Nenhum doente me pediu para morrer


O que foi votado não pode ser esfumado com palavras: pretendeu-se descriminalizar quem pratica a morte a pedido da vítima, por mais que lhe chamem morte assistida ou morte antecipada. A nada disto podemos chamar de ato médico.


A lei da eutanásia (morte medicamente assistida) foi promulgada pelo Presidente da República em Maio de 2023, como obriga a Constituição, dias depois de o Parlamento ter confirmado o diploma que tinha sido vetado pelo mesmo Presidente em finais de Abril. No entanto, a regulamentação da lei da eutanásia continua a aguardar melhores dias, tendo sido adiada para o próximo governo que sair das eleições de 10 de Março de 2024. O ministro da Saúde defendeu que está em causa um processo muito complexo e que “seria um erro regulamentar à pressa”!

A Declaração Universal dos Direitos Humanos consagra que “todo o indivíduo tem direito à vida”. A Constituição da República Portuguesa, no capítulo dedicado aos direitos, liberdades e garantias pessoais, estipula que “a vida humana é inviolável”. E o Código Deontológico da Ordem dos Médicos também é claro: “Ao médico é vedada a ajuda ao suicídio, a eutanásia e a distanásia.”

Quando me candidatei a bastonário da Ordem dos Médicos, fi-lo na sequência da apresentação de um programa de candidatura onde me comprometi a defender várias causas. A primeira de todas foi a “defesa intransigente dos pilares da Ética Médica e do Código Deontológico”. Ao contrário do que sucedeu com alguns dos partidos políticos que defenderam a eutanásia e não a incluíram nas suas propostas de programas.

Em democracia a transparência é um dos principais valores que devemos defender e preservar. Porquê tanta pressa? Porquê tanta opacidade por parte de quem está convicto da bondade dos seus projetos? Porquê tanta urgência em despenalizar em Portugal uma prática que a grande maioria dos Estados de todo o mundo, também eles laicos, não aplicam? Porquê tanta pressa em importar o que poucos países já fazem e que, mesmo assim, têm encontrado problemas e exemplos de casos que vão para lá das linhas vermelhas supostamente bem definidas?

O pouco debate que existiu apenas serviu para misturar conceitos. Muitas pessoas continuam a confundir eutanásia com distanásia e dizem que são favoráveis ao primeiro conceito, quando na verdade pretendem algo que a leges artis já prevê: não proporcionar tratamentos desnecessários e que prolongam a vida de forma artificial e dolorosa. As boas práticas médicas já permitem controlar a dor e o sofrimento. O que foi votado não pode ser esfumado com palavras: pretendeu-se descriminalizar quem pratica a morte a pedido da vítima, por mais que lhe chamem morte assistida ou morte antecipada. A nada disto podemos chamar de ato médico.

Sou urologista e, por isso, na minha especialidade cruzo-me diariamente com casos complexos, a nível clínico, mas também social. Esta é uma especialidade com grande peso oncológico e nunca abandonei o terreno. Tenho muitos doentes que ainda hoje me contactam no “aniversário” da notícia de que tinham entrado em remissão, e outros doentes que já partiram e continuam a viver na minha memória de dias difíceis com diagnósticos cujo desfecho era previsível.

Não o posso negar: o caminho não é fácil nem linear e traz dor. Mas nunca nenhum doente me pediu para morrer. A dimensão psicológica, cognitiva, e afetiva são tão ou mais importantes que a clínica crua quando estamos a ajudar alguém a preparar-se para morrer. A execução direta de uma morte não se enquadra nos códigos da medicina, não é um ato médico. E a medicina dispõe de cuidados paliativos que podem ajudar os doentes mais complexos, sejam doentes em fase terminal ou outros.

Não nos iludamos. Quando a regulamentação da lei for concluída, nada será igual. A nossa sociedade não será mais a mesma. Evocando Álvaro de Campos, quando escreveu sobre a morte do Alves da tabacaria… foi só o Alves que morreu, mas a “cruz na porta da tabacaria” é um presságio de que “desde ontem a cidade mudou”.

