“O seu comportamento inadequado é conhecido na boca miúda”, diz investigadora sobre Boaventura

“O seu comportamento inadequado é conhecido na boca miúda”, diz investigadora sobre Boaventura


“Costumo dizer que toda académica carrega consigo uma lista de nomes perigosos a se evitar. Eu já fui assediada por professores e boa parte das minhas colegas de profissão poderia dizer o mesmo”, desabafa a investigadora brasileira Gabriela Caruso.


"Deste caso em específico soube pelo compartilhamento da publicação nas redes sociais, que já identificavam Boaventura como o perpetrador dos casos descritos no artigo. No entanto, desde 2018 ouço relatos de colegas portugueses sobre os comportamentos abusivos por parte de Boaventura, tanto de assédio sexual quanto de assédio moral. As informações circulam nos bastidores, é algo sabido entre os pares, histórias conhecidas no circuito académico. Nesse sentido, não é nenhuma novidade", começa por explicar, em declarações ao Nascer do SOL, a investigadora brasileira Gabriela Caruso, doutora em Sociologia com ênfase em Estudos de Gênero pelo IESP-UERJ, que partilhou, na rede social Twitter, a seguinte publicação: "Nos circuitos feministas internacionais já há muito circulavam histórias a respeito do Boaventura. Isso é um recado para académicos assediadores encastelados em seus departamentos e protegidos pela sua reputação: nós sabemos quem vocês são e o que vocês fazem. E nós vamos caçá-los".

"De Bruno Sena Martins não tive informações, eu nunca havia ouvido falar deste. Seu nome não tem a circulação internacional que tem o nome de Boaventura. Boaventura é afinal o 'superstar', um nome famoso atrelado a uma corrente teórica muito popular internacionalmente no momento, seu trabalho é lido e citado nos quatro cantos do globo. Ele que acumula mais poder académico e prestígio intelectual", avança a investigadora que desempenhou funções no Programa Diversidade e Inclusão da FGV Direito Rio, autodenomina-se como "militante feminista com produção sobre prevenção do assédio sexual na universidade" e atualmente desenvolve atividade numa instituição no tema da Educação.

"Qualquer um pode cometer assédio sexual, mas é mais fácil escapar impunemente quando se tem poder institucional e é reconhecido pelos seus pares. Outras pessoas próximas a esses poderosos podem usufruir dessas dinâmicas de poder, estando protegidos embaixo de suas asas e absorvendo para si um pouco do prestígio que emana do redor dos 'superstars'. Essas figuras poderosas e os que orbitam ao seu redor são temidas pois tem grande prestígio intelectual e poder de ingerência nos seus respectivos campos académicos", constata Gabriela Caruso, garantindo que nunca ouviu falar de nenhuma das autoras do artigo que colocou Boaventura Sousa Santos e Bruno Sena Martins – entretanto, afastados do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra – debaixo de fogo.

Recorde-se que em causa está um capítulo do livro ‘Sexual Misconduct in Academia’ (’Má Conduta Sexual na Academia’, em português), lançado em março, no Reino Unido, pela prestigiada editora académica Routledge. "Meus temas de pesquisa são a circulação de conhecimento científico, as dinâmicas universitárias de poder e a construção de prestígio das figuras intelectuais. Como pesquisadora nesse tema, o artigo é uma ótima análise sobre as dinâmicas de poder departamentais e como elas permitem uma série de comportamentos condenáveis, ao mesmo tempo que tornam praticamente impossível uma reação institucional ou individual a esses comportamentos, justamente pois essas figuram acumulam muito poder e fornecem muito prestígio aos departamentos ao qual estão vinculados. Nesse sentido, o artigo, partindo de experiências reais e pontuais, elabora um arcabouço conceitual e traça uma análise dessas dinâmicas que é extremamente útil para pensar outros contextos", salienta acerca de 'As paredes falaram quando mais ninguém podia'.

