A vida nunca foi fácil para Farid Walizadeh, que ficou sem a referência dos pais quando tinha um ano de idade. Por seguirem uma vertente diferente do islamismo foram perseguidos pelos talibãs e abandonaram a cidade onde viviam. A fuga para a liberdade era longa e extremamente perigosa e para salvar o filho recém-nascido deixaram-no ao cuidado de uma família adotiva. Farid nunca teve uma infância fácil. Aos sete anos, o tio adotivo obrigou-o a seguir num grupo de pessoas que ia fugir do país – começou nesse dia uma história de vida incrível. Durante longos meses viveu como um sem-abrigo, atravessou a pé as montanhas do Afeganistão, onde apanhou tempestades de neve e temperaturas negativas, cruzou os desertos do Paquistão e Irão e chegou à Turquia, sempre de noite, ao frio, com fome e correndo demasiados perigos. Esteve preso, passou por centros de refugiados e chegou sozinho a Portugal, em dezembro de 2012, com 15 anos.
Farid surpreendeu-nos pela simplicidade e cortesia com que nos recebeu na Associação de Boxe Paulo Seco, no bairro da Quinta do Loureiro, em Lisboa, onde treina há dez anos. As instalações onde se formam bons pugilistas são simples, não é um health club da moda, mas tem o equipamento indispensável e, sobretudo, sente-se uma grande paixão pelo boxe que é passada pelo experiente e conhecedor Paulo Seco. Passadas as apresentações, guiou-nos até à zona mais confortável da sala: «A minha mãe ensinou-me que devemos receber bem os nossos convidados, foi essa a educação que tive». Estava dado o mote para uma conversa num português perfeito que começou morna e evoluiu para um desfiar de histórias com muitos sorrisos e alguns silêncios (pesados). Uma história de vida de um jovem com 26 anos, que reconheceu: «Agora, que vivo em paz em Portugal, considero que foram tempos muito difíceis».
Começou por falar dos pais, que tiveram de fugir do Afeganistão. «Eram de etnia hazara e foram perseguidos pelos talibãs. Como era criança não me podiam levar e deixaram-me ao cuidado de uma família adotiva, estive com eles até aos sete anos». Farid recordou depois a infância problemática. «A vida era muito difícil devido à guerra entre os americanos e os talibãs. Andava na escola, mas havia muitos dias que não tinha aulas devido aos ataques. Havia sempre casas a explodir e gente a morrer, como era criança não tinha a noção do perigo», disse com um sorriso. Na verdade, as crianças não sabem nada sobre o mundo, como reconheceu o refugiado afegão. «Quando cresces num ambiente de pobreza, a pobreza acaba por ter piada», reconhece com uma sinceridade desconcertante.
A saída do Afeganistão, com sete anos, ainda hoje é uma experiência difusa. Não sabia qual era o destino quando lhe puseram uma mochila às costas com duas garrafas e alguma comida. «O meu tio adotivo obrigou-me a ir com um grupo de 25 a 30 pessoas que iam sair do país, mas não sabia o que estava a fazer. Lembro-me de ouvir as outras pessoas a dizer que tínhamos de ir para a Grécia, mas não sabia o que era a Grécia». A longa viagem até chegar à Turquia continua bem viva na memória de Farid. «Estava sozinho e passei dificuldades, mas safava-me bem. Desde que comesse alguma coisa estava tudo bem para mim. Caminhávamos durante a noite e dormíamos de dia no meio dos desertos e dos montes para não dar nas vistas, foram meses a passar fome e frio», lembrou. Foi uma experiência traumática, que deixou marcas. «Durante o dia não penso nisso, mas à noite voltam as memórias do passado. O boxe tem-me ajudado a ultrapassar essa fase, saio cansado dos treinos e consigo dormir descansado», confidenciou.
