Martin Amis. Um escritor em guerra aberta aos clichés

Martin Amis. Um escritor em guerra aberta aos clichés


Morreu no dia 19 deste mês, aos 73 anos, um dos mais virtuosos estilistas da língua inglesa, um romancista admirável, mas, sobretudo, um formidável crítico literário e um grande antagonista da presunçosa afectação dos escritores contemporâneos, dessa torrente da prosa sentimentalona, regurgitando clichés, tautologias e lugares comuns.


Embora hoje poucos pareçam guardar memória disso, há umas décadas a crítica literária estava entre os géneros literários mais exaltantes, e se foi responsável por criar estrondosas reputações literárias, mais do que isso, a importância deste género que tanta ansiedade, ressentimentos e desespero provocou ligou-se sobretudo à capacidade de atrair leitores ao fundar e entreter o dia-a-dia de uma espécie de bolsa de valores imensamente flutuante, uma paródia vitalista que lançava um enredo abrangente bastante rude e, por vezes, redutor, mas que não deixava de alimentar grandes entusiasmos e rivalidades, de empolgar e divertir, cativando a imaginação ao mesmo tempo que impunha uma intriga de forma a que a literatura, de um certo prisma, pudesse ser encarada como um desporto de combate entre espíritos audaciosos e, não raras vezes, cruéis, empenhados em provar o seu mortífero talento na hora de se enfrentarem no campo da nuance psicológica, seres que abandonavam a pacatez das rixas locais ou até regionais para se lançarem em disputas terríveis num campo de batalha imenso, revelando uma impaciência extraordinária com os seus próprios destinos.

Capazes de expressar desejo e intolerância, fúria amarga, momentos de estrepitoso humor e sátira, tudo feito de apontamentos que dificilmente caberiam noutro lugar. É um laboratório mas também um museu do inesperado, de ousadias que precisavam de ser testadas ali de forma a que a energia por estas libertada dê a alguns destes escritores o balanço para alcançarem outros fulgores. É também um campo de zaragatas e enfrentamentos extraordinários que, obviamente, atraem e açulam a multidão de pretensiosos egomaníacos, de medíocres mimados por um sistema mediático que vive de alimentar as ilusões mais imodestas nos espíritos mais inaptos para as tarefas criativas, esses que, para alimentarem os seus devaneios, gostam de fazer reverter o génio das melhores obras que lêem para si mesmos, vivendo, sem nem se darem conta, os momentos de maior arrebatamento intelectual por procuração. É um modo de participar como se, por cima do ombro, a sombra do leitor gerasse um certo incitamento, e ele sente-se envolvido, a argumentar, a debater, a sofrer com as eventuais ressonâncias face à sua própria vida de uma determinada cena ali descrita.

Um compêndio de fragmentos aguardando a sua oportunidade, o seu precipício. Anotações vertiginosas e que se lançam tantas vezes de forma inusitada sobre situações que não pedem um tal grau de empenho ou uma atitude tão beligerante, provérbios e citações que, distorcidos, permitem a um ser geralmente omisso ter momentos de uma truculência ou de um apuro que, muitas vezes, só geram desnecessários equívocos. De qualquer modo, muitas destas lições ficam connosco como uma segunda pele, dirigidas a uma vida além das possibilidades do nosso mísero quotidiano, nem por isso deixam de exigir a sua hora e o seu êxtase para se exprimirem com o balanço de uma volúpia ou de um ânimo excessivos. No fundo é um diálogo que se passa em mesas que estão deslocadas, quase fora do mundo, fulgores da consciência que exigem um outro tempo, calamidades testemunhadas intimamente. Numa crítica a um livro de William Burroughs, Amis aproveita-se de uma lição que tirou de um dos seus livros para conseguir uma arrancada fenomenal: “Se um babuíno mais fraco é atacado por um mais poderoso só tem duas formas de escapar: pode oferecer o seu horroroso traseiro cor de ameixa para um coito passivo ou pode planear e liderar um ataque a um babuíno ainda mais frágil.” Logo depois cita um personagem do livro The Naked Lunch que nos lembra que os babuínos acabam sempre por dar cabo do elo mais fraco em qualquer altercação, e que é bom não nos esquecermos da nossa gloriosa herança simiesca. Desde logo, esta herança serve também para explicar a tentação de alguns críticos para distrair dos seus fracassos noutros géneros sepultando as ambições de algum rival. Não era o caso de Amis, que, ainda que nunca tenha conquistado o principal prémio do seu país, o Booker, isto quando os romancistas de quem era amigo e a quem foi sendo associado – McEwan, Rushdie e Barnes – o ganharam, não precisou dele para se impor, uma vez que o seu próprio juízo tinha mais peso do que o desses júris tantas vezes formados por autores ineptos. De qualquer modo, se tantas vezes foi gloriosamente rude nas suas críticas, reconheceu mais tarde que ser insultuoso é uma forma de corrupção juvenil do poder, mas que o escritor tende a perder esse gozo da crueldade ao dar-se conta do quanto as pessoas se esforçam e do muito que esses insultos as magoam e ainda da forma como nutrem ressentimentos, tantas vezes indo abraçados a eles até à cova.

