As regras são conhecidas e, apesar de ainda não se saber se as novas alterações de restrição ao tabaco serão aprovadas no Parlamento, o cerco aperta-se aos fumadores. A ideia do Governo é que a partir de outubro passe a ser proibido fumar à porta de restaurantes, cafés e esplanadas com cobertura e em todo o perímetro de escolas, universidades ou estabelecimentos de saúde. Ao mesmo tempo, os cigarros aquecidos e eletrónicos serão equiparados aos tradicionais. Já em 2025 será restringida a venda direta de tabaco, incluindo em máquinas e postos de abastecimento de combustível. Moral da história, a partir dessa altura, só será vendido apenas em tabacarias, aeroportos e gares de comboios e autocarros.
As novas medidas apanharam os responsáveis do setor de surpresa e levantaram muitas dúvidas, nomeadamente a proibição do fumo nas esplanadas que estejam cobertas ou delimitadas por paredes ou outro tipo de estruturas, fixas ou amovíveis. E foi no problema das esplanadas amovíveis que se colocaram as questões ao Governo. Ao i, o Ministério da Saúde diz que esta será clarificada no plano técnico. “O que está em causa é saber se limitam, ou não, de forma significativa a circulação de ar”, salienta.
Mas se a ideia do Executivo é acabar com o consumo, para muitos agentes económicos as novas medidas poderão ser desastrosas e apontam o dedo ao Governo, já que o imposto sobre o tabaco (IT) é um dos que mais contribui para rechear todos os meses os cofres do Estado. De acordo com os últimos dados da Direção-Geral do Orçamento (DGO), só o imposto sobre o tabaco permitiu arrecadar 279,5 milhões de euros no primeiro trimestre. Um aumento face aos 278 milhões registados em igual período do ano passado. Ao todo, o Estado arrecadou, entre janeiro e março, 7169,4 milhões, com o IT a ocupar o terceiro lugar do pódio, sendo apenas ultrapassado pelo IVA (5212,3 milhões) e pelo Imposto do Selo (487,9 milhões).
Uma questão que é “desvalorizada” pelo Governo. “A proposta visa proteger a saúde dos portugueses, em especial dos que são expostos ao fumo passivo, e minimizar o risco de as crianças e jovens iniciarem o consumo de tabaco. Os ganhos de qualidade de vida e proteção da saúde são objetivos que suplantam quaisquer perdas de receita fiscal para o Estado. Adicionalmente existe a médio e longo prazo uma efetiva poupança de custos para o sistema de saúde”, refere ao nosso jornal fonte do Ministério da Saúde.
Ao i, João César das Neves admite que este imposto “é há séculos uma importante receita do Estado”, mas também reconhece que “os esforços de combate ao tabagismo têm há muito prejudicado essa receita”, admitindo que “estas novas medidas voltarão a fazê-lo”. Ainda assim, lembra que “relativamente ao tabaco existe em todo o mundo uma atitude dirigista, preferindo retirar liberdades aos fumadores em vez de os punir fiscalmente”.
Opinião diferente tem Miguel Simões, diretor-geral de Portugal e Andorra da Imperial Brands, ao referir que de ano para ano, o Orçamento do Estado penaliza cada vez mais os fumadores e 2023 não foi exceção. E a agravar ainda mais está o facto de as novas medidas virem a prejudicar as atividades que vivem deste negócio, especialmente a quem se dedica quase em exclusivo às máquinas de vending, que estão maioritariamente em bares e restaurantes. De acordo com o responsável, existem em Portugal cerca de 50 mil máquinas de venda, cujos distribuidores fizeram investimentos na ordem dos 80 a 90 milhões de euros. “Se as medidas avançarem tal como foram apresentadas estamos a limitar em grande parte a atividade económica destes operadores, porque as máquinas de vending ao dia de hoje fazem cerca de 40% do negócio do tabaco em Portugal”, revela ao nosso jornal.
E lembra ainda que não só o consumo não vai acabar como as vendas nestes pontos de venda serão transferidas para outros, nomeadamente as tabacarias, assim como abrir portas para o comércio ilícito. “Onde é que isto vai levar? E já vimos isso no passado, ao dia de hoje temos cerca de 5 a 6% de contrabando a entrar no país no consumo de tabaco, com essas restrições o peso vai disparar”.
No início deste mês, no âmbito de um inquérito dirigido pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal, foram cumpridos cerca de três dezenas de mandados de busca, domiciliários e não domiciliários. As diligências decorreram nos distritos de Lisboa, Setúbal, Faro, Porto, Coimbra, Braga e na Região Autónoma da Madeira. Em causa estavam suspeitas de introdução em Portugal de elevadas quantidades de tabaco, com origem em Marrocos, sem o pagamento dos impostos devidos, estimando-se que o valor do imposto em falta é de cerca de sete milhões de euros.
