Os católicos mais fervorosos devem lembrar-se de Edgar Clara quando este lia a missa que dava na televisão ao domingo. Antes disso, foi diretor do jornal católico A Voz da Verdade, tendo depois desempenhado funções de porta-voz do Patriarcado de Lisboa, onde se empenhou na vinda a Portugal do Papa Bento XVI, «o mais moderno», nas suas palavras. Trabalhou com o padre Jardim Gonçalves, irmão do banqueiro, e é atualmente responsável por nove igrejas nas zonas históricas de Lisboa. Aos 47 anos, leva 23 de vida dedicada ao seu ministério.
Nos últimos textos publicados no Nascer do SOL tem sido profundamente crítico em relação à Comissão Independente e mesmo em relação aos bispos. E até pede a demissão de D. José Ornelas. Porquê?
A primeira coisa que quero dizer é que não me sinto menos pecador que os padres pedófilos e não me sinto mais esperto do que os bispos. Isto é importante, pois parece que a partir de determinada altura andamos todos a competir uns com os outros dentro da Igreja. Não é este o meu espírito! Nós precisamos de iluminar este relatório, e precisamos de o entender. Acho que a coisa mais importante é poder iluminar, com a verdade, os dados que nos são apresentados no relatório, e o trabalho que foi pedido. Acho que, do ponto de vista dos bispos, daqueles que foram os responsáveis pela elaboração deste relatório, têm um mérito e esse mérito ninguém lhes pode tirar que é pedir a uma comissão externa para olhar para a Igreja e fazer uma radiografia do nosso estado. Isso é um mérito que eles têm. Qual é o demérito que aqueles que mandaram fazer este relatório têm? Primeiro, mandaram fazer uma radiografia sobre mim e sobre nós, sobre a minha casa, sobre a minha família e não me explicaram.
Como assim? Isso é uma metáfora?
Nós, padres, não fomos tidos nem achados. Os bispos mandaram fazer um estudo sobre os abusos sexuais na Igreja e, naturalmente, os principais visados seriam os padres. A mim ninguém me perguntou o que achava deste estudo, se achava bem, se achava bem estas pessoas ou não, se dava autorização para o fazer… E, por isso, acho que há aqui um problema, um problema prévio: a informação para dentro da Igreja foi zero. E, depois, o grande demérito foi o de não terem preparado aquilo que vem a seguir. Esse parece-me que é o grande problema deste estudo. Penso que a ingenuidade dos bispos que estiveram à frente deste estudo e que pediram este estudo foi ao ponto de pensarem que esta Comissão Independente poderia ser uma espécie de assessoria para que pudéssemos mudar os procedimentos internos dentro da Igreja nesta matéria. Ora, quinze dias depois de terem entregue o álbum de fotografias a um bispo – quer dizer, o álbum é o Relatório Final – começaram os membros da própria Comissão a voltar-se contra os próprios bispos e a dizer que nós não tínhamos como prioridade as vítimas, mas a nossa própria imagem. Ora, isto é uma falácia. Primeiro, alguém que procura conservar a sua própria imagem não encomenda um estudo sobre problemas internos da Igreja e os deixa publicar na comunicação social de forma transparente. Isto é algo que devíamos ter claríssimo: nós não procuramos a própria imagem! Os bispos não procuraram defender a sua própria imagem, mas procuraram o bem das vítimas, ao fazer uma radiografia dos últimos 70 anos da Igreja. Isto gerou problemas graves, porque os bispos ficaram sem assessoria. As recomendações são genéricas, pouco concretas e algumas não realizáveis. Quanto a outras recomendações, nem a própria Comissão Independente parece acreditar nelas. Parece-me que os bispos não esperavam uma coisa destas. Encomendar um estudo destes, entregar uma lista de padres que estão no ativo suspeitos de terem cometido abusos sexuais de crianças e não esperar afastá-los do exercício público do seu ministério é ser ingénuo, porque, como é evidente, se há uma lista de padres sobre os quais recai uma suspeita destas, os bispos teriam de pensar que tinham que afastar os padres do exercício público do seu ministério.
Por que tinham de ser ouvidos?
Segundo aquilo que foi tornado público pela Comissão Independente, eles foram consultar os arquivos, que se chamam secretos e eu nem sequer sei o que seja um arquivo secreto da Igreja. Nunca tinha ouvido falar de arquivos secretos. Nós não temos propriamente arquivos secretos. Temos arquivos. Arquivos secretos da Igreja para poderem obter informações sobre os padres.
Os padres suspeitos.
Os padres. Ponto.
Quem não está suspeito não tem lá o nome. Ou tem?
