O Plano Estratégico para o Desenvolvimento dos Cuidados Paliativos em Portugal Continental para o biénio 2023-2024 foi publicado no início deste ano, ou seja, a meio do biénio com um ano de atraso. Diz o plano elaborado pela respetiva comissão nacional que “os cuidados paliativos são uma parte crucial dos serviços de saúde integrados e centrados nas pessoas. Aliviar o sofrimento, seja ele físico, psicológico, social ou espiritual, é uma responsabilidade ética global. Assim, quer a causa do sofrimento seja a doença cardiovascular, o cancro, a falência grave dos órgãos, a tuberculose resistente aos medicamentos, as queimaduras graves, as doenças crónicas em fase terminal, os traumas agudos, a prematuridade extrema à nascença ou a extrema fragilidade da velhice, os cuidados paliativos podem ser necessários e têm de estar disponíveis em todos os níveis de cuidados”. Quer isto dizer que cuidados paliativos não são por si uma resposta à eutanásia, mas sim um direito de todos os que se encontrem nesta situação e independentemente da forma como irão morrer. Onde se cruzam os conceitos é na prevenção. Conforme explica a presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP), Catrina Pazes, ver páginas 16-19, o alívio do sofrimento proporcionado pelos cuidados paliativos pode fazer, e faz, com que muitos doentes escolham viver em vez de pedirem a antecipação da morte.
Um plano atrasado e sem frutos. Os objetivos dos anteriores planos estratégicos mantêm-se, “até porque a maior parte das coisas, a maior parte os objetivos não estão alcançados”, diz a presidente da APCP. Admite que houve trabalho, “mas foi um trabalho iniciado em muitas frentes e em nenhuma delas deu frutos”. O que falha neste plano e é fundamental para se conseguir desenvolver a área dos cuidados paliativos, “é a definição de uma estratégia para aliciar e fixar profissionais nas equipas. Temos que apostar firmemente naquilo que são as formas de facilitar a vida a quem quer fazer cuidados paliativos”, aconselha esta médica.
Além disso, garante que para que o plano “possa ser posto em prática em prática e dê frutos, precisa de condições políticas para acontecer”. Foi por isso que a associação apelou “aos partidos que agora se candidatam que de facto nos expliquem o que é que estão a pensar fazer relativamente aos cuidados paliativos e qual a verba do orçamento. Nós não conseguimos identificar no orçamento nenhuma verba específica para a área”.
O plano estratégico é claro neste enquadramento e assume um compromisso que vai muito para além da discussão que envolve a legislação que regula a morte a pedido. “Todas as pessoas com doença limitante de vida recebem os cuidados de que precisam, no momento em que deles necessitam, para viver com melhor qualidade de vida”. E específica: “Cuidados paliativos são cuidados centrados na pessoa, sua família e cuidadores e baseiam-se na comunicação eficaz, na tomada de decisão compartilhada, na autonomia pessoal e prolongam-se no processo de luto; devem estar disponíveis e serem prestados a todas as pessoas que vivem com uma doença ativa, avançada e progressiva, independentemente do diagnóstico; afirmam a vida enquanto reconhecem que morrer é uma parte inevitável da vida; os cuidados são especializados e baseados em evidência científica”.
Como tudo isto se enquadra dentro do Serviço Nacional de Saúde? Diz a Direção Executiva do SNS (DE-SNS), responsável pela concretização da estratégia que “no processo atual de reorganização do SNS, é imprescindível a agregação das Equipas de Cuidados Paliativos nos SICP (Serviços Integrados dos Cuidados Paliativos) das ULS garantindo a prestação de cuidados de forma integrada à pessoa com necessidades paliativas e sua família, centrados nas suas necessidades, com inclusão dos mesmos nas tomadas de decisão, perspetivando a simplificação de processos, a qualificação das respostas e melhoria dos resultados”. Quanto aos Cuidados Paliativos Pediátricos, mantém-se “a dependência dos Serviços de Pediatria, em estreita articulação com o SICP da mesma ULS”.
