Alcácer Quibir. “E ao lado o burro, pensativo, pasta…”

Alcácer Quibir. “E ao lado o burro, pensativo, pasta…”


Bem podem procurar o nome de Alcácer Quibir no mapa de Marrocos porque ele não existe mais. Hoje, o lugar onde Portugal perdeu a maior das suas batalhas e viu D. Sebastião arrastar o Império para as mãos dos espanhóis, chama-se Kasr el Rif, fica a sudoeste de Arzila


Kasr el Rif – De Tânger para Arzila, por estrada, demora-se qualquer coisa como 45 minutos. Em seguida, algures, perdida entre Arzila e Larache, ainda mais a sul, fica Kasr el Rif, nos seu tempos históricos Al Qasr Al-Kebir, AGrande Fortaleza, esse lugar que Manuel Alegre, meu querido amigo e mestre chamou «o ires perder-te em cada Índia que ganhaste». Casas brancas e um céu azul. Margaridas que despontam nos campos onde passam homens com burros ajaezados. «Onde fica a guerra?», apetece-me perguntar à maneira de Raul Solnado. Onde ficou a guerra, afinal, essa batalha sem quartel que os marroquinos chamam de A Batalha dos Três Reis? O fim do Império Português no Norte de África: 4 de Agosto de 1478. Três reis porque Sebastião tinha um aliado, Abu Abd Allah Mohammed al-Mutawwak, que ficou com a alcunha de O Esfolado, após a sua morte, neste mesmo lugar onde a terra é vermelha talvez porque absorveu o sangue do rei de Portugal e de milhares de homens nobres de armas. 

Sebastião nasceu sem pai. Isto é, João Manuel, que o concebeu a meias com Joana de Áustria, morreu antes de ele vir ao mundo e se tornar, por via direta, candidato ao trono onde estava instalado o avô João III. O Cardeal D. Henrique, seu tio-avô, serviu de regente quando, com apenas três anos, OAdormecido foi rei. Rei com pressa de ter trono e poder, adolescente de ambições tresloucadas, defeituoso fisicamente, beiço inferior caído, pés minúsculos para a sua altura, que era quase digna de ser chamada de altitude, perna direita mais comprida do que a esquerda, o mesmo acontecendo com o tamanho das mãos que tinham umas excrescências de sextos dedos não completos. Aos 14 anos já dava ordens. Ordens de louco. Quantas espécies de louco existem, afinal? Pessoa elogiou-lhe a loucura: «Louco, sim, louco, porque quis grandeza/Qual a Sorte a não dá./Não coube em mim minha certeza;/Por isso onde o areal está/Ficou meu ser que houve, não o que há». Ambicionou ser o maior de todos os reis de Portugal e terminou como um cadáver abandonado na areia berbere subjugado ao poder do sultão Abu Maruane Abedal Maleque I Saadi, que nós gostávamos de apelidar de Mulei Maluco. É aqui, com o sol a pino, e a temperatura a queimar-me o corpo, que encontro a batalha entre um louco e um maluco? De que pormenores se faz a História? E a História dos números? 12 000 portugueses; 6 000 mouros aliados; 600 italianos; 2000 espanhóis; 3000 alemães e belgas num total de 23 640 homens ajoujados com 40 canhões no que mais parecia um exército da NATO. 60 mil homens e 34 canhões do outro lado. «Até à morte, porSantiago!». Até que o rei português caísse do cavalo: «As armas ferem de morte o cavalo branco/e caem as armas do rei no branco areal./Sob as armas que o ferem o cavalo branco/cai por cima das armas vencidas do rei./E há uma rosa de sangue no branco areal», escrevo citando outra vez o Manuel Alegre. Olho o sol de frente. Rosas de sangue ficam a bailar-me nas pálpebras quando as fecho. O rei-menino e milhares de homens feitos que o seguem para um confronto que não dá espaço à vitória. Foi loucura coletiva? Foi Portugal inteiro que enlouqueceu nessa manhã de Agosto? 

