Democracia e SNS


O futuro do SNS está muito para além da mera afetação de recursos financeiros obrigando, antes de tudo, a uma reflexão profunda sobre o país que somos bem como sobre o país em que, inexoravelmente, nos iremos transformar, nas próximas décadas. 


A democracia portuguesa aproxima-se da celebração do seu 50º aniversário. Um percurso marcado por muitas dificuldades que não diminuem o sentido positivo da transformação global do país nos seus diferentes domínios. Portugal é hoje uma democracia estabilizada, do ponto de vista institucional, aberta e integrada no mundo livre e democrático. Em termos globais, nas últimas décadas, o país evoluiu muito nos indicadores de saúde em resultado da melhoria das condições de vida e dos resultados em saúde. O reconhecimento dos direitos sociais alcançou uma dimensão política incontornável recentrando as políticas públicas na dignidade do indivíduo e na valorização da condição humana. A saúde foi um dos setores liderantes nesse processo de transformação. Em 1974 a despesa pública afeta à saúde era inferior a 3% do PIB não dispondo o país de uma rede pública organizada e integrada de cuidados de saúde. Os efeitos conjugados dos determinantes sociais, em saúde, e a ausência de um sistema de cobertura geral e de acesso universal faziam do nosso país um dos piores em termos de desempenho dos indicadores de saúde. O exemplo mais paradigmático desta evolução está na taxa de mortalidade infantil, um dos indicadores mais sensíveis, a qual passou de 37.0 por cada 1000 nascimentos, em 1974, para 2.1, em 2021.

A criação, em 1979, do Serviço Nacional de Saúde (SNS) através da Lei 56/79 da Assembleia da República, representou um marco histórico na redefinição das políticas públicas. Neste contexto importa salientar o contributo histórico de António Arnaut o qual, num exercício misto de audácia, visão e coragem política consagrou o papel do Estado na concretização das políticas promotoras do acesso a cuidados de saúde de qualidade, em tempo adequado e sem discriminação social e económica. Ao longo das últimas décadas foi sendo possível acrescentar anos à vida os quais são hoje bem evidentes pelos ganhos em saúde em termos de mortes evitadas, anos de vida ganhos e anos de vida ganhos ajustados por morbilidade (DALY). Hoje o país está profundamente marcado por uma transição demográfica que o coloca como o segundo mais envelhecido do conjunto dos países que integram a União Europeia. O padrão das respostas necessárias modificou-se de forma muito relevante. Apesar dos progressos registados na esperança média de vida à nascença que nos colocam a par dos melhores nos países da OCDE persiste ainda uma débil condição de qualidade vida nos últimos anos de vida dos portugueses. A título de exemplo bastará referir que, atualmente, a esperança média de anos livres de doença, em Portugal, situada nos 59 anos, compara com um valor de 70 anos na Suécia. Teremos ganho a batalha da quantidade dos anos de vida, mas estamos ainda muito longe de vencer a batalha da qualidade dos anos vividos. Temos pela frente grandes desafios para cumprir nas áreas da saúde e da proteção social. Estas são áreas cada vez mais interdependentes entre si tendo em conta a transformação do perfil social e demográfico de Portugal. Os próximos anos trarão mais anos à vida, mas também uma maior carga de doença a par de um incremento da dependência e da quebra de autonomia sobretudo nos segmentos populacionais mais vulneráveis.

O futuro passa, inevitavelmente, pela integração das políticas públicas multissetoriais e pela respetiva continuidade no plano intergeracional. A salvaguarda da coesão social e da sustentabilidade global dos sistemas de proteção social e da saúde requer compromissos políticos alargados. O futuro do SNS está muito para além da mera afetação de recursos financeiros obrigando, antes de tudo, a uma reflexão profunda sobre o país que somos bem como sobre o país em que, inexoravelmente, nos iremos transformar, nas próximas décadas. A questão estratégica fundamental passa pela capacidade de construção de um adequado alinhamento entre as necessidades e as respostas tendo presente a mudança social, demográfica e epidemiológica em curso. Essa será a responsabilidade que a todos incumbe na transição de legado para as próximas gerações.