Apontam-se quatro eixos prioritários. No primeiro, dedicado aos “Cuidados Centrados nas Pessoas”, aponta como estratégia que “os Cuidados Paliativos devem ser disponibilizados universalmente no SNS como um direito inerente à condição humana, intimamente ligado ao Direito à Saúde consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Como? Através da antecipação das necessidades de cuidados paliativos e melhoraria da continuidade dos cuidados e ainda do “apoio emocional e social, como condição de cuidado à pessoa com necessidades paliativas, familiares e cuidadores”. O segundo eixo prende-se com a formação graduada, pré-graduada e contínua dos profissionais ligados a esta área. O terceiro, com a qualidade, na medida em que “o estabelecimento de elevados padrões de qualidade junto da pessoa com necessidades paliativas e sua família constitui garantia de uma melhor resposta a essas mesmas necessidades”. E, por fim, o eixo dedicado à organização: “Entende-se vir recomendar que seja feito um esforço adicional a todos os níveis da gestão dos cuidados de saúde para otimização dos recursos para cuidados paliativos, em paralelo com a necessária resolução da questão de escassez de recursos humanos”.
Como funcionam na prática os cuidados paliativos. Existem as equipas comunitárias, que são as equipas de cuidados paliativos que estão dentro da comunidade e que vão a casa dos doentes, aos lares de idosos e às unidades de cuidados continuados que não são de paliativos. Também fazem formação e prestam assessoria aos outros profissionais além de articularem com os serviços de apoio domiciliário. Ou seja, dinamizam uma abordagem paliativa na comunidade. Além de doentes mais complexos também seguem e orientam cuidados para doentes de menor complexidade.
Dentro dos hospitais, existem as equipas intra-hospitalares de suporte em cuidados paliativos. Estas equipas deslocam-se dentro do hospital e têm a mesma função das equipas comunitárias. Trabalham com os outros profissionais, dão formação, etc. Por fim, existem as unidades de internamento, as que estão dentro dos hospitais que são as unidades de cuidados paliativos hospitalares e as unidades de cuidados paliativos dentro da Rede Nacional de Cuidados Continuados. Embora tenham o mesmo nome, o tipo de doentes que uma e outra acompanham é diferente. Estes últimos estão numa situação de menor complexidade, mas ainda assim precisam de cuidados paliativos especializados. Não estão a fazer o tratamento dirigido à doença. Por fim, existem as unidades de cuidados paliativos que permitem internamentos curtos, seja para a resolução de uma situação mais rápida, para o tratamento de um sintoma que está a ser refratário ou porque tornou-se inviável fazer a manutenção em casa porque o doente não tem cuidador, por exemplo.
Agora, com a generalização das Unidades Locais de Saúde (ULS) com o objetivo de organizar as várias valências destas unidades em serviços que integrem a parte da comunidade e a parte do hospital, os cuidados paliativos vão também ser sujeitos a essa organização e adotam o nome de serviços integrados de cuidados paliativos. O objetivo é conseguir um desenvolvimento que chegue a todo o território e que em todas as ULS se desenvolvam estas tipologias.
Falta de profissionais também aqui. Mas para que tudo isto seja possível são precisos profissionais. E, tal como esclarece Catarina Pazes, são necessárias “condições para que os profissionais desenvolvam as suas competências e possam continuar nestas esquipas”. Da mesma forma que “é fundamental que todos os profissionais de saúde que lidam com doentes em situação de doença grave – e somos todos nós – tenham formação em cuidados paliativos”. Mesmo que seja uma formação básica. Segundo esta médica, é preciso que “as universidades e as escolas que têm cursos de enfermagem, medicina, serviço social e psicologia, introduzam no seu currículo uma unidade curricular em cuidados paliativos e que ela seja obrigatória”.
Ao nível das equipas especializadas é necessário a formação prática avançada e a possibilidade de as pessoas desenvolverem as suas competências a este nível.
O problema é que a formação é muito cara uma vez que implica sair do serviço, com todos os custos inerentes e implica a autorização do próprio serviço para fazer a formação. No entanto, não foi permitido que parte do valor do PRR para esta área fosse alocado à formação e ao desenvolvimento de competências dos profissionais desta área. A associação reclamou argumentando que sem estas equipas e formação não se conseguiria desenvolver qualquer plano, mas não teve efeito. “A verdade é que sem profissionais não há rede”, adverte. “Há pessoas que fizeram a sua formação a muito custo, os seus estágios por si, e que hoje não conseguem trabalhar em cuidados paliativos porque não têm autorização para trabalhar na área – uma vez que o sítio onde estão é considerado de maior prioridade – e porque não querem ser prejudicados na sua carreira”.
A DE-SNS publicou este mês, a par com o relatório sobre o plano dos anos anteriores e com o Plano Estratégico 23/24, vários documentos “que nos podem dar alguma esperança para pensarmos que se calhar agora vai haver aqui uma atenção e uma preocupação com os cuidados paliativos por parte da direção executiva”, diz Catarina Pazes. Concluindo que “sem isso não há futuro para o SNS”.