"Os casos citados ilustram o objetivo do artigo, qual seja, o de analisar como as estruturas universitárias e departamentais académicas facilitam esse tipo de ação predatória, expõem os estudantes a uma série de vulnerabilidades e blindam os agressores de potenciais consequências. As autoras, portanto, não fizeram uma denúncia nominal, mas descreveram e analisaram a construção de um fenómeno recorrente: o assédio sexual nas universidades", adianta Gabriela Caruso, acrescentando que "nesse sentido, a identificação de Boaventura como suspeito é um ganho (não sem custos), mas o verdadeiro ganho da publicação está em delinear as dinâmicas que permitem a continuidade e a tolerância do assédio sexual das universidades".

"Se somos contra o assédio sexual, é preciso fazer pesquisa que investigue os mecanismos pelo qual ele se produz e se sustenta, para que possamos agir de maneira eficaz na prevenção e remediação do fenómeno. A verdadeira contribuição das autoras é esta, graças a seus relatos corajosos hoje temos mais ferramentas para entender o funcionamento dessa dinâmica e podemos investir melhor em providências que buscam impedir que ela se sustente", constata, parecendo-lhe "importante ressaltar que o artigo não é uma denúncia, pois não cita nominalmente as pessoas que cometeram assédio e nem a instituição onde os casos se deram". Isto é, "o que se pode questionar é que as autoras não tomaram todos os cuidados necessários para garantir que os fatos narrados não tornassem possíveis a identificação dos indivíduos envolvidos". "Eu pessoalmente não acho condenável, acho um ato corajoso, pois agora estão elas a serem questionadas de sua ética, enquanto o suspeito conta com o benefício da dúvida", sublinha.

"Mesmo que a Universidade de Coimbra tivesse recebido denúncias e tomado todas as providências necessárias, o artigo ainda teria utilidade, uma vez que ele avança na análise das dinâmicas de assédio e silenciamentos nas universidades. Apesar disso é importante refletir que, quando as instituições não promovem espaços seguros de denúncia, investigação e responsabilização, as vítimas podem se sentir tentadas a recorrer a meios não institucionais para relatar as violências que sofreram e procurar alguma forma de amparo ou justiça", observa. "No entanto, tenho certeza de que se a Universidade de Coimbra tivesse uma boa e eficaz política de prevenção e ação em relação ao assédio sexual, o artigo traria análises e conclusões bem diferentes", indica.

"Não conheço mais relatos a respeito dessas dinâmicas nas instituições de ensino portuguesas, mas casos como esses são comuns em todo mundo, onde quer que haja muito poder concentrado em figuras de prestígio e pouca ou nenhuma responsabilização sobre seus atos. A dinâmica descrita pelas autoras é mais comum do que parece e não é específica da Universidade de Coimbra ou da cena portuguesa, é corrente", lamenta, explicando que, apesar de não estar a ser contactada por vítimas de Boaventura Sousa Santos, já recebeu relatos de colegas "que conheciam outros casos em que Boaventura teria feito avanços sexuais em alunas brasileiras". "O seu comportamento inadequado é conhecido na boca miúda. Apesar disso, cada vez que um caso desse vem à tona, uma série de mulheres revisita os assédios que viveu em sua carreira académica e nos últimos dias conversei com muitas colegas sobre as situações que já vivemos e presenciámos neste campo profissional. A maioria viveu cenas muito semelhantes as descritas pelas autoras. Suscita-nos ódio e nojo", declara com convicção.

"Assédios recorrentes por parte de professores, mulheres sem apoio algum sendo desencorajadas a registar uma denúncia. Convivemos diariamente com nossos assediadores, eles estão nas redes sociais, dando palestras e presidindo bancas de doutoramento, somos obrigadas a sermos colegas de profissão dos nossos algozes. Suas dinâmicas de assédio são conhecidas por todas, há toda uma rede de sussurros que alerta uma a outra sobre quem se deve evitar e como se proteger. Muitas aguardam ansiosamente o dia que uma mulher corajosa irá lançar-se ao fogo da denúncia, esperando levar junto consigo seu assediador", diz, deixando claro que Catarina Laranjeiro, Lieselotte Viaene e Mya Nadya Tom – que disseram ao Nascer do SOL que optaram por não conceder quaisquer declarações formais ou informais – "relatam, infelizmente, cenas extremamente comuns que caracterizam assédio sexual". 

