Partindo de um lugar comum, o fenómeno dos sem-abrigo é um excelente retrato do país: muita gente envolvida, há associações para todos os gostos, Governo e Câmara de costas voltadas e juntas de freguesia que se preocupam com o alarme social de haver muitos sem-abrigo juntos. Se a este cocktail juntarmos coletivos – leia-se ativistas – da extrema-esquerda que querem impedir os jornalistas de fazerem o seu trabalho e que são contra a retirada das pessoas da rua, percebemos que o caldo é de digestão difícil. E a sobremesa fica ainda mais indigesta se juntarmos as dificuldades por que passa a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, responsável pela ajuda primária às pessoas em situação precária, embora os seus dirigentes neguem as acusações. Ah! Para baralhar mais as contas, é preciso acrescentar ao drama compromissos com o PRR (Plano de Resolução e Resiliência) que já fizeram com que os sem-abrigo fossem corridos de alguns espaços.
Mas vamos ao filme dos acontecimentos. Se até à pandemia a maioria dos sem-abrigo que inundavam Lisboa eram pessoas com problemas de saúde mental, de álcool ou de droga, depois de 2022 tudo mudou com a chegada de milhares de migrantes sem a devida documentação, muitos dos quais com contratos de trabalho sazonais que depois ficaram ao deus dará. Para se enquadrar a evolução dos sem-abrigo, vejamos o que disse ao jornal i, em dezembro de 2018, António Bento, então chefe de de serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa e pioneiro na criação de uma equipa de rua para acompanhar doentes psiquiátricos em situação de sem-abrigo: «A primeira vez que estudámos isso [sem-abrigo com doença mental] foi em 2001, com a amostra de rua da Santa Casa de Misericórdia. Quando chegámos aos mil casos de rua fomos fazer as contas: 56 ou 57% tinham álcool, depois havia 20% de psicose, depois as drogas e as perturbações de personalidade. No total, era mais de 90%. Acho que isto não varia muito, é óbvio que podemos admitir que há 10% de pessoas sem qualquer tipo de patologia. Agora, eu nunca vi pobres na rua, é muito difícil ver isso, mas admito que se houver um terramoto como o de 1755 possa haver».
A ideologia dos sem-abrigo
O terramoto de que o falecido António Bento falava acabou por acontecer com o fenómeno da imigração. Isto quando existia um plano de Estratégia Nacional para acabar com os sem-abrigo até 2023, e que teve grande apoio do Presidente da República quando este anunciou que tinha de se erradicar o problema. Como se sabe, saiu tudo ao contrário. Ainda era Fernando Medina presidente da Câmara de Lisboa, no tempo da covid-19, quando a autarquia fez um acordo com o Exército para ‘ocupar’ o quartel de Santa Bárbara para acolher sem-abrigo. O projeto funcionou para quase 90 pessoas. Quando se dá a mudança de Executivo camarário, os novos responsáveis defrontam-se com novos problemas: primeiro, o acordo do quartel de Santa Bárbara não podia ser mantido devido a compromissos assumidos com o PRR, e era preciso transferir essas pessoas para outro local. Pensou-se então em transferir os sem-abrigo que estavam no quartel, e outros que entretanto se tinham instalado nos Anjos e não só, para as antigas instalações da Gebalis, perto do bairro dos Olivais. Mas aí a oposição camarária vetou a transferência, o que fez com que Carlos Moedas esticasse a corda e dissesse que então não saíam do quartel de Santa Bárbara. A oposição alegava que o presidente da Câmara queria correr com os sem-abrigo do centro da cidade.
O braço-de-ferro continuou e Moedas sugeriu então as instalações da Antiga Manutenção Militar, no Beato, ao que o Governo de Costa defendeu que não podia ser, pois tinha aprovado um plano para o local – é aí que ainda está a equipa de José Sá Fernandes, representante do Governo, que colaborou na Jornada Mundial da Juventude. Se não podem ir para o Beato, ficam no quartel, terá dito Moedas, depois de ter sugerido as instalações do antigo Hospital Miguel Bombarda, que também foram recusadas. Enquanto se discutia o sexo dos anjos, o largo da Igreja dos Anjos tornou-se mais concorrido do que o Metro em hora de ponta, com dezenas de sem-abrigo, de várias nacionalidades, a ocuparem o espaço. Isto para não falar na Praça de Espanha ou da estação da Gare do Oriente. E aqui entram os coletivos, ou, por outras palavras, os ativistas radicais, que defendem que o espaço público é de todos e que os sem-abrigo não podem ser afastados do centro da cidade. No local (ver páginas seguintes) há elementos que tentam convencer os sem-abrigo a não aceitarem nenhuma casa e até, ao que se diz, fornecem-lhes tendas para não desistirem do local.
Mas a Câmara conseguiu esta semana aprovar a mudança para as instalações militares e aprovou 1,2 milhões para obras de requalificação. E aqui entra o presidente da Junta de Freguesia do Beato, que se mostrou contra a mudança. «Consideramos esta situação como um grave erro estratégico de avaliação das condições em que se encontra a Freguesia, nomeadamente as profundas carências económicas, sociais e estruturais existentes no território, que não acompanham a evolução que tem existido na cidade de Lisboa, acabando por gerar um descontentamento geral nos moradores», escreveu Silvino Correia, presidente da Junta, acrescentando que as situações «geram sentimentos de revolta e colocam em causa o dia-a-dia dos residentes».
Dizendo que os seus eleitores têm sido solidários, noutra situações, Correia diz que há um limite para todos ficarem bem. «Há muitos problemas devido à concentração de sem-abrigo no Beato. Alguns fazem as necessidades nas ruas, outros têm problemas de álcool e droga e tudo isso provoca confusões com os habitantes», disse ao SOL. Tudo porque «a Freguesia do Beato é um território limitado mas no qual existem já várias respostas para a situação em que se encontram estas pessoas, nomeadamente o Centro de Acolhimento de Xabregas, gerido pelo Exército de Salvação, com cerca de 120 utentes, o Centro de Acolhimento do Beato, gerido pela Vitae, situado na Rua Gualdim Pais, sendo no momento o maior centro de acolhimento de Lisboa, representando uma resposta para centenas de utentes e também, perto do território da Freguesia, a Unidade Integrativa para Pessoas em Situação de Sem-abrigo, gerida pela Comunidade Vida e Paz, que dá resposta a cerca de 40 pessoas».