Gabriela Moita: “Há um discurso normativo que faz crer que só existe este dualismo de homem e mulher”

Gabriela Moita: “Há um discurso normativo que faz crer que só existe este dualismo de homem e mulher”


A psicóloga lamenta a ideia “de se querer organizar um mundo, onde só cabe uma determinada forma de funcionar” e entende que isso “é o caminho para a destruição”.


Acha que ainda existe pouca informação ou dúvidas sobre a ideia de identidade do género?

Existe muita falta de informação, mas existe falta de informação porque as pessoas não a vão procurar. Existe muita informação disponível, principalmente na internet, mas é preciso que as pessoas procurem os documentos certos. E Portugal já tem muitos documentos com organização excecional, o que não existe é uma divulgação nos lugares onde devia ser feita como, por exemplo, nas escolas, nos hospitais e nas universidades como deveria existir.

Essa falta de informação deve-se ao facto de ainda haver preconceitos ou acha que as pessoas não estão interessadas?

Julgo que as pessoas estão interessadas e muito interessadas, mas no sentido particular, porque as instituições provavelmente estão pouco interessadas. Estamos a falar de identidade de género, mas se quisermos encontrar aqui um guarda chuva grande, as questões da sexualidade estão todas por falar. Fala-se muito, mas fala-se muito pouco de uma forma conveniente. Podemos dizer, por exemplo, que um dos meios extraordinários de divulgação geral são as telenovelas. A Maria Elisa Domingues, não sei se já está publicado, fez um trabalho excecional sobre a a implicação que as telenovelas têm na informação ao público. No entanto, na maior parte das vezes, os guiões não têm este cuidado e se calhar também não é um papel das telenovelas fazer essa educação. É certo que quando fazem, a divulgação é extraordinária. Já os jornalistas tenho de os felicitar porque alguns têm feito trabalhos extraordinários a este nível para tentar dar informação. Mas há muitas pessoas que ainda não têm formação, inclusivamente dentro da minha área que é psicologia.

Vimos esse trabalho de divulgação, nomeadamente em filmes e séries americanas. Em Portugal não é tão vulgar. É ignorância?

Ignorância é, sem dúvida nenhuma. Porque é que as instituições não puxam temas, como se dizia nos anos 90, considerados fraturantes quando estamos numa época em que as polarizações aparecem? Porque preferem não falar de tudo aquilo que não veicula uma forma de vida e que tem tendência a criar divergências? Agora, a grande questão é saber como se integra tudo para que as coisas possam coexistir com a normalidade que todas as formas de vida deveriam ter. As pessoas que vivem no centro têm muito medo e nem vale a pena estar a referir o que tem acontecido nos últimos tempos na nossa sociedade, nem aos livros que estão a ser publicados.

Para muitos continua a existir só a ideia de homem e mulher?

Se quisermos falar exclusivamente em relação à identidade de género, isso faz parte de uma norma convencional, em que só existe estas duas possibilidades, quando os corpos e a vida das pessoas mostram desde sempre esta multiplicidade. No entanto, há um discurso normativo e hegemónico que faz crer que só existe este dualismo. Por exemplo, as famílias só são consideradas famílias as que são vistas como tradicionais, as outras são uma coisa que agora se está a inventar, o que é um disparate absoluto.

Daí ter falado no lançamento do tal livro polémico sobre a família…

É não querer pensar a vida, é querer criar um estilo de vida onde só cabem alguns e não cabe a existência do universo inteiro, porque se olharmos para a vida que as pessoas têm vemos esta multiplicidade. Aliás, o princípio básico da biologia é diversidade, caso contrário não há adaptação. E esta coisa de se querer organizar um mundo, uma cultura, uma forma de vida onde só cabe uma determinada forma de funcionar diria que é o caminho para a destruição.

