Um ímpio latrocínio, história e actualidade


Para formar governo, roubou ao seu partido uma das suas relíquias fundacionais, a luta pela liberdade, contrafazendo-a em nome de uma falsa normalização democrática, aliando-se a forças contra quem os líderes fundadores sempre se opuseram nas ruas, praças e fontes mais ou menos luminosas da cidade, no desígnio de eleições livres e de uma democracia…


Recentes acontecimentos da vida política fizeram-me lembrar o episódio histórico do “pio latrocínio”.

No século XII, tornara-se ainda mais acesa a disputa pela predominância entre as dioceses de Braga e Compostela que decretos papais iam deixando obscura.

A contenda já vinha do fim do domínio romano na península, quando S. Martinho de Dume logrou sedear em Braga o Arcebispado da antiga província da Galécia, e a cidade se tornou um importante centro de peregrinação em honra das relíquias de S. Frutuoso e dos mártires S. Silvestre, S. Cucufate e Santa Susana, veneradas nas igrejas de Dume e S. Vítor.

Ao tempo, a importância das dioceses media-se pelo número de peregrinos que acorriam a venerar as relíquias das suas igrejas, concorrendo com esmolas e despesas para o desenvolvimento das cidades e dos lugares de culto. A posterior descoberta das relíquias de S. Tiago e sua trasladação para Compostela permitiu que esta cidade viesse a suplantar Braga na atracção de romeiros, levando o seu Bispo a querer substituir Braga como diocese arcebispal. Todavia, nem as generosas ofertas ao papado alcançaram êxito, nem evitaram novos privilégios outorgados pelo Papa a Braga em 1095.

O facto exasperou o Bispo de Compostela, Diego Gelmirez, e levou-o a uma decisão drástica, a de roubar as relíquias de Braga, forma de apagar definitivamente a importância da diocese rival.  Embora gerasse revolta das populações e perseguições aos ladrões, o roubo de relíquias era uma prática usual de igrejas e mosteiros em busca de notoriedade, e era mesmo canonicamente tolerada, já que ao desvio não seria alheia a ambição do santo, descontente com a veneração que recebia no local, de mudar para onde se sentisse mais “adorado”. Aliás, se assim não fosse, “dados os poderes sobrenaturais dos santos, o ladrão ou não as encontraria ou seria fulminado se as tentasse roubar”.

Foi a apaziguado neste entendimento que, em 1102, o Bispo Diego Gelmirez se deslocou a Braga para “desviar” as relíquias bracarenses e transportá-las para Compostela, o que fez em poucos dias. As próprias relíquias colaboraram nas pitorescas peripécias do sucesso da fuga, ao acalmarem uma tempestade que as impedia de atravessar o Rio Minho em direcção a Tui.

Ficou este episódio conhecido como o “pio latrocínio”.

Passando da história à ficção, também o roubo, nada pio e muito laico, de relicários alheios e a contrafacção para os chamar seus, foi o meio a que um governador contemporâneo recorreu sempre que os seus santos não propiciavam os milagres que o alcandorassem ao poder e nele o mantivessem.

Para formar governo, roubou ao seu partido uma das suas relíquias fundacionais, a luta pela liberdade, contrafazendo-a em nome de uma falsa normalização democrática, aliando-se a forças contra quem os líderes fundadores sempre se opuseram nas ruas, praças e fontes mais ou menos luminosas da cidade, no desígnio de eleições livres e de uma democracia pluralista. 

Instalado no poder, o envolvimento dos seus eleitos em incontáveis averiguações judiciais, escândalos públicos, demissões e remodelações mais não fez do que roubar a seriedade das instituições e a confiança dos cidadãos.    

Ao longo dos anos, persistiu em assaltar um a um os relicários políticos da principal força rival, tomando como suas as relíquias neles contidas e, pior, acusando mesmo o adversário de nunca as ter possuído. Um roubo à memória e à verdade, esquecendo o conserto e acerto das contas públicas que ao adversário todos devemos, depois das bancarrotas em que o governador foi conivente. Que continuou, ao anunciar a baixa de impostos, quando impôs sucessivos aumentos da carga fiscal, e ao reclamar o mérito das “contas certas”, quando essas foram as mais golpeadas de sempre, irreconhecíveis nos documentos originais. Não esquecendo ainda o roubo da privatização de uma companhia problemática, deixada apta a fazer o seu caminho sem novas capitalizações públicas, para a reverter em nacionalização e depois reverter a reversão, numa extorsão aos bolsos dos portugueses de mais de 3 mil milhões de euros.

Conta-se que Gelmirez mostrou remorsos pelo crime cometido e passou noites sem dormir. Não se sabe se o ficcionado dirigente dorme melhor, ademais quando não hesitou em roubar a amizade proclamada ao seu melhor amigo em dificuldades, dizendo ter sido uma infelicidade tê-lo denominado como tal. A relíquia de uma amizade tão forte, mas tão friamente traída, o leitor avaliará se o tempo um dia a poderá remir.

Já quanto às relíquias de S. Frutuoso, foram devolvidas a Braga em 1966, e as dos mártires em 1993.

Também as relíquias roubadas ao partido rival certamente que um dia serão libertadas do latrocínio e da contrafacção e voltarão ao relicário original. Oxalá que em menos tempo do que as relíquias bracarenses…

Por mim, vou pedindo a S. Frutuoso e aos santos mártires de Braga a atenção que não tiveram ao deixarem-se roubar e, já regressados a Braga, nos evitem novos latrocínios. Pios, ímpios ou de qualquer outra natureza.     