 

Bastonário da Ordem dos Médicos 2017-2022

Presidente da Associação dos Auditores de Defesa Nacional

Nenhum doente me pediu para morrer


O que foi votado não pode ser esfumado com palavras: pretendeu-se descriminalizar quem pratica a morte a pedido da vítima, por mais que lhe chamem morte assistida ou morte antecipada. A nada disto podemos chamar de ato médico.


A lei da eutanásia (morte medicamente assistida) foi promulgada pelo Presidente da República em Maio de 2023, como obriga a Constituição, dias depois de o Parlamento ter confirmado o diploma que tinha sido vetado pelo mesmo Presidente em finais de Abril. No entanto, a regulamentação da lei da eutanásia continua a aguardar melhores dias, tendo sido adiada para o próximo governo que sair das eleições de 10 de Março de 2024. O ministro da Saúde defendeu que está em causa um processo muito complexo e que “seria um erro regulamentar à pressa”!

A Declaração Universal dos Direitos Humanos consagra que “todo o indivíduo tem direito à vida”. A Constituição da República Portuguesa, no capítulo dedicado aos direitos, liberdades e garantias pessoais, estipula que “a vida humana é inviolável”. E o Código Deontológico da Ordem dos Médicos também é claro: “Ao médico é vedada a ajuda ao suicídio, a eutanásia e a distanásia.”

Quando me candidatei a bastonário da Ordem dos Médicos, fi-lo na sequência da apresentação de um programa de candidatura onde me comprometi a defender várias causas. A primeira de todas foi a “defesa intransigente dos pilares da Ética Médica e do Código Deontológico”. Ao contrário do que sucedeu com alguns dos partidos políticos que defenderam a eutanásia e não a incluíram nas suas propostas de programas.

Em democracia a transparência é um dos principais valores que devemos defender e preservar. Porquê tanta pressa? Porquê tanta opacidade por parte de quem está convicto da bondade dos seus projetos? Porquê tanta urgência em despenalizar em Portugal uma prática que a grande maioria dos Estados de todo o mundo, também eles laicos, não aplicam? Porquê tanta pressa em importar o que poucos países já fazem e que, mesmo assim, têm encontrado problemas e exemplos de casos que vão para lá das linhas vermelhas supostamente bem definidas?

O pouco debate que existiu apenas serviu para misturar conceitos. Muitas pessoas continuam a confundir eutanásia com distanásia e dizem que são favoráveis ao primeiro conceito, quando na verdade pretendem algo que a leges artis já prevê: não proporcionar tratamentos desnecessários e que prolongam a vida de forma artificial e dolorosa. As boas práticas médicas já permitem controlar a dor e o sofrimento. O que foi votado não pode ser esfumado com palavras: pretendeu-se descriminalizar quem pratica a morte a pedido da vítima, por mais que lhe chamem morte assistida ou morte antecipada. A nada disto podemos chamar de ato médico.

Sou urologista e, por isso, na minha especialidade cruzo-me diariamente com casos complexos, a nível clínico, mas também social. Esta é uma especialidade com grande peso oncológico e nunca abandonei o terreno. Tenho muitos doentes que ainda hoje me contactam no “aniversário” da notícia de que tinham entrado em remissão, e outros doentes que já partiram e continuam a viver na minha memória de dias difíceis com diagnósticos cujo desfecho era previsível.

Não o posso negar: o caminho não é fácil nem linear e traz dor. Mas nunca nenhum doente me pediu para morrer. A dimensão psicológica, cognitiva, e afetiva são tão ou mais importantes que a clínica crua quando estamos a ajudar alguém a preparar-se para morrer. A execução direta de uma morte não se enquadra nos códigos da medicina, não é um ato médico. E a medicina dispõe de cuidados paliativos que podem ajudar os doentes mais complexos, sejam doentes em fase terminal ou outros.

Não nos iludamos. Quando a regulamentação da lei for concluída, nada será igual. A nossa sociedade não será mais a mesma. Evocando Álvaro de Campos, quando escreveu sobre a morte do Alves da tabacaria… foi só o Alves que morreu, mas a “cruz na porta da tabacaria” é um presságio de que “desde ontem a cidade mudou”.

 

Bastonário da Ordem dos Médicos 2017-2022

Presidente da Associação dos Auditores de Defesa Nacional