Um desses autores terá sido precisamente Burroughs, o certo é que, no final de uma tão sucinta quanto absorvente e exaltante recensão a outro dos seus livros, Amis defende que a singularidade de Burroughs se liga à qualidade extrema de um artista quase psicótico. “A sua obra é, a muitos níveis, impenetravelmente clandestina e assustadoramente pessoal”.

Um parêntesis: Amis abusava dos advérbios, mas, como assinalou James Parker num artigo na The Atlantic, na sua prosa o advérbio é uma necessidade moral, uma vez que nos permite sentir o juízo do autor, a pressão constante da sua mente na forma como esta vai aduzindo sentido ao saltar de uma impressão para a outra, ao descobrir e desencadear relações que seriam improváveis até ao momento em que nos sentimos arrastados pelo fulgor dessa atenção que se sobrepõe à nossa. Mas a par da ambição da sua escrita, sendo um desses raros autores que entendia como a humildade chega a ser um exagero da boa educação que tantas vezes acaba por esmagar o espírito, ele tinha depois a grandeza necessária para ser verdadeiramente compreensivo e generoso, para admirar sem ser mesquinho, para começar uma parágrafo admoestando um autor pelas suas fragilidades, sem, no entanto, perder de vista os aspectos mais conseguidos e que justificam a devoção essencial a todo o exame crítico. “Aqueles que persistem com Burroughs fazem-no pelos deslumbres acidentais do seu estilo. Este é muscular, musical e profano. O seu ouvido para o vernáculo é maravilhosamente apurado; ele revela um talento notável e ilimitado no que toca a parodiar vozes contemporâneas”…

O estilo aqui é não apenas mais outra obsessão própria de alguém com um desejo de ser admirado pelos seus pares, mas algo de mais profundo e exemplar, um princípio estruturante dessa relação de soberania diante da existência, a noção de que toda a escrita se organiza como uma campanha contra o cliché. Ele admirava essa sumptuosa paciência daqueles que aguardam mais uns instantes, às vezes uma vida inteira pelo delicado contorno das frases que são capazes de segurar eternamente uma impressão ou até mesmo uma emoção passageiras, e nos seus textos de crítica não faltam essas citações que parecem arrancadas com uma tal ganância que é ali que adquirem a sua mais plena vertigem, como pedaços de roupa entre gestos ao mesmo tempo nervosos e cheios de um grácil ímpeto, como esta do seu mestre e pai substituto, Saul Bellow: “Quando alguma nova ideia se apossava do seu coração, Herzog ia para a cozinha, seu quartel-general, para a anotar.”

Para Amis a razão que fazia da prosa de Bellow uma constante fonte de prazer prendia-se com a sua “manifesta imunidade face a todas as formas de falsa consciência”. No fundo, ele entendia que o escritor trava esse combate perpétuo que passa por reconhecer como aquilo que caracteriza a linguagem é a sua indocilidade, essa força que a mantém capaz de resistir mesmo às mãos mais treinadas, e que nunca chegam a fazer dela um ser amestrado, mas que são obrigadas a lançar continuamente as suas redes, e a submeterem-se invariavelmente a um esforço de separar o melhor do pior. Amis entendia ainda que a perpétua condição nascente da linguagem está ligada à sua promiscuidade, notando o paralelo que pode ser traçado entre os usos que lhe damos e aqueles indiscriminados usos que permite qualquer moeda em circulação, vincando que o pecado natural da linguagem é o facto de esta operar de forma cumulativa, obrigando aquele que escreve a debater-se com a necessidade tantas vezes paralisante de expurgar cada parágrafo das suas fragilidades mais e menos evidentes. Nunca um escritor pode ser tão genial ao ponto de poder ser aliviado de um implacável exame minucioso das suas próprias frases. Se há um credo que lhe foi transmitido pelo pai, Kingsley, e que Martin nunca atraiçoou, é a noção de que aquilo que nos mantém unidos a cada um e a todos nós são as palavras, e a partir do momento em que estas perdem a sua força, nada mais consegue suster qualquer sentido de presença ou integridade. Por esta razão, se o escritor desenvolve uma competência particular é a de abandonar a manada e a forma como esta recorre a frases feitas, “metáforas fossilizadas”, lugares-comuns de toda a espécie, todos esses elementos que carregam o idioma para um estado anémico em que todas as verdades são reduzidas a meia dúzia de fórmulas simples, copiadas, memorizadas, passadas de mão em mão, o que apenas sinaliza a forma como a mente se deixa obstruir e ficar presa a eternos rodeios.

