que a China não faça também, embora de forma mais sofisticada, construindo infraestruturas e dando crédito. Os são-tomenses são livres de fazerem acordos com quem querem. Mas é bom que se lhes explique que há gestos que podem ter consequências, por exemplo, no processo de imigração e em certos apoios concretos. É que nem sempre é inteligente jogar em todos os tabuleiros. Portugal e a Europa têm de dar um sinal claro de resposta. Paulo Rangel deve fazê-lo, falando baixinho, como se faz nas chancelarias.

3. Aparentemente, o celebrado André Ventura deu um valente tiro no pé ao escolher para cabeça de lista às europeias o embaixador Tânger Correia. A criatura deu uma entrevista surrealista e primariamente antissemita ao Observador em que desenvolve a tese conspirativa de que os judeus não sofreram com o ataque do 11 de Setembro porque foram prevenidos e que Macron é um de boneco nas mãos dos banqueiros Rothschild. O delírio prosseguiu ao ponto de tornar Trump um moderado. É arrepiante pensar que Correia andou pelo mundo a representar um país europeu, moderado e aberto como o nosso. É certo que paranoicos desses há por todo o lado na extrema-direita, assim como há fanáticos comunistas pró-russos que asseguram que os ucranianos são nazis. Tânger Correia é um arauto do “bas-fond” das redes sociais. Só num ponto pode ter razão: há efetivamente o perigo de uma substituição islâmica da sociedade europeia. A entrevista permitiu a Sebastião Bugalho rebater e brilhar numa entrevista à CNN. Se quiser evitar um desastre, Ventura deveria descartar Correia. As europeias poderão consolidar o quadro político português, se os resultados mantiverem três grandes partidos destacados (AD, PS e Chega). Porém, se voltarmos a uma situação mais equilibrada entre AD e PS, com um Chega nos 10%, Ventura entrará em perda. A 9 de junho é ele quem mais tem a perder, porque todos os outros partidos têm candidatos melhores e mais sóbrios do que Tânger Correia.

4. O cinismo da televisão espetáculo é notável. O caso das alegadas agressões a Betty Grafstein por parte da criatura que vive com ela ocupa horas a fio. O “voyeurismo” manteve-se nos canais generalistas, nos de nicho “jet-set” e estendeu-se profusamente aos de informação. Tem sido um regabofe. Ao ponto do exótico concubino dar entrevistas em direto logo que saiu da cadeia, cerca da meia noite (ali não houve aplicação do segredo de justiça nem respeito pela vítima). Para salvaguardar uma imagem de seriedade, certa imprensa finge atuar para denúncia geral de casos de velhos maltratados. Espetáculo e audiências, é o que é! Podiam evitar de atirar-nos areia para os olhos. Até porque, na verdade, há em cada um de nós uma parcela, maior ou menor, que não resiste a espreitar um caso mediático que deixou para trás a Ucrânia, o Médio Oriente e até a bola.