Vamos ver, aquilo que foi dito – e perguntei várias vezes – foi que iam consultar os arquivos secretos da Igreja. O que está lá nos arquivos, o que foram consultar sobre nós? Nós não fazemos a mínima ideia, não fomos informados pelos bispos, não fomos informados pela Comissão Independente, não fomos informados por ninguém. Uma coisa que a Comissão Independente não esclarece e os bispos não esclarecem é: quais foram os documentos que foram consultados pela Comissão Independente? Quais foram os dados que foram fornecidos à Comissão Independente? Eu, como padre, tenho o direito de saber. Por exemplo, tenho o meu processo de ordenação que nunca o consultei, nem o posso consultar na minha vida. Quando foi organizada a minha ordenação, foi organizado um processo para pedir informações a uma série de pessoas sobre mim, quem são os meus pais, quem é a minha família, etc. Eles consultaram isto? Estiveram a ver os processos de todos os padres? O que eles estiveram a ver? Isto não é claro. Tínhamos que ser ouvidos apenas nisto, porque temos o direito de confidencialidade dos nossos processos. Tenho cartas ao longo de 23 anos que escrevi ao meu bispo que não sei se foram consultadas pelo Comissão Independente. Cartas que todos os anos escrevo ao meu bispo a dizer como é que estou, como me sinto, como está a minha saúde, como está a pastoral, se estou animado ou não. Às vezes o senhor bispo responde, outras vezes não. Vou mantendo uma relação com o meu bispo. Que documentos consultou a Comissão Independente?
Acha que a Comissão Independente não tinha o direito de consultar coisas que não têm a ver com queixas.
Não sei o que eles consultaram, portanto, não acho nada. Devíamos ter sido informados sobre quais são os documentos. E os documentos que foram consultados sobre processos aplicados quer a padres, quer a ex-padres deviam ter informado os visados que os seus processos estavam a ser consultados nas diferentes dioceses ou nos diferentes institutos de vida religiosa. Além disto, é necessário observar a legitimidade da publicação das informações constantes nesses mesmos processos consultados. Isto é qualquer coisa que me parece que ultrapassa tudo aquilo que é razoável num Estado de Direito. Quer dizer, há padres, há pessoas por trás daquelas histórias que são ali contadas. Nós conseguimos identificar os padres que ali estão. Isto é de uma gravidade que me parece que não cabe na cabeça de ninguém.
Por que é suposto não identificar? O objetivo é precisamente identificar as queixas que há sobre determinados padres. Ou não?
Quem deu autorização para que estes dados fossem publicados? Foram consultados arquivos nossos, temos que dar a autorização devida, penso eu. Depois, para se publicarem esses mesmos dados também tenho que dar autorização. Ora, dados dos procedimentos, cartas pessoais que foram enviadas para as dioceses no passado, que estão todas colocadas na parte da Comissão Histórica. Não sei como é que a Comissão Nacional de Proteção de Dados consegue permitir uma coisa destas, bem como uma coisa mais grave ainda que é terem publicado os testemunhos das vítimas. Não consigo imaginar o que seja as vítimas serem escutadas pela Comissão Independente e depois como é que esses testemunhos se podem colocar a nu, cá para fora. E a Comissão Nacional de Proteção de Dados não dizer nada.
E processou a Comissão Nacional de Proteção de Dados.
Pedi, há três semanas, um esclarecimento à Comissão Nacional de Proteção de Dados sobre se era possível terem feito isto, quer a Igreja, quer a Comissão Independente. Não me responderam. Então apresentei uma queixa.
Contra…?
Contra quem publicou estes dados.
Contra a Comissão Independente.
Contra quem deixou que isto tivesse acontecido até aqui. E é preciso apurar? Por exemplo, uma das coisas que me pergunto a mim próprio é isto, no futuro, quem vai ter acesso àquela base de dados? Como é que a Comissão Independente diz na página 450 que com a apresentação pública do presente relatório, a Comissão Independente dá por terminado o estudo que lhe foi solicitado pela Conferência Episcopal Portuguesa’, nenhuma razão subsistindo para que ela venha, neste ou noutro modelo, a prosseguir a sua atividade. E depois temos o Dr. Daniel Sampaio na televisão a dizer ‘nós ainda temos o nosso e-mail, ainda vamos receber denúncias. Ainda estamos, neste momento, a receber denúncias’. Vivemos num país onde há leis, onde há regras. E penso que precisamos de acautelar as próprias vítimas e acautelar que os padres que não fizeram nada tenham direito ao seu bom nome, tenham direito à sua privacidade, tenham direito ao seu dever de ser informados, porque é isso que acontece em qualquer outra instituição.
Não acha que está a proteger os padres pecadores?