Cabe ao escritor buscar a frescura, essa forma de se servir de todos os recursos para provocar um motim ao nível da expressão, e para isso era preciso reaver o mundo através de uma percepção original. Amis entendia esse factor de obsolescência do próprio regime da comunicação e da clareza, à medida que a História parece acelerar e abundam as teorias e os discursos, todo esse regime da tagarelice ao qual nos rendemos e que representa novas formas de cegueira, de falsas representações, as quais, por sua vez, conduzem a horríveis distorções da consciência comum. Por essa razão, ele entendia que o principal acto de moralidade passa por desenterrar a realidade, recuperá-la do lixo onde foi atirada, representá-la novamente de forma espantosa como só a grande arte é capaz de fazer.

O estilo não era tido apenas como mais outro elemento de composição, mas revelava a própria substância da escrita de um autor, sendo algo intrínseco à sua percepção. “Gostamos de separar o estilo do conteúdo (para efeitos de análise, etc.), mas estes não são separáveis: vêm do mesmo sítio. E o estilo é moralidade. O estilo julga.”

Se detestava a babugem redundante que caracteriza os mais amorfos literatos, enquanto crítico era sempre vigoroso, prescindindo de estar sempre a prestar provas perante algum comité. Era bem mais despachado e descomplexado do que um James Wood, e, sem deixar de ser muitíssimo acutilante, bastava-se com o esforço de assinalar os pontos mais prometedores para eventuais esforços de perfuração a serem levados a cabo pelas equipas que se empenham nas extracções de minérios no terreno das letras, sendo leal acima de tudo à ideia de que o que importa quando se escreve sobre livros é provocar no leitor aquela sensação de gozo e confiança, uma certa intimidade com os textos que permite estar à vontade e levar as coisas para um registo de galhofa, sem, no entanto, se entregar ao som das agulhas de tricô e andar para aí a falar de obras e autores rebaixando tudo num tom de mera intriga jocosa. Assim, se não era raro perceber o júbilo quando tinha margem para fazer as suas demolições controladas, diante das obras cuja espontaneidade sem remorsos lhe faziam a alma cair de joelhos, ressaltava que a tarefa do crítico é não se interpor demasiado na transmissão desse efeito de esplendor: “a tua tarefa passa então a ser a de criar um percurso de forma a poderes alinhar um conjunto de passagens e fragmentos que estás desejoso de citar”.

Mas alguma coisa mudou no espaço que a crítica ou até a literatura em geral ocupava, e Amis notou a forma como o mainstream estava a ser atomizado. “A próxima vaga de génios pode andar por aí, mas já não é visível, não publicamente. Na medida que ao mainstream foi uma instituição, estes escritores já não podiam fazer o seu trabalho aceitando as condições por esta propostas.” Por isso abriram caminho através do subterrâneo, buscando um submundo de códigos e sombras, de formas de discrição e anonimato, regimes de dissidência sem grande espavento, e as suas reputações literárias passaram a organizar-se já não de acordo com uma qualquer bolsa de valores pública, mas com um regime de culto que abdicava da atenção das massas e não procurava conformar-se com os modelos daqueles que buscam a atenção e se comportam de acordo com os valores gerais da simpatia, obrigando os escritores a participar em enredos de mentiras servidas de forma meio-sinceras a leitores que simplesmente querem encontrar o seu lugar face às antigas hierarquias e aos seus fracos consolos.

