No passado dia 21 de junho, apresentei, perante a 1.ª Comissão da Assembleia da República (direitos, liberdades e garantias), o relatório do trabalho anual do gabinete português na Eurojust.
Foi, creio, a minha última intervenção pública enquanto magistrado do MP.
Esta prática foi-me inicialmente suscitada pelo então presidente da referida Comissão, Pedro Bacelar de Vasconcelos, logo aceite por mim e pelos magistrados que constituem o gabinete com entusiasmo, e continuada, ininterruptamente, depois, por outros presidentes da Comissão.
Esta apresentação consiste, desde o início, e no essencial, numa forma dialogada de prestação de contas.
Ela constitui, também, além disso, uma oportunidade para alertar os deputados nacionais para as consequências, sempre imprevistas, das interseções entre a legislação europeia e a legislação nacional, tanto no plano do direito processual penal, como no da organização judiciária nacional.
Antes de tal apresentação pública, havia realizado já – como é correto fazer-se – a apresentação de tal relatório à Ministra da Justiça e à Procuradora-Geral da República.
Deste modo, se procurou, sempre, informar e discutir diretamente com os responsáveis políticos e hierárquicos por esta área os problemas suscitados pela, cada vez mais presente e abrangente, cooperação judicial europeia e internacional em matéria penal.
Com efeito, muitos dos aspetos e consequências mais importantes de tal interseção legislativa não são – nem podem ser – imediatamente apreensíveis pelo legislador europeu e nacional.
A relevância de tais consequências para a legislação e os exercícios judiciários nacionais resulta, na verdade, evidente apenas aquando da aplicação prática dos instrumentos de cooperação judicial e do reconhecimento mútuo.
São, assim, os membros dos diferentes gabinetes nacionais que integram a Eurojust e que são – ou melhor têm sido até aqui – os protagonistas principais da cooperação entre os sistemas de justiça dos Estados Membros da UE e entre estes e os dos estados terceiros, quem melhor e mais rapidamente se apercebem dos efeitos imprevistos que algumas inovações têm para a articulação, coerência e o funcionamento dos sistemas de justiça próprios.
Por tal razão, mais do que debruçar-me sobre o progressivo e expressivo aumento da produtividade do Gabinete, facilmente acessível através da leitura do texto e mapas do Relatório, procurei, desta vez – por ser o último relatório que apresentei em nome do gabinete português – centrar-me mais nas dúvidas que os atuais caminhos da cooperação, melhor dizendo da integração judicial, me suscitam.
Acentuei, por isso, o que me parecem ser os desvios e correspondentes riscos das orientações federalizantes que se vão impondo progressivamente, mais por via da regulamentação técnica dos diplomas legais europeus, do que por vontade explícita do legislador europeu e nacional.
O problema de tal direção – legítima, se for essa, de facto, a vontade declarada do legislador europeu e nacional – é que, como aqui já escrevi, ela é desenvolvida, não no âmbito da intervenção legislativa direta, mas, sobretudo, através de orientações internas, de caráter supostamente técnico e organizativo.
Tais orientações são formuladas, quase sempre, por funcionários europeus, condicionando, de algum modo, o sentido da aplicação prática dos diplomas legais europeus.
Além disso e mais grave é o facto de, pelo que antes se disse, parecer esbater-se, no plano operacional, a distinção entre o que são as legítimas intervenções e poderes judiciais próprios dos magistrados nacionais e dos membros dos gabinetes nacionais e as dos secretariados dos grupos de trabalho e redes de procuradores especializados da Eurojust.
É que estes secretariados integram também funcionários e peritos da UE que, em princípio, não têm, pela sua natureza estatutária, vocação para intervir de motu proprio, no mesmo plano que os magistrados, em casos de cooperação na investigação criminal: o mesmo é dizer, em casos judiciais titulados e da competência exclusiva das autoridades nacionais.
A Eurojust em que comecei a trabalhar, há já nove anos, evoluiu muito até hoje e, em alguns aspetos, foi vendo esmorecer muitas das particularidades iniciais únicas que a caraterizavam, basicamente, enquanto unidade de cooperação judicial composta por autoridades judiciais e judiciárias dos Estados Membros.
Hoje, tendo adquirido o formato organizacional e institucional comum a outras agências europeias mais ligadas à concretização das políticas executivas – com uma autonomia muito mais reduzida em relação aos órgãos de governo da União –, a intervenção dos membros dos gabinetes nacionais que, como magistrados, nela representam as autoridades judiciais e judiciárias do Estados Membros está, assim, muito mais espartilhada.
Ora, não sendo, até agora, obrigatória a intervenção operacional da Eurojust, e resultando ela, fundamentalmente, das solicitações das autoridades judiciárias nacionais dos Estados Membros ou de estados terceiros, um dos riscos que se corre com tal orientação executiva e centralizadora, é o de aquelas recearem e, por isso, se desinteressarem do vantajoso apoio prestado pelos gabinetes nacionais sedeados nesta agência.
Na realidade – verdadeira ou, ainda, falsa – a perceção de que, de alguma maneira, a liderança das investigações a nível nacional poderá, caso haja recurso à Eurojust, ser condicionada, agora, pela intervenção de estruturas e agentes executivos externos ao sistema judicial nacional e europeu, poderá limitar, de imediato, a vontade do recurso a esta instituição.
O sucesso da Eurojust baseou-se, até agora, numa ideia fundadora do Tratado de Lisboa: a da existência de um elevado e crescente grau de confiança mútua entre autoridades judiciárias nacionais.
Não, por isso, no da intervenção tutelar de uma qualquer organização supranacional, superior ou federal.
É, pois, capital preservar e aprofundar esse espírito de grande abertura e confiança: característica que reside na convicção de que todos os membros dos gabinetes nacionais da Eurojust agem, apenas, de acordo com a lei e os princípios de autonomia e independência próprios das autoridades judiciais de estados democráticos.
São estes mesmos princípios, recentemente, mais bem desenhados – e adotados como conceitos de direito europeu – pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, que, de acordo com a sua jurisprudência, autorizam o exercício do princípio do reconhecimento mútuo das decisões tomadas pelas distintas autoridades judiciais dos Estados Membros.
Neste momento particular da história europeia, em matéria de divisão de poderes e defesa da preservação da independência do sistema judicial e judiciário, não se pode, antes pelo contrário, dar sinais contraditórios e exigir de outros o que não se cumpre em casa.
Saibamos todos, pois, continuar a agir com sabedoria e prudência, impedindo que o excesso de voluntarismo de alguns ponha em risco tais princípios e os bons resultados já alcançados pelo quotidiano trabalho de aproximação jurídico-cultural, entre os magistrados dos Estados Membros e os dos países terceiros que hoje, também, recorrem à Eurojust.
É, sobretudo, no princípio e na prática da confiança mútua – desenvolvidos diariamente entre magistrados nacionais e os magistrados representantes nacionais dos países que integram a Eurojust – que reside o sucesso operacional desta instituição, enquanto organização plurinacional de apoio à cooperação judicial europeia e internacional.