"O problema é que normalmente este tipo de assédio não deixa evidências, não tem materialidade, acontece nas entrelinhas, muitas vezes numa zona cinzenta que deixa as próprias vítimas em dúvida. Então, torna-se a palavra da vítima o único indício do acontecimento. O assédio se aproveita justamente das brechas entre o profissional e as relações íntimas", alerta a investigadora. "O assédio mediante o uso da violência é muito mais evidente, mas um toque diferente e mais demorado no corpo de outra pessoa pode ser extremamente constrangedor, mas isso torna difícil comprovar a materialidade do assédio. É possível ser assediada só com um olhar, qualquer mulher sabe do que estou falando, mas é possível provar esse assédio?", questiona. "É uma dificuldade recorrente no tema do assédio sexual".

"Costumo dizer que toda académica carrega consigo uma lista de nomes perigosos a se evitar. Eu já fui assediada por professores e boa parte das minhas colegas de profissão poderia dizer o mesmo. Temos no Brasil o caso de um professor de universidade renomada que foi denunciado na internet. A partir desse primeiro relato, uma série de mulheres se apresentaram como vítimas do mesmo sujeito, que agia de maneira tipicamente predatória", afirma, realçando que "foi instaurado um processo administrativo na universidade, as vítimas tiveram medo e a maioria não prestou depoimento". "Não acompanhei o desenrolar administrativo do processo, mas passados anos o professor segue dando aula, segue indo a congressos e segue presidindo bancas. É frustrante que um comportamento denunciado por várias mulheres não tenha gerado nenhum prejuízo a ele, que segue sua carreira livremente".

"É cedo para dizer se esta é uma nova fase do movimento #MeToo, me parece que as académicas estão em posições muito mais vulneráveis e, portanto, menos dispostas a se expor. Também não temos boas expectativas de que nossas denúncias serão ouvidas e nossos algozes responsabilizados. Prestar uma denúncia é extremamente perigoso para uma mulher, que fica exposta ao escrutínio público, que é exposta à revitimização por parte das instituições e que é exposta à possibilidade de retaliação por parte do seu agressor. Muitas vezes simplesmente não compensa. Espero que mais mulheres corajosas venham a frente com mais denúncias, mas sei que elas sofrerão o inferno se o fizerem", admite, refletindo acerca daquilo que deve ser feito nas instituições de ensino superior para que casos como estes não se repitam.

"O próprio artigo das autoras sugere algumas pistas importantes para lidar com esses casos. A concentração de poder nas mãos de académicos 'superstar' facilita a ascensão e permanência de indivíduos com condutas inadequadas que nunca são responsabilizados ou punidos, uma vez que a presença de um 'superstar' garante publicações, citações, financiamento e matrículas para as instituições que os abrigam", frisa. "Também devemos nos atentar para o poder que esses indivíduos têm sobre a carreira dos seus subordinados hierárquicos, e como isso inibe que ações mais contundentes sejam tomadas por parte desses mesmos subordinados, uma vez que estão suscetíveis às influências que seus hierárquicos têm no seu campo profissional".

"Para além de reformas na gestão académica, departamental e universitária para diminuir a incidências das dinâmicas descritas, é imprescindível a elaboração de uma forte política universitária de criação de protocolos de prevenção, denúncia e ação em relação ao assédio sexual. É preciso treino de funcionários docentes e administrativos, a elaboração de material informativo específico para alunos e professores sobre condutas inadequadas, é preciso um corpo responsável pelo acolhimento e processamento desses casos que não esteja constrangido pelo prestígio académico dos perpetradores", apela aos decisores governamentais e, mais particularmente, das instituições de Ensino Superior. "É necessário a existência de um protocolo de atendimento que tenha como principal objetivo proteger a vítima, e não a instituição. Assim, no mínimo, um protocolo deve garantir que a vítima não precise repetir a diversas autoridades seu relato, garantir seu anonimato, garantir uma investigação imparcial, garantir que a vítima não sofra represálias pela sua denúncia e garantir que os assediadores sejam responsabilizados. Este é o mínimo", conclui.