A realidade interpela-nos para diversas atitudes das pessoas e das instituições, sendo que algumas são suscetíveis de gerarem um conjunto de consequências muito negativas para o quadro de referência da organização e do funcionamento da sociedade.
Há muito que o hiato entre o tempo de necessidade e o tempo da decisão para a geração de ajustes ou respostas de mitigação é um desafio essencial das nossas vivências individuais e comunitárias. Por regra, tardamos a detetar as realidades e as tendências, demoramos demasiado tempo a concretizar as respostas. Este padrão laxista, pontuado entre a indiferença do funcionamento corrente das rotinas e a burocracia orientada para obstaculizar as ideias, os projetos e as iniciativas, sobretudo quando são lesivos da manutenção dos pequenos poderes e dos interesses instalados, é um enorme risco para o contrato social a que cada um de nós está obrigado por viver em comunidade e para os sistemas democráticos. Este “deixar andar” face às realidades concretas ou às dinâmicas que surgem face a elas, tenham ou não fundamento, sejam ou não projetadas em suportes de comunicação com potencial viral, é demasiado perigoso para ser deixado a medrar na sociedade e nas redes sociais.
A observância da lei não pode estar sujeita à geração de perceções de que há cidadãos de primeira e de segunda no que concerne à sua aplicação e de que existem mecanismos que eximem o seu cumprimento, ainda que alguns, também aqui, possam querer que os fins justifiquem todos os meios.
Portugal tem um problema demográfico sério, que ninguém antecipou de forma consequente e muito menos é respondido de forma a reter a população que temos e a gerar incentivos para que as taxas de natalidade sejam diferentes. Aliás, o sufoco generalizado em que se vive e a substancial ausência de previsibilidade, por via das opções políticas e das conjunturas, justificam boa parte das realidades desta expressão da comunidade.
O problema demográfico e o perfil do contexto de trabalho geraram um conjunto de necessidades de mão-de-obra e de serviços que têm estado a ser respondidos a toque do funcionamento selvagem dos mercados, das redes e de uma margem de arbítrio que começou a gerar atenção e reação quando se tornou num elefante no meio da sala da loja de porcelana.
Em Portugal, quase ignoramos muitas realidades até ao momento do sobressalto geral das consciências, sobretudo através dos media, em que emerge uma comoção nacional e um clamoroso brandir de compromisso institucional de ação. Foi assim com os incêndios florestais no Interior despovoado e com a sujeição de imigrantes a deploráveis condições de vida, a toque das redes de tráfico e de empregadores entre o desesperado e o oportunismo da indiferença.
Gangrena há meses um conjunto de realidades e boatos em torno do Transporte Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Eletrónica – TVDE, que já deveriam ter sido sujeitos a uma grande intervenção das autoridades para fiscalizar e dissipar o que circula nos media e nas redes sociais que se constituem em elementos perturbadores da perceção geral do sentimento de segurança e fator de potenciação de fenómenos de racismo e xenofobia.
Bem sei que a atividade turística, como a da hotelaria, da restauração, da construção, da indústria e da produção rural precisam de mão-de-obra, mas não podemos permitir este tipo de gangrenas sem ação das instituições do Estado, dos órgãos de polícia criminal e do sistema judicial.
Nada justifica a impunidade vigente, nem mesmo o novo recorde de procura turística em Portugal, que superou em mais 4,9 mil milhões de euros o máximo que tinha sido atingido em 2019 e fica 16,7 mil milhões acima do montante de 2021.
Não há nada que justifique o desastre na condução que se assiste por parte de alguns TVDE’s, sem mínimos de compromisso com a urbanidade e o Código da Estrada, como se estivéssemos noutras latitudes geográficas, até no espaço da União Europeia, sem respeito pelos semáforos, os traços contínuos ou a sinalização de mudança de direção (coima de 60 a 300 euros).
Sendo obrigatório a fluência e compreensão da língua portuguesa para o acesso à certificação obrigatória de motorista de TVDE, a par da existência de registo criminal, não é aceitável que existam e persistam impunemente numerosos protagonistas que não cumprem este pressuposto básico para a obtenção do documento habilitante.
E muito menos é aceitável que neste universo duvidoso de consistência e de legalidade, não exista uma intervenção musculada das instituições para fiscalizar e dissipar os casos, os boatos e a gangrena de receios, boatos e outras expressões de deslaço da confiança e normalidade das vivências em sociedade.
Deixar gangrenar a ilegalidade e a desconfiança xenófoba é um desastre a que um estado de Direito democrático não se pode permitir, mesmo num Portugal ávido de quem responda às necessidades de mão-de-obra de amplos setores da economia. Integrar a diversidade, com respeito pela legislação e pelos padrões civilizacionais vigentes, como quisemos que acontecesse com os nossos conterrâneos que partiram à procura de melhores vidas tem de ser o padrão. Bom para quem cá vive. Bom para quem chega à procura de futuros e para responder às necessidades não preenchidas. Deixar gangrenar as disfunções, as ilegalidades, os esquemas evidentes na certificação exigida e os populismos é demasiado perigoso. É tempo de agir, de fiscalizar, de punir e gerar confiança.
NOTAS FINAIS
À GRANDE E À LARGARDE(AIR). Choca-me a burocracia da insensibilidade com a dignidade humana, de quem mesmo num pedestal de independência para orientar a política monetária da União Europeia, com pouco lastro de acerto nas análises, venha a um território traumatizado pela austeridade e pelas cargas fiscal, brandir por mais fustigo. Logo a mesma Christine Lagarde que depois da troika largou uma lágrima de arrependimento ao dizer em 2013 que houve “demasiada consolidação orçamental, demasiado depressa”, defendendo tardiamente mais tempo como sustentara António José Seguro. É a mesma que dizia em outubro que o “aumento da inflação era temporário” e agora diz que “vai persistir”. E, pelo meio, há as pessoas.
FAROESTE. A inconsistência da decisão da localização do novo Hospital do Oeste no Bombarral, sem compromisso entre partidos do arco do poder e perspetivas compensatórias em relação aos lesados pelas mudanças, só vai gerar enleio para a sua não concretização. Para decidir pela geografia, bastava pedir à inteligência artificial que não tem interesses particulares.