Naufragou e voltou
Depois de chegar a Istambul tentou pisar solo grego seis vezes, mas o gigantesco monstro devorador de homens, mulheres e crianças que é o Mediterrâneo acabou com a aventura. «Tentei chegar à ilha de Rodes, mas o barco afundou-se sempre. Fomos salvos pela marinha grega, que nos mandou de volta para a Turquia». Depois de uma longa caminhada, nem todos conseguiram dar o salto para a liberdade e para uma vida melhor, como nos disse, com a voz trémula: «Perdi muitos amigos». Esteve vários anos num centro de refugiados em Istambul até que surgiram dois países de acolhimento: Estados Unidos e Portugal. A opção pelo nosso país foi imediata, como nos explicou. «De Portugal só conhecia o Cristiano Ronaldo, dos Estados Unidos conhecia os militares que estavam em guerra no meu país, naturalmente escolhi Portugal». Está no nosso país desde 28 de dezembro de 2012. «Fui para o Centro de Acolhimento para Refugiados, que me recebeu bem, foram sempre muito simpáticos». Quando lhe pedimos para explicar o que significa ser refugiado, abanou a cabeça e, depois, com uma voz trémula, disse: «É uma pessoa que ganha uma nova vida, é como se tivesse nascido uma segunda vez. Passa dificuldades porque está num país diferente, com uma cultura e língua diferentes, mas tenta, por vezes falha, e continua a tentar». Apesar de tudo, a permanência em Portugal está a ser positiva. «Quando falo com refugiados que estão noutros países europeus dizem-me que têm problemas de integração, eu não senti nada disso. As pessoas em Portugal são simpáticas, não tive qualquer problema, a maioria dos meus amigos são portugueses», revela. O mesmo se passou relativamente à religião. «Se não fazes grande espetáculo ninguém te vai chatear».
Farid está perfeitamente integrado na sociedade portuguesa. Tirou o curso de treinador de boxe e frequenta o terceiro ano de arquitetura na Universidade Lusíada. «Este ano parei para me concentrar no boxe. O professor de arquitetura não foi compreensivo e disse-me que ou fazia arquitetura ou desporto, e decidi parar. Mas vou acabar! Neste momento namoro com o boxe, mas quero casar com a arquitetura». A paixão pela arquitetura tem uma razão muito especial. «Já vi muita destruição na minha vida. Agora quero ser um bom arquiteto e poder criar», confessa.
Depois de ter estabilizado a sua vida em Portugal, o refugiado afegão foi à procura da família que tinha “perdido” quando era menino. Uma vez mais, a sua determinação levou-o a reencontrar a mãe e os irmãos. «Fiz imensas pesquisas nas redes sociais e encontrei o meu tio adotivo. Depois, encontrei a minha mãe e os meus irmãos através da Cruz Vermelha. Ficámos uns tempos a comunicar à distância até que consegui trazê-los para Portugal, estamos juntos há seis anos. De início houve alguns desentendimentos porque temos culturas diferentes, mas com o tempo isso passou», afirmou com um sorriso de menino.
Paixão pelo desporto
Quando esteve na Turquia praticou kung-fu e taekwondo. «Sempre tive paixão pelas artes marciais e via muitos filmes do Bruce Lee», recorda. O gosto pelo boxe já nasceu em Lisboa, o seu porto de abrigo. Desde muito cedo, percebeu que tinha jeito para o boxe: «Fui campeão nacional na categoria -57 kg». Integra o projeto de refugiados do Comité Olímpico de Portugal designado ‘Viver o desporto, abraçar o futuro’ e recebe uma bolsa atribuída pela Solidariedade Olímpica do Comité Olímpico Internacional. «Dá para viver e treinar», assegura. Tem um objetivo bem definido – «qualificar-me para os Jogos Olímpicos Paris 2024» –, e um sonho: «Ganhar uma medalha», garante determinado.
Para isso treina no duro, como é normal no pugilismo. «Eu e o meu treinador Paulo Seco estamos a dar o máximo. Faço treinos bidiários, exceto ao domingo. De manhã treino duas horas no ginásio e à tarde passo duas horas no ringue. O boxe é um desporto duro, difícil e que exige sacrifícios. Temos de estar bem preparados fisicamente, ter cuidado com a alimentação e descansar», frisou. Para se qualificar para os Jogos Olímpicos tem de ficar entre os quatro primeiros do campeonato Europa e/ou no Mundial. Quando lhe perguntamos o que é necessário para chegar ao topo, foi peremptório: «Ter boas condições, treinar com boas equipas e fazer mais competições internacionais». E surpreendeu-nos ao afirmar: «Não tenho grande talento natural, mas com muito trabalho cria-se talento e consegue-se atingir os objetivos». Qualquer que seja o resultado desportivo, o futuro passa sempre pelo nosso país. «Os talibãs destruíram o Afeganistão, as pessoas vivem como no tempo medieval. Habituei-me a viver em Portugal e gosto muito, quando estou a competir no estrangeiro, quase sempre uma semana, fico com saudades de Lisboa. Já viajei a pé pelo país e senti sempre muita paz e tranquilidade. Não imagino viver em outro país».