Uma situação que, de acordo com Miguel Simões, poderá vir a agravar-se, principalmente no interior do país. “No centro urbano até podemos admitir que vai reduzir a atividade, porque as pessoas vão a um café, a um restaurante para comprar tabaco e até acabam por consumir outras coisas. Mas em zonas mais remotas, em pequenas vilas e aldeias não existe uma tabacaria. A venda do tabaco é feita através de um café. E nesse caso o que vão fazer?”, questiona, admitindo que o contrabando aí poderá ganhar maior terreno.
E dá como exemplo o que se passa em França. “Com todas as políticas antitabaco que está a levar a cabo cerca de 20% do consumo em França é proveniente de forma ilícita, porque o contrabando entra por Espanha, Bélgica, Luxemburgo devido a estas medidas limitativas de venda de tabaco”.
Também fonte oficial da Tabaqueira diz que “no que decorre da informação que é pública, há que considerar as potenciais consequências negativas decorrentes de medidas com um alcance bastante vasto nas dimensões económicas e sociais, ainda não quantificadas, e que podem criar um cenário propício ao comércio ilícito”. E lembra que a “proposta de Lei aprovada não tem em consideração e antecipa-se ao processo de revisão da diretiva europeia de produtos de tabaco e respetiva consulta pública, em curso, desencadeado pela Comissão Europeia, que procede à avaliação do quadro legislativo para o controlo do tabagismo – incluindo a regulamentação dos produtos, a publicidade, a promoção e o patrocínio, no contexto mais vasto das políticas associadas ao controlo do tabagismo”.
Perdas e custos nos postos de abastecimento Quem ficou de cabelos em pé com esta medida foram os postos de combustíveis devido à proibição de venda de tabaco, por entender que é um produto de venda complementar ao negócio dos postos de abastecimento de combustíveis. A Associação Nacional de Revendedores de Combustíveis (ANAREC), diz saber de antemão que “a comercialização do tabaco está associada indiretamente à maior fatia de vendas de uma loja de conveniência dos postos de abastecimento” e que esta proibição vai “afetar claramente a operacionalidade das lojas”, lembrando que a compra de tabaco surge associada a outros produtos “ou, até mesmo, ficar no espaço a consumir café, por exemplo”. E, por isso, defende que essas restrições levarão certamente a uma “baixa de frequência de clientes nas lojas, o que representará um rombo na faturação”.
Ao nosso jornal, a ANAREC frisa que reconhece a “importância fulcral da promoção da saúde e da proteção da população à exposição ao fumo ambiental do tabaco”, mas discorda “que o caminho se faça pela restrição dos pontos de venda de tabaco, nomeadamente no que nos diz respeito, nos postos de abastecimento de combustíveis”, acreditando que, “a medida não irá de forma nenhuma promover a diminuição do consumo”.
A associação dá ainda cartão vermelho ao Governo ao afirmar que “o setor tem sofrido tamanha ingerência e intervenção nos últimos anos”, acrescentando que não aceitam “que se estejam a desviar ou alterar fluxos de venda do tabaco, concentrando os mesmos apenas nalguns comercializadores. E acusam o Executivo de “favorecer e incrementar as receitas e as vendas de um escasso grupo de comercializadores, em detrimento e prejuízo de outros”, principalmente quando as gasolineiras são “altamente controladas por várias entidades, com obrigações de diversos níveis que acarretam custos elevados, que têm vindo a aumentar, nos últimos anos”. Em contrapartida, “as comissões e margens de comercialização têm-se mantido estáveis, o que leva a que se assista a uma perda de rentabilidade, nos últimos anos”.
Sobre o valor das perdas que esta medida pode trazer, a ANAREC diz que as vendas de tabaco movimentam “valores ainda muito significativos, e têm associadas outras vendas que, no caso dos postos de abastecimento e respetivas lojas de conveniência, assumem um peso significativo no volume de negócios das micro e pequenas empresas, que os exploram. Caso se desvie o tabaco e produtos associados, para outro estabelecimento, significa a perda de vendas diretas noutros produtos, por exemplo de pastelaria, cafetaria e outros”.
As contas da associação vão ainda mais longe ao referir que estes estabelecimentos “têm um horário de funcionamento muito alargado” e como a maioria está aberta 365 dias por ano, em que muitos casos, funcionam durante 24h/dia, isso também “implica custos fixos muito elevados”. E caso as restrições avancem, a associação já admite que alguns espaços deixem de ser rentáveis em alguns dias e horários, o que abre a porta a que sejam feitas reestruturações. “Poderá implicar alteração nos horários de funcionamento e até mesmo redução do quadro de pessoal, com despedimentos, por diminuição drástica do movimento comercial”.