Há atualmente mais de 30 identidades de género…

Não é hoje em dia, hoje em dia fala-se, mas sempre existiu. Aliás, fala-se e nomeia-se. Há nomes que começam a aparecer e as pessoas muitas vezes não tinham nomes para aquilo que sentiam e para a forma como viviam. Ou seja, não estamos a dizer que as pessoas agora é que vivem assim, não. Agora têm nomes e há mais nomes acessíveis a toda a gente para nomear aquilo que é vivido. No fundo encontraram uma palavra para se definirem. A identidade de género tem a ver com orientação, isto é, tem a ver com o género das pessoas que estão incluídas na equação. Por exemplo, quando falamos da homossexualidade estamos a falar da orientação para o desejo ou a orientação para o estímulo à atração, não estamos a falar de género. As pessoas confundem muito isto, mas quando estamos a falar de género estamos exclusivamente a falar da forma como a pessoa se sente na relação entre a disponibilidade, este tal ciclo binário entre aquilo que era o ser homem, o ser mulher, o ser masculino ou o ser feminino. O feminino e masculino são comportamentos e o que aconteceu na nossa cultura é que o feminino e o masculino misturaram-se, estes comportamentos que foram atribuídos aos homens e às mulheres são comportamentos de género, formas de estar, papéis sexuais não têm nada a ver com o ser homem ou o ser mulher. A pessoa pode identificar-se como homem, género ser homem e ter comportamentos femininos ou comportamentos masculinos ou papéis sexuais neste sentido. Isto já está tão baralhado na linguagem que é muito diferente até separar o género desta ideia dos comportamentos e desta performatividade porque se misturou ser homem com o masculino e o ser mulher como feminino.

Sente que a mentalidade portuguesa ainda está muito virada apenas para este conceito de homem e de mulher?

Isto não tem sido explicado convenientemente para se conseguir fazer esta distinção com clareza. E é muito complicado falarmos de mentalidade portuguesa, não sei o que isso é, porque temos muitas mentalidades em Portugal, logo há muitas pessoas para quem isto faz muita confusão, mas também há muitas pessoas se quisermos falar de uma forma quantitativa que sabem explicar isto muitíssimo bem e com muita clareza. Curiosamente, até são as camadas mais jovens que já têm isto muito, muito claro. E, portanto, distinguem muito bem o que são papéis sexuais, o que são comportamentos ligados aos papéis masculinos e femininos e o que é a identidade de género. As pessoas podem-se sentir nem homem nem mulher, se têm um género não binário ou um género fluído ou são agénero, etc. O mais importante aqui perceber é que o ser homem ou o ser mulher no sentido da forma de sentir de cada pessoa, porque isto não está ligado à forma do corpo.

Em termos psicológicos isso afeta quem não se sente homem ou não se sente mulher?

Ouvi há dois dias, a resposta mais adequada de uma criança de quatro anos. Um adulto perguntava-lhe: ‘És um menino ou uma menina?’ E a criança respondeu: ‘Sou uma pessoa’. Diria que esta criança respondeu da forma mais adequada à pergunta que se estava a fazer. Realmente porque é que a pessoa precisa chamar isto ou isto. Ser pessoa é o conceito mais importante. Quando atualmente dizemos, e digo dizemos porque agora as palavras existem, até aqui não eram de acesso fácil, algumas delas são novas, mas realmente cada palavra que existe vai dar visibilidade àquela forma de estar, de sentir, da pessoa se reconhecer como pessoa. Isto é, vai dar identidade a esta pessoa, como vamos continuar a dar identidade às outras. Todas as pessoas que se sentem como homem continuam a sentir-se. As pessoas que se sentem como mulher continuam a sentir-se como tal, o mesmo acontece com as pessoas que se sentem não binárias, etc.

E deixar de haver preconceito…

O preconceito é sempre colocado pelos outros. A própria pessoa sente-se mal, mas não se sente mal pelo que sente, sente-se mal porque aquilo que sente não é aceite pela comunidade onde está. É quando a pessoa se sente, vive, se comporta e se exprime da maneira que se exprime e os outros não vão dizer ‘olha que isso não faz sentido e como nasceste homem ou mulher, não podes fazer isto’. Isto é que vai trazer mau estar. É o preconceito que cria a auto-estigma, no sentido de que há um estigma social que vai fazer com que o sujeito estigmatizado também se veja a si próprio dessa maneira. E, como tal, começa a achar que tem qualquer coisa que não está bem dentro dela, mas porque isto lhe é atribuído em espelho pelo exterior. Claro que isto traz um sofrimento psicológico muito, muito grande.

