Todos falamos, hoje, muito da guerra.
É normal, pois ela entra-nos porta dentro, a cada hora, transmitida pelos noticiários da TV e da rádio.
Vemos imagens, que nos garantem ser de operações militares e que servem para confirmar as notícias que nos dão e que, por vezes desconfiados, acabamos por aceitar.
Acontece que, mesmo quando tais imagens retratam, paralelamente, o sofrimento clamoroso de soldados ou de civis, elas destinam-se, no essencial, a documentar a ação guerreira, os avanços e recuos dos exércitos, os sucessos ou fracassos de determinado tipo de armas, a glória ou a humilhação dos que lutam num ou no outro dos lados guerra.
A guerra que nos dão a ver é, pois, maioritariamente, aquela que reflete a ação e a excitação dos militares; é a guerra, tal como estes a imaginam, veem e vivem.
No essencial, ela é dada a ver como se de um desafio entre duas equipas de gladiadores se tratasse.
A guerra tem, porém, uma outra vertente, tão ou mais importante, tão ou mais real, do que a que nos é narrada.
Há, também, a guerra dos civis, daqueles que nela não participam de armas na mão.
Falo da guerra vivida por homens, mulheres, velhos e crianças, que dela fogem, depois de perdidos – mortos e feridos – os seus familiares mais queridos.
Dos que assistem à destruição de bens reunidos durante uma vida e das pessoas que não sabem para onde ir, onde se abrigar nem, por fim, de quem fugir, ou a quem acompanhar.
Falo daqueles que já perderam o seu lado da guerra, se alguma vez o tiveram.
A guerra é, também, esta, a vista por esse outro flanco da vida, com os seus oportunismos, os seus medos, as suas traições, as suas dores, as suas indecisões, enfim, o seu desespero.
A guerra é, também, esta, a que nada tem de romântico ou heroico e que não necessita que as suas imagens sejam montadas e manipuladas para obter delas qualquer vantagem política, militar ou diplomática.
A guerra é, também, esta, a da destruição massiva das memórias que, depois das paradas garbosas, dos desfiles envergonhados dos derrotados, da fuga e desaparecimento dos que a motivaram, das procuradorias e dos tribunais especiais – inventados a posteriori, para punirem os perdedores – vai ficar, por muitos anos, a ferir a vida da maioria dos civis que a viveram e a ela sobreviveram.
A guerra é, também, esta, a da tragédia que escapa aos comentários cínicos dos estrategas de bancada que, como os do futebol, ou os do velho circo romano, apostam diariamente o seu prestígio e os seus trunfos – e, portanto, também os seus proventos – em frente das câmaras da TV.
A guerra é, também, esta – e sobretudo esta -, a dos pobres, a dos que procuram um buraco para dela fugir e esconder os filhos e que as polícias nacionais (e a dos aliados) perseguem para lá da própria fronteira, para os reenviar para a fornalha das bombas e da metralha.
Os outros, os seus compatriotas que obtiveram os vistos gold, sempre podem argumentar que, mesmo a salvo de todos os perigos, estão a colaborar economicamente com o seu lado da guerra, por via dos investimentos que fazem e dirigem no exterior para pagar mais e mais armas.
Podem, por isso, continuar a viver tranquilos e desinteressados da vida dos seus outros compatriotas que, tendo como eles fugido, julgaram ter, também, alcançado a salvação das suas famílias, fazendo trabalhos menores e mal pagos para os seus novos bosses.
Eles, os dos vistos gold, não serão nunca apelidados de desertores.
Mostrar, mais expressivamente, esta outra dimensão da guerra, poderia, talvez, apressar uma solução para os problemas reais – mas, ainda assim, menores – que justificaram as primeiras e timoratas iniciativas belicistas e as demasiado custosas obstinações presentes dos que, ainda, nela querem persistir.
Li, recentemente, um romance, de grande atualidade, de um escritor espanhol que, precisamente, se preocupa em revelar este lado orwelliano da guerra contemporânea.
O lado dos que, em cada lado, a sofrem, sem nela terem uma palavra a dizer, a não ser a que, a medo, sussurram ao ouvido dos parceiros mais fiéis.
Nele se expõem os resultados de um conflito duradouro e a consequente evolução dos pensamentos, dúvidas, temores, anseios e, mesmo, das pequenas e transitórias alegrias, dos que o vivem – e vão sobrevivendo – a contragosto.
É que, além do mais, na guerra descrita no livro – como acontece em muitas outras mais reais e mais sofridas -, os que, verdadeiramente, a suportam não descobrem motivos reais e contradições relevantes que lhes permitam tolerar as dores e destruição que ela traz.
Chama-se Ray Loriga, e o livro «A rendição».
Talvez, num último esforço para convencer os senhores da guerra a pôr-lhe cobro, o Secretário Geral das Nações Unidas pudesse tomar a iniciativa de oferecer um exemplar deste livro a cada um dos que – entrincheirados em verdades indemonstráveis – dizem que a guerra só terminará um dia, sabe-se lá quando, com a vitória de um dos lados.
É que – e isso é demasiado evidente –, por ora e por muito tempo mais, todos estamos e estaremos a perder.
Por, coerentemente, se ter oposto a esta outra guerra – a guerra que uns promovem e que, sobretudo, os outros, os mais pobres sofrem – o socialista Jean Jaurès[CA1] foi assassinado há mais de cem anos.
Por, precisamente, saber quanto esta outra guerra desumaniza hoje, e afetará depois, terrivelmente, o futuro da humanidade, o Papa Francisco tem-na condenado e apelado à paz.