 

Economista e Gestor
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
pcardao@gmail.com

Um ímpio latrocínio, história e actualidade


Para formar governo, roubou ao seu partido uma das suas relíquias fundacionais, a luta pela liberdade, contrafazendo-a em nome de uma falsa normalização democrática, aliando-se a forças contra quem os líderes fundadores sempre se opuseram nas ruas, praças e fontes mais ou menos luminosas da cidade, no desígnio de eleições livres e de uma democracia…


Recentes acontecimentos da vida política fizeram-me lembrar o episódio histórico do “pio latrocínio”.

No século XII, tornara-se ainda mais acesa a disputa pela predominância entre as dioceses de Braga e Compostela que decretos papais iam deixando obscura.

A contenda já vinha do fim do domínio romano na península, quando S. Martinho de Dume logrou sedear em Braga o Arcebispado da antiga província da Galécia, e a cidade se tornou um importante centro de peregrinação em honra das relíquias de S. Frutuoso e dos mártires S. Silvestre, S. Cucufate e Santa Susana, veneradas nas igrejas de Dume e S. Vítor.

Ao tempo, a importância das dioceses media-se pelo número de peregrinos que acorriam a venerar as relíquias das suas igrejas, concorrendo com esmolas e despesas para o desenvolvimento das cidades e dos lugares de culto. A posterior descoberta das relíquias de S. Tiago e sua trasladação para Compostela permitiu que esta cidade viesse a suplantar Braga na atracção de romeiros, levando o seu Bispo a querer substituir Braga como diocese arcebispal. Todavia, nem as generosas ofertas ao papado alcançaram êxito, nem evitaram novos privilégios outorgados pelo Papa a Braga em 1095.

O facto exasperou o Bispo de Compostela, Diego Gelmirez, e levou-o a uma decisão drástica, a de roubar as relíquias de Braga, forma de apagar definitivamente a importância da diocese rival.  Embora gerasse revolta das populações e perseguições aos ladrões, o roubo de relíquias era uma prática usual de igrejas e mosteiros em busca de notoriedade, e era mesmo canonicamente tolerada, já que ao desvio não seria alheia a ambição do santo, descontente com a veneração que recebia no local, de mudar para onde se sentisse mais “adorado”. Aliás, se assim não fosse, “dados os poderes sobrenaturais dos santos, o ladrão ou não as encontraria ou seria fulminado se as tentasse roubar”.

Foi a apaziguado neste entendimento que, em 1102, o Bispo Diego Gelmirez se deslocou a Braga para “desviar” as relíquias bracarenses e transportá-las para Compostela, o que fez em poucos dias. As próprias relíquias colaboraram nas pitorescas peripécias do sucesso da fuga, ao acalmarem uma tempestade que as impedia de atravessar o Rio Minho em direcção a Tui.

Ficou este episódio conhecido como o “pio latrocínio”.

Passando da história à ficção, também o roubo, nada pio e muito laico, de relicários alheios e a contrafacção para os chamar seus, foi o meio a que um governador contemporâneo recorreu sempre que os seus santos não propiciavam os milagres que o alcandorassem ao poder e nele o mantivessem.

Para formar governo, roubou ao seu partido uma das suas relíquias fundacionais, a luta pela liberdade, contrafazendo-a em nome de uma falsa normalização democrática, aliando-se a forças contra quem os líderes fundadores sempre se opuseram nas ruas, praças e fontes mais ou menos luminosas da cidade, no desígnio de eleições livres e de uma democracia pluralista. 

Instalado no poder, o envolvimento dos seus eleitos em incontáveis averiguações judiciais, escândalos públicos, demissões e remodelações mais não fez do que roubar a seriedade das instituições e a confiança dos cidadãos.    

Ao longo dos anos, persistiu em assaltar um a um os relicários políticos da principal força rival, tomando como suas as relíquias neles contidas e, pior, acusando mesmo o adversário de nunca as ter possuído. Um roubo à memória e à verdade, esquecendo o conserto e acerto das contas públicas que ao adversário todos devemos, depois das bancarrotas em que o governador foi conivente. Que continuou, ao anunciar a baixa de impostos, quando impôs sucessivos aumentos da carga fiscal, e ao reclamar o mérito das “contas certas”, quando essas foram as mais golpeadas de sempre, irreconhecíveis nos documentos originais. Não esquecendo ainda o roubo da privatização de uma companhia problemática, deixada apta a fazer o seu caminho sem novas capitalizações públicas, para a reverter em nacionalização e depois reverter a reversão, numa extorsão aos bolsos dos portugueses de mais de 3 mil milhões de euros.

Conta-se que Gelmirez mostrou remorsos pelo crime cometido e passou noites sem dormir. Não se sabe se o ficcionado dirigente dorme melhor, ademais quando não hesitou em roubar a amizade proclamada ao seu melhor amigo em dificuldades, dizendo ter sido uma infelicidade tê-lo denominado como tal. A relíquia de uma amizade tão forte, mas tão friamente traída, o leitor avaliará se o tempo um dia a poderá remir.

Já quanto às relíquias de S. Frutuoso, foram devolvidas a Braga em 1966, e as dos mártires em 1993.

Também as relíquias roubadas ao partido rival certamente que um dia serão libertadas do latrocínio e da contrafacção e voltarão ao relicário original. Oxalá que em menos tempo do que as relíquias bracarenses…

Por mim, vou pedindo a S. Frutuoso e aos santos mártires de Braga a atenção que não tiveram ao deixarem-se roubar e, já regressados a Braga, nos evitem novos latrocínios. Pios, ímpios ou de qualquer outra natureza.     

 

Economista e Gestor
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
pcardao@gmail.com