 

Professor ENSP NOVA

Democracia e SNS


O futuro do SNS está muito para além da mera afetação de recursos financeiros obrigando, antes de tudo, a uma reflexão profunda sobre o país que somos bem como sobre o país em que, inexoravelmente, nos iremos transformar, nas próximas décadas. 


A democracia portuguesa aproxima-se da celebração do seu 50º aniversário. Um percurso marcado por muitas dificuldades que não diminuem o sentido positivo da transformação global do país nos seus diferentes domínios. Portugal é hoje uma democracia estabilizada, do ponto de vista institucional, aberta e integrada no mundo livre e democrático. Em termos globais, nas últimas décadas, o país evoluiu muito nos indicadores de saúde em resultado da melhoria das condições de vida e dos resultados em saúde. O reconhecimento dos direitos sociais alcançou uma dimensão política incontornável recentrando as políticas públicas na dignidade do indivíduo e na valorização da condição humana. A saúde foi um dos setores liderantes nesse processo de transformação. Em 1974 a despesa pública afeta à saúde era inferior a 3% do PIB não dispondo o país de uma rede pública organizada e integrada de cuidados de saúde. Os efeitos conjugados dos determinantes sociais, em saúde, e a ausência de um sistema de cobertura geral e de acesso universal faziam do nosso país um dos piores em termos de desempenho dos indicadores de saúde. O exemplo mais paradigmático desta evolução está na taxa de mortalidade infantil, um dos indicadores mais sensíveis, a qual passou de 37.0 por cada 1000 nascimentos, em 1974, para 2.1, em 2021.

A criação, em 1979, do Serviço Nacional de Saúde (SNS) através da Lei 56/79 da Assembleia da República, representou um marco histórico na redefinição das políticas públicas. Neste contexto importa salientar o contributo histórico de António Arnaut o qual, num exercício misto de audácia, visão e coragem política consagrou o papel do Estado na concretização das políticas promotoras do acesso a cuidados de saúde de qualidade, em tempo adequado e sem discriminação social e económica. Ao longo das últimas décadas foi sendo possível acrescentar anos à vida os quais são hoje bem evidentes pelos ganhos em saúde em termos de mortes evitadas, anos de vida ganhos e anos de vida ganhos ajustados por morbilidade (DALY). Hoje o país está profundamente marcado por uma transição demográfica que o coloca como o segundo mais envelhecido do conjunto dos países que integram a União Europeia. O padrão das respostas necessárias modificou-se de forma muito relevante. Apesar dos progressos registados na esperança média de vida à nascença que nos colocam a par dos melhores nos países da OCDE persiste ainda uma débil condição de qualidade vida nos últimos anos de vida dos portugueses. A título de exemplo bastará referir que, atualmente, a esperança média de anos livres de doença, em Portugal, situada nos 59 anos, compara com um valor de 70 anos na Suécia. Teremos ganho a batalha da quantidade dos anos de vida, mas estamos ainda muito longe de vencer a batalha da qualidade dos anos vividos. Temos pela frente grandes desafios para cumprir nas áreas da saúde e da proteção social. Estas são áreas cada vez mais interdependentes entre si tendo em conta a transformação do perfil social e demográfico de Portugal. Os próximos anos trarão mais anos à vida, mas também uma maior carga de doença a par de um incremento da dependência e da quebra de autonomia sobretudo nos segmentos populacionais mais vulneráveis.

O futuro passa, inevitavelmente, pela integração das políticas públicas multissetoriais e pela respetiva continuidade no plano intergeracional. A salvaguarda da coesão social e da sustentabilidade global dos sistemas de proteção social e da saúde requer compromissos políticos alargados. O futuro do SNS está muito para além da mera afetação de recursos financeiros obrigando, antes de tudo, a uma reflexão profunda sobre o país que somos bem como sobre o país em que, inexoravelmente, nos iremos transformar, nas próximas décadas. A questão estratégica fundamental passa pela capacidade de construção de um adequado alinhamento entre as necessidades e as respostas tendo presente a mudança social, demográfica e epidemiológica em curso. Essa será a responsabilidade que a todos incumbe na transição de legado para as próximas gerações.

 

Professor ENSP NOVA