E, às vezes, muito difícil de recuperar…

O que conseguimos clinicamente é ajudar as pessoas a viver de acordo com a sua forma de comportar, de se ajustar, de viver a sua vida e ir permitindo, naturalmente, que se ajustem e que a comunidade perceba o que está a fazer quando impede que a pessoa se sinta como ser. E vai trazer provavelmente outra pergunta que tem a ver com as transformações e as adaptações físicas que muitas pessoas precisam de fazer para que se vejam externamente como se sentem internamente. É claro que isso é um caminho difícil e doloroso e quando ainda por cima é acrescido de um estigma muito grande que era escusado e que causa maior ainda o sofrimento.

O estigma social ainda pesa mais neste processo…

Não tenha dúvida nenhuma. Não é que as pessoas tenham vontade de mudar, têm é vontade de ajustar a sua imagem àquilo que são. Não é mudar é fazer o ajustamento da sua própria forma do seu ser. E, às vezes, há ajustamentos físicos a essa forma de ser e os outros não deixam ou não aceitam isso. As pessoas não se querem transformar, as pessoas querem ser. E, para isso, às vezes, é preciso algum ajustamento e esse algum ajustamento implica intervenção médica, não só psicológica, porque o apoio psicológico tem a ver com o acompanhamento que é dado à pessoa para que este caminho seja feito com a menor dor possível, mas acompanhamento mais médico, mais biológico, mais fisiológico que implica alguma transformação física.

Daí ter defendido que o género é uma construção social…

O género é uma construção social. O que é que acontece? Nascemos com o corpo que nascemos, sem dúvida nenhuma, mas depois não podemos dizer como é que as pessoas devem fazer, como é que se devem comportar. O que é esperado por se ter aquele corpo é que é completamente uma construção social. E dizer que por causa daquele corpo se devem sentar de uma maneira, devem respirar de uma maneira, devem usar as mãos de uma maneira. Isto só pode ser uma coisa social, porque se não fosse não era preciso manuais a dizer que isto não deve ser. Por que é que se diz a uma menina ‘não ponhas as pernas desta maneira ou não é assim que se cruzam as pernas?’ Porque é que se diz a um menino ‘vê lá os teus gestos, olha que isso não faz sentido’?

É preciso ter uma mente mais aberta?

Infelizmente ainda vemos muitas pessoas que não compreendem as outras e pessoas que têm uma determinada forma de sentir e obrigam, esse é que é o problema, os outros a sentirem-se da mesma maneira, a viverem e comportarem-se da mesma forma. E há um tipo de pessoas que tem tudo isto ajustado àquilo que determinadas culturas, num determinado momento histórico, esperam e essas estão em paz, porque correspondem àquilo que a cultura naquele momento histórico espera e impedem que as outras não correspondam àquele formulário e tenham vida, porque estamos a falar de pessoas que são mortas só porque estão daquela maneira.

O que não acontece em Portugal. É um país mais tolerante?

Usaria mais a palavra aceitante do que tolerante, mas se calhar tem razão, é só tolerante, porque quando é aceitante nem precisamos de falar de tolerância. Falamos de tolerância quando existe um grupo com mais poder que aceita o outro.

O Parlamento chegou a aprovar, no final do ano passado, várias medidas para adotar nas escolas para garantir o direito à autodeterminação de identidade mas acabou por ser vetado pelo Presidente da República…

É a questão dos direitos para todos. Isto é uma contradição absolutamente inexplicável. As pessoas são contra e são a favor da criminalização do aborto, ou seja, devem matar-se as pessoas que fazem o aborto e, portanto, este deve ser criminalizado? Estas mesmas pessoas são as que matam as outras que não são conformes à norma. Afinal onde é que está o respeito pela vida humana? Mas, respondendo à sua pergunta, ainda temos uma caminhada a fazer e já fizemos uma caminhada absolutamente extraordinária em Portugal nestes últimos 20 anos. Temos leis extraordinárias, em termos de mentalidade ainda há muito por fazer e isso só implica informação. Outra coisa muito importante é as pessoas conhecerem as realidades, porque perceber é já uma ajuda muito importante. Não é só ter informação é importante saber como o vizinho, o primo, o amigo, a amiga vivem estas questões porque ou as pessoas vivem em bolha e não sabem quem têm ao lado e, às vezes, é até o próprio filho. Quantos suicídios de adolescentes não se deram e não se dão porque esse adolescente nunca vai revelar o que se passa à sua família? Não vai revelar até porque ouve as anedotas, as anedotas horrorosas sobre estes temas e a única forma de saírem dessa situação é matarem-se.