Um areal de sangue 

Sebastião partiu de Lisboa a 25 de Junho, desembarcou em Tânger, caminhou para Larache e aí estacionou à espera do momento certo para que o grupo de gente desorganizada e mal comandada se reunisse com os aliados de Mutavaquil, como também lhe chamavam, e que, só por via de servir de aliado – com largos interesses pessoais, diga-se, pois fora apeado do trono pelo sobrinho Mulei Maluco – ofereceu Arzila de mão beijada aos portugueses. No vale entre dois pequenos rios, Lucos e Mocazim, 10 mil marroquinos avançaram a cavalo sobre o exército português, com toda a misturada de gente que carregava a reboque. A primeira linha estava a cargo de Cristóvão de Távora e era composta na sua maioria pelos mercenários estrangeiros. Um deles, o inglês Thomas Stukeley, que dirigia o grupo de italianos, foi de imediato abatido a tiro de canhão. Muito superiores em número, os cavaleiros mouros entraram pela segunda linha dos portugueses, que tinha D. Sebastião na ala esquerda e, na ala direita, o Duque de Aveiro. A ferocidade dos homens tomou conta do lugar onde existe, hoje em dia, uma aldeola nomeada Suaken. As mortes multiplicavam-se de um lado e do outro, Mulei Maluco foi um dos que caiu para nunca mais se levantar mas esconderam a sua morte dos soldados que o seguiam. Ao fim de apenas quatro horas o destino de Sebastião estava traçado. Recusa o conselho dos nobres que ainda têm um pouco de serenidade na alma e lhe  pedem para se render. Altivo, de olhos em fogo, responde: «Senhores, a liberdade real só há de se perder com a vida!». No fundo, suicida-se. Imola-se numa guerra que nunca teve justificação. «As armas ferem de morte as armas do rei./Cai o cavalo branco no branco areal./Sob as armas que as ferem as armas do rei/caem vencidas por baixo do cavalo branco./E há uma rosa no branco do areal de sangue». Há muitas rosas de sangue no branco areal de Al Qasr Al-Kebir. É uma mortandade poucas vezes igualada. Talvez se tenham salvado, quanto muito, cem soldados de Portugal. Sebastião continua a espadeirar a torto e a direito, rodeado de inimigos. Tem um grito último, já de desespero, já de descrença, já de derrota:«Morrer sim, mas devagar!». Maomé Mutavaquil, o aliado, morre em fuga, afogado no rio Mocazim. «Na rosa de sangue das armas vencidas/que caem no branco do branco areal/sob as armas que ferem é mais do que um rei/quem assim cai. É mais do que um cavalo branco:/quem assim cai vencido é Portugal».

Que consolo há em que o chefe inimigo, Mulei Maluco, haja também morrido? Pelo menos o corpo deste é encontrado e tratado com dignidade. Tem 24 anos o rei que desaparece para sempre montado no seu cavalo branco, forçando ainda, com meia-dúzia de companheiros inabaláveis, por entre a parede de cavaleiros que erguem as suas espadas e lanças defendendo a terra que reclamam sua, impondo-se ao Império que cai em forma de rosa vermelha na areia do deserto. Ficará para sempre  O Desejado, preso no mito, o homem providencial que sairá um dia do nevoeiro para devolver a Portugal uma grandeza perdida. Faz sol sobre as casas alvas e sobre os homens que passam por mim vestidos com dishdashas claras. Não vejo guerra neste local pacífico onde nem sequer o eco do tilintar das lâminas, dos gritos dos moribundos, do relinchar dos cavalos esporeados sem piedade devia ter ficado preso para sempre. Olho em volta e para o céu azul claro de horizonte a horizonte. Dá-me vontade de recitar, como o Alencar do divino Eça: «Emquanto o fumo dos casais se eleva/E ao lado o burro, pensativo, pasta».