Num certo sentido, ainda que a sua ficção correspondesse idealmente ao apuro estilístico pelo qual se bateu sempre nas suas críticas, estas abriam margem a especulações e ajustes de contas capazes de encadear reflexões contundentes dessas que fazem “o leitor suar de prazer”, de uma forma que muitas vezes o romance não permite pelo simples facto de se ver restringido pelos imperativos do suspense e da acção. Se na sua ficção Amis testou todo o tipo de águas, tendo perdido o pé em terrenos onde a História força o juízo a penetrar em zonas pantanosas e ambientes dominados pela névoa onde é difícil manter a estrutura de um enredo, nos seus ensaios e críticas foi onde conseguiu provar a mordaz precisão dos seus juízos, sendo cáustico e impiedoso, tornando-se uma influência assumida por tantos escritores das gerações mais novas, deixando claro que o verdadeiro fulgor deve abdicar de frívolos galanteios e da troca de favores, investindo antes numa prosa enérgica e devolvendo o rasgo cómico a um género hoje quase exclusivamente exercido por sujeitos que, para provar a sua superioridade, procuram aborrecer de morte o leitor com os seus áridos enunciados, anunciando longas travessias pelo deserto para enterrar desde logo a sua curiosidade. Era isto o que o tornava não só um leitor atento e erudito como imensamente divertido e sedutor, alguém capaz de reflectir de forma intrigante sobre uma variedade absurda de temas que pontuavam a actualidade… “Podes dizer o que bem te apetecer sobre ele, mas a verdade é que o presente é inescapável”. E sendo um intrépido satirista, tinha uma noção da verdadeira complexidade do riso, não se ficando por esse resíduo regressivo e apalermado que precisa do efeito de um auditório para atingir uma simultaneidade, em que o riso se torna um reflexo imitativo. “O que é que faz rir os seres humanos?”, questiona num ensaio a propósito da obra-prima de Nabokov. “Não é apenas o júbilo ou a ironia. A ideia de que o riso de algum modo tende a banir a seriedade é um equívoco tipicamente assumido por aqueles com um pobre sentido de humor – e, sobretudo, por essa multidão ainda maior dos que têm dificuldade em rir, esses cuja glândula do humor atrofiada ou preguiçosa. Os seres humanos riem para expressar alívio, exasperação, estoicismo, histeria, embaraço, aversão e crueldade. Lolita é talvez o romance mais hilariante da nossa língua porque permite ao riso toda a sua complexidade e alcance.”

Noutro dos seus textos de crítica, Amis conclui que, em termos evolutivos, o homem tornou-se um embaraço a partir do momento em que o seu cérebro cresceu mais do que a sua alma. E depois cita um personagem que nos diz que nesta época de grandes cérebros, tudo o que possa vir a ser alcançado pela técnica humana o será em breve, pelo que só nos resta aguentarmo-nos à bronca. O mundo pós-moderno, diz-nos Amis, tem a tendência para engrandecer o sujeito ao ponto de o tornar insuportável. Na crítica a Mao II, de Don DeLillo, defende que estamos a viver um presente intensificado pela sensação de uma transição e um sufocante enredo de crises sucessivas, uma sensação de vertigem proporcionada pela perspectiva de algo que chega ao fim. E cita DeLillo: “Quando o antigo Deus abandona o mundo, o que acontece a toda a fé que ficou por aí ociosa, sem um alvo certo?” E prossegue: “Não é que as pessoas vão agora acreditar noutra coisa qualquer, mas antes que vão passar a acreditar em tudo”. “Quando o antigo Deus nos deixa, eles começam a prestar culto a moscas e às tampas de garrafas.” E é este o encanto desta forma de leitura que se faz de atalhos e fragmentos sublinhados, ilações que se sustêm à margem da intriga romanesca, como resumos para gazeteiros. Não são meros guias para os mais comprometidos exploradores dos grandes romances do nosso tempo, mas também destilações espantosas para aqueles que não têm tantas noites para se deixar ir na torrente dessas obras desmesuradas. Para que nem tudo esteja perdido, fica esta proximidade em segunda-mão, este brilho que se reflecte entre quartos, e que permite ainda apreender certas noções terríveis, iluminações com aquela força reveladora das grandes fantasias blasfemas que radiografam a nossa época de forma devastadora.

Veja-se como Amis nos serve de bandeja o perfil de uma fotógrafa cheia de entusiasmo que, se antes captava a imagem de delinquentes, entretanto, se virou para os escritores (seja de que tipo for, qualquer um serve). Amis diz-nos que o trabalho da sua vida se tornou algo como uma “contagem de espécies”, um censo pictórico dessa estirpe. “Não estou interessada em fotografia”, confessa a uma amiga: “Aquilo que me interessa são os escritores”. Ao que a outra, mostrando sensibilidade, sugere: “Então porque é que não ficas em casa e lês?” E é aqui que Amis intervém para vincar que hoje todos sabemos que este contacto em segunda-mão já não é proximidade suficiente. Ou antes, terceira-mão… Porque o evento ou a pessoa é um contacto em primeira-mão. Ver o escritor na televisão é segunda-mão, ao passo que ler sobre ele na imprensa é já terceira-mão. E, no entanto, com este desejo de proximidade o que se vai perdendo é a distância e o tempo essenciais à leitura, e essa vantagem que Amis considera ser decisiva no percurso de cada leitor: “qualquer pessoa que saiba ler terá alcançado aquele nível em que passou a cultivar o hábito de ler a sua própria vida”. No fundo, a existência é a verdadeira tarefa de qualquer um de nós, e a leitura é apenas um dos instrumentos privilegiados da atenção no que toca a conseguir deter e pesar certas partes de modo a construir uma perspectiva sobre o todo.