E, tal como o diretor-geral de Portugal e Andorra da Imperial Brands, alerta que esta medida “poderá impulsionar o considerável aumento do mercado paralelo e além de não reduzir o consumo, irá originar perda de rentabilidade de impostos, para o Governo”.
Quanto à proibição do fumo em esplanadas – tendo em conta que também vários postos contam com espaços de restauração – a ANAREC diz apenas: “Não nos opomos a regras que limitem o consumo em determinados espaços. A nossa ‘luta’ é na limitação na venda do produto e não no consumo da mesma”.
A verdade é que a medida pode mesmo prejudicar a vida a muitos trabalhadores. Ao i, um empresário do setor chama a atenção para o facto de ter seis postos que envolvem 18 pessoas, sendo o tabaco o produto que mais contribui para que um posto se mantenha no limiar da rentabilidade e admite que caso a proposta de lei do Governo se mantenha equaciona despedir 2/3 dos funcionários e colocar os postos em funcionamento automático, “por considerar que deixa de haver condições para um funcionamento normal”.
Menos clientes? Pode não ser assim Daniel Serra, presidente da Pro.var – Associação Nacional de Restaurantes, diz que a associação está “inteiramente de acordo com o esforço do Governo no desincentivo ao consumo do tabaco”, estando assim “de acordo em relação à lei que proíbe o consumo nas esplanadas onde se fazem refeições. Aliás, é uma posição já antiga nossa, sempre considerámos que o consumo do tabaco, do fumo, nas esplanadas prejudica essa experiência gastronómica”. Uma opinião contrária à da secretária-geral da Associação da AHRESP (ver páginas 16 a 18).
Questionado pelo i se esta medida não poderá levar a menos clientes nos restaurantes, considera que não. E explica: “Estamos de acordo até com o próprio estudo que está na base de algumas destas decisões e que diz que não há um efeito negativo direto até porque o comércio adaptou-se. As pessoas vão para o exterior, afastam-se da esplanada e vão fumar. Há aqui uma certa aceitação”, defende, acrescentando que há vários estudos que indicam que quando o consumo do tabaco dentro dos restaurantes terminou, as pessoas também não deixaram de frequentar os locais. “Até pelo contrário, aumentou até a qualidade da experiência”.
O problema está, neste momento, em perceber como será feita a fiscalização. “Vai ser muito difícil e não estamos a ver como é que o Governo vai controlar o fumo à entrada dos estabelecimentos. Há situações bastante dúbias e naturalmente não são os empresários que vão fiscalizar”.
Mas apesar da associação estar alinhada com esta medida do Governo refere que estas alterações têm de ser feitas com “cabeça, tronco e membros e com alguma lógica”. Menos lógica tem a proibição de venda em alguns locais. “A maior dificuldade tem mais a ver com os outros negócios que até estão integrados, como cafetarias, pastelarias” e acredita que “naturalmente esses irão ter uma expectativa de perda bastante elevada”. É que nem se trata apenas pela venda do tabaco que, segundo o presidente da Pro.var “não tem um significado assim tão grande em termos de retorno” mas muito pela venda associada. “É muito normal as pessoas irem comprar tabaco e tomam um café, compram uma revista, fazem um pequeno lanche. Ao não existir tabaco isto vai ser transferido para os grandes grupos que naturalmente têm toda essa capacidade instalada, também têm estabelecimentos dentro dos próprios locais e, portanto, o que vai haver é uma transferência de clientes”. E não tem dúvidas que esta transferência “é uma perda económica para muitas micro empresas pelo país”.
O responsável fala ainda numa outra questão: “Vai haver uma pressão muito grande sobre estes estabelecimentos que em alguns locais mais remotos, no fundo, acabam por ser pequenos espaços de conveniência e não existindo vai dar azo a que muitas vezes haja um incumprimento da lei. Tem que haver algum bom senso da parte de quem governa para criar leis que façam sentido”.
Para finalizar, Daniel Serra recorda que “as empresas existem para dar lucro, investem com objetivo de retorno, não se pode apagar de um momento para o outro, com uma vírgula ou uma linha de um projeto de lei ou de uma proposta de lei, dar um impacto muito negativo ao comércio. Tem de haver essa sensibilidade e até acho que vai haver até algum tipo de ajustes no sentido de criar maior equilíbrio na medida”, defende.
Em comunicado conjunto, estas duas associações dizem que o facto de se proibir a venda do tabaco “irá afetar os pequenos estabelecimentos que fazem da venda do tabaco um negócio âncora, uma receita que provém de um mix de oferta, na venda direta do tabaco e do negócio que gera ao potenciar a venda de outros produtos”. E deixam números: “Esta medida coloca assim em risco a viabilidade destes negócios, estimando-se que este forte impacto coloque em risco 20% dos 500 mil postos de trabalho, prevendo-se assim a extinção de 100 mil postos de trabalho”.