Quem for ler tudo aquilo que já escrevi para trás, para mim, é muito claro. Os padres que cometeram delitos que sejam censuráveis pela lei civil ou pela lei canónica, devem abandonar o próprio exercício do seu ministério nestes termos. Não é minha intenção que possamos proteger os abusadores. É necessário é que o estudo seja claro naquilo que faz, que seja claro naquilo que diz, cumprindo as leis e cumprindo as regras do país onde estamos. E, para isso, não podemos colmatar uma injustiça que foi feita no passado pelos responsáveis da Igreja que foi não proteger crianças com outra injustiça agora. Colmatar uma injustiça com outra injustiça é estar, neste momento, a compactuar com uma coisa que não é boa para ninguém. Nós somos pessoas, demos a nossa vida por isto. Temos o direito de ser respeitados. E tal como as vítimas têm o direito de ser apoiadas porque foram abusadas por algumas das pessoas da Igreja.
Porque diz isso?
Neste momento, alguém que tenha sido abusado sexualmente no seio da Igreja Católica tem uma instituição, externa à igreja, que possa receber uma queixa, que possa ouvir a pessoa, que possa apoiá-la do ponto de vista psicológico e psiquiátrico, por exemplo, em Lisboa. E acredito que no resto do país aconteça o mesmo. Os padres de Lisboa pagaram e protocolaram com uma organização chamada Associação Portuguesa de Apoio à Vítima para assegurar uma resposta rápida e eficaz. Se estamos a falar de vítimas, é uma associação credível, credenciada, com técnicos, com gente especializada nesta dimensão. São os padres da Diocese de Lisboa que estão neste momento a pagar e ajudar a pagar esse próprio protocolo que estabelecemos.
Mas não é com esta Comissão, estamos a falar de coisas diferentes.
Esta comissão acabou. Apesar de ter o e-mail ativo, esta comissão acabou. Dizer que Igreja não está do lado das vítimas, como disse o Dr. Daniel Sampaio, é uma falácia. Porque não sei onde é que ele estaria do lado das vítimas quando decidiu publicar os testemunhos confidenciais das vítimas no Relatório Final. Obteve autorização dos próprios? Posso dizer que ‘a Igreja não esteve do lado das vítimas’ no passado quando não agiu com firmeza diante destes problemas dos abusos sexuais de menores.
É muito crítico em relação a Pedro Strecht, porque diz que ele pertencia à Comissão da Proteção de Menores da Diocese de Lisboa e depois fez parte da Comissão Independente.
Não sou nada crítico em relação a Pedro Strecht. Reconheço-lhe toda a competência. Porém, sou muito crítico à maneira como nós montamos as nossas narrativas. Por que é que esta é uma Comissão Independente? O Dr. Pedro Strecht esteve desde a primeira hora na Comissão Diocesana de Lisboa para receber as queixas que havia.
Antes desta Comissão existir.
Antes desta Comissão existir. O Dr. Pedro Strecht saiu da Comissão de Lisboa para formar ele próprio uma Comissão Independente. Quer dizer, por que é independente agora e não o era antes? Por que é que agora as pessoas decidem dar-lhe credibilidade e antes não lhe davam credibilidade? Por exemplo, foi dito também por alguns membros que as comissões diocesanas não atingiram os seus objetivos ou não atingem os seus objetivos. O que nós estamos a dizer quando dizemos isto? Estamos a dizer que as comissões diocesanas, deste que existem, receberam 26 vítimas presenciais. E estamos a dizer que a Comissão Independente recebeu, presencialmente, 34 vítimas. Por que dizemos que uma é mais credível do que a outra, se a diferença entre uma e outra tem uma margem tão pequena?
As comissões diocesanas tomaram alguma posição em relação a essas 26 queixas?
Ordenaram todas as diligências que foram necessárias. O caso que conheço melhor é o do Patriarcado de Lisboa. Sempre que chegou uma queixa à Comissão Diocesana de Proteção de Menores foram feitas as recomendações ao senhor Patriarca, que agiu em conformidade com as recomendações da própria Comissão Diocesana.
E decidiam o quê? Afastamento?
O afastamento temporário para se investigar.
E entregavam ao Ministério Público?
Entregaram ao Ministério Público e procederam ao afastamento temporário para que as pessoas pudessem ser investigadas. E, uma vez concluído o processo, ou o Ministério Público diz que há matéria ou diz que não há matéria criminal. Também ocorre ao mesmo tempo a investigação interna da Igreja que diz se há matéria ou não. Nuns casos houve matéria, noutros casos não houve matéria. Podemos estar aqui a dizer que a Comissão Independente teve uns 512 testemunhos validados. São 512 testemunhos validados com uma base de dados incógnita, sem nomes. Mas tiveram 34 pessoas presenciais, tal como as Comