Num texto que publiquei neste jornal em Março, demonstrei que Portugal não é hoje uma democracia e que a generalidade dos problemas que afligem os portugueses, como se pode ler pela sondagem recente do jornal Expresso, resultam do partido no poder, o Partido Socialista, ser hoje um partido monolítico governado por interesses individuais e com um chefe todo poderoso que decide de acordo com aquilo que considera ser o seu interesse político de manutenção do poder. Em que os deputados do partido, em maioria na Assembleia da República, foram escolhidos pelo secretário geral, como foram da sua escolha, ou da escolha dos seus escolhidos, os candidatos a autarcas e os dirigentes de todos cargos públicos, empresas públicas e instituições da sociedade, sem deixar de ter uma forte influência na escolha de algumas empresas privadas do regime. Ver o caso da EDP.
Acredito que António Costa tem hoje mais poder através do actual modelo político do chamado centralismo democrático, do que Salazar tinha através do seu modelo ditatorial de governação. Com a diferença de Salazar usar o seu poder para escolher governantes de elevada craveira intelectual e profissional e António Costa preferir escolher governantes medíocres e sem as qualidades necessárias de governantes, porque dessa forma os escolhidos só têm o poder que lhes é delegado pelo Secretário Geral do PS. Fernando Medina e João Galamba, como todos os outros ministros e secretários de Estado, como aliás os deputados do PS, só têm o poder que sirva os desejos de António Costa. Todos sabem isso e todos se adaptam a essa realidade. Na escolha da localização do aeroporto, na política ferroviária, na TAP, na saúde, na educação, na justiça e em tudo o resto, aquilo que cada um faz depende da vontade única de António Costa. Por exemplo, no famoso ministério das Infraestruturas, João Galamba é o terceiro ministro, mas os erros das políticas seguidas são os mesmos. Por sua vez, Pedro Nuno Santos que se cuide, porque o seu acesso ao poder partidário não vai ser nada fácil, diria mesmo que é praticamente impossível.
Nos primeiros anos seguintes ao 25 de Abril, os deputados escolhidos pelos partidos eram em geral personalidades de grande qualidade que tinham combatido o anterior regime, sendo hoje, na sua esmagadora maioria, ilustres desconhecidos sem currículo que se veja, porque resultam apenas da escolha do Secretário Geral do PS e das suas preferências. No actual Governo apenas o ministro da Economia e a ministra da Ciência terão opiniões próprias, mas que gerem com dificuldade para que possam ser toleradas.
Acresce que enquanto Salazar sempre procurou fazer pontes com sectores da sociedade que poderiam constituir algum perigo para o seu poder, como os monárquicos ou os integralistas, ou com os diferentes presidentes da República, que nem sempre eram fáceis de gerir, António Costa, com a sua maioria absoluta, cortou todas as pontes com todos os outros partidos com assento parlamentar, eventualmente com a excepção pontual do Livre e do PAN, com quem assume, por vezes, uma actitude protectora. Outro exemplo: a maioria absoluta, depois da coabitação com o PCP e com o Bloco de Esquerda, poderia ter conduzido à criação de pontes à direita, nomeadamente com o PSD, com o objectivo de melhorar o clima político e de facilitar as reformas necessárias. Isso não foi feito e António Costa criou, ou deixou criar, a presente situação de guerrilha entre os partidos, feita de acusações inúteis e de erros originados nas orientações de António Costa, que enveredou por um ambiente político de fuga à realidade e de ausência de transparência.
Finalmente, de acordo esta sua linha política de cortar pontes e de reforço do seu poder pessoal, António Costa lançou pela borda fora quatro anos de boa colaboração do Presidente da República, para iniciar uma guerrilha com Marcelo Rebelo de Sousa, cujo fim não será a defesa de uma qualquer política governamental útil ao País, para ser apenas uma afirmação do seu poder pessoal. Ou seja, António Costa tem hoje um poder discricionário, quando nem sequer avalia publicamente, ou segue as recomendações de sectores do seu próprio partido, como seja o caso do presidente Carlos César. Mesmo nos casos que dizem respeito ao futuro político do PS, António Costa tem prejudicado a qualidade da governação para defender uma liderança futura enquadrada na sua vontade. Ou seja, os recentes casos e casinhos têm muito a ver com a imposição ao partido de uma futura e determinada linha política.
Mesmo na separação de poderes, que é um principio sagrado dos regimes democráticos, António Costa tem conseguido contornar o sistema. Por exemplo: iniciou a sua governação pela substituição da Procuradora Joana Marques Vidal e escolheu de seguida uma nova Procuradora Geral da República mais maleável aos seus objectivos, que são, entre outros, evitar julgamentos desagradáveis e potencialmente negativos na opinião pública, com riscos para si e para o PS; tentou uma solução mais colaborativa do Tribunal de Contas, ainda que faça o possível para que o Governo desconheça as suas críticas; introduziu socialistas na Polícia judiciária e tudo tem feito para influenciar a escolha dos juízes do Tribunal Constitucional, em que a última eleição do seu presidente foi uma longa batalha que acabou por lhe dar a vitória. Também as novas leis, ou a sua falta, como a ausência selectiva da sua regulamentação, são formas criativas de exercer a vontade única de António Costa.
A cereja no topo de bolo do exercício de poder de António Costa, no sentido de minar todas as oposições, o secretário geral do PS usa o Chega e recriou uma gigantesca máquina de propaganda que envolve os mais caros profissionais disponíveis, sem deixar de introduzir em todos os níveis das hierarquias, socialistas fiéis aos seus objectivos. No caso recente do SIS, o resultado só poderia ser aquele que foi: cumprir a vontade de António Costa e depois construir uma falsa legalidade.
Nesta batalha de António Costa de reforço da sua vontade e do seu poder pessoal, nem tudo sai bem à primeira, porque nem todas as regras democráticas foram ainda ultrapassadas e existem sempre democratas no aparelho do Estado que oferecem resistência. Todavia António Costa nunca desiste e volta à carga para contornar todas as regras que sejam desfavoráveis aos seus objectivos. A corrupção situa-se nesta categoria, porque se por um lado prejudica a imagem do primeiro-ministro e do Partido Socialista, por outro reforça a dependência de muita gente desse poder. O axioma de que há justiça o que é da justiça e à política o que é da política, permite conviver bem com a corrupção e não prejudicar os poderes que constroem o poder não democrático de António Costa.