Mas as medidas foram criticadas por deixaram as crianças decidirem o que querem ser em idades que eram consideradas muito precoces…

Se deixarmos as crianças viverem como querem, elas vão-se encontrar em qualquer momento e a psicologia aqui tem até alguma responsabilidade, porque alguns autores consideravam que a identidade de género, esta coisa de dizer ‘eu sou isto’ era uma coisa adquirida por volta dos três, quatro anos, não é verdade, ao longo de toda a vida pode ir revendo, reformulando. É uma caminhada. Se à nascença foi dito àquela criança que era menina e foi identificada como menina pelos pais e pelos médicos, mas comporta-se como os meninos, o que gosta é de jogar a bola, de brincar com carrinhos, detesta andar de saias, gosta das canções dos meninos, só quer brincar com os meninos e não acha graça às brincadeiras das meninas o que é que aqui vai acontecer? As pessoas mais conservadoras vão ficar muito assustadas porque esta criança não se está a comportar como era esperado. Não sabemos o que vai acontecer a esta criança se a deixarmos tranquilamente viver desta maneira. Ela pode vir a ser sempre e fazer a manutenção desta forma de estar. Poderá vir a sentir de outra maneira. É preciso deixá-la viver, mas é preciso deixá-la viver em cada momento, de acordo com aquilo que está a sentir para que realmente se possa encontrar.

Era usual as meninas vestirem-se de cor de rosa e os meninos de azul…

Ainda hoje se entrar numa loja de brinquedos e se disser que quer comprar uma prensa para uma criança, a primeira coisa que lhe vão perguntar é se é menino ou menina. E levam-na para as prateleiras do menino e para as prateleiras da menina. Isso é que tem a ver com a imposição que é feita e que ainda existe na nossa sociedade. Se a criança é menina e só se quer vestir de cor de rosa deixá-la. Agora normalmente ninguém deixa, até porque quem decide as cores da criança são os pais. Os pais poderiam diversificar as cores.

Os pais deveriam mudar de comportamento?

Deveriam experimentar todas as cores e todas as crianças, como todas as pessoas, vão fazendo as suas escolhas e ao fazerem essas escolhas se calhar vão mudando. Se calhar numa fase é a fase do verde e andam de verde, outra fase é cor de rosa, outra é do azul como também podem querer verde ou cor de rosa para toda a vida. Não são as cores que vão ditar o futuro, mas são cores que são impostas pelos pais.

Ainda temos um grande caminho a percorrer?

Ainda temos um longo caminho a percorrer, ainda temos muita informação para dar. Deixe-me contar esta história extraordinária, uma ocasião na rua vinha uma criança a riscar a parede e a mãe dá-lhe dois estalos, O que está à espera que a mãe lhe diga? O que era correto era dizer que não se deve riscar paredes. Sabe o que é que a mãe disse? Era uma rapariga e a mãe diz: ‘Tu estás parva, pensas que és um rapaz?’ Não é o património público que está a ser cuidado, porque a criança vinha a estragar a parede é o património cultural da ideia do que é menino ou menina com comportamentos que são permitidos a uns e não são permitidos a outros. Foi chocante esse momento. A criança tinha uns quatro ou cinco anos. Então se fosse a um menino era permitido? É um disparate.

Temos um novo Governo que tomou agora posse. Tem receio que possamos assistir a um retrocesso neste tipo de matérias?

Acredito na sensatez das pessoas. Acredito na visão humana e, sobretudo, na enorme humanidade que cada pessoa tem, logo seria uma grande surpresa que isso acontecesse. Julgo que as pessoas que estão neste Governo, podendo estar contra ou a favor do que quer que seja, a humanidade é uma coisa que felizmente ainda existe, como tal, espero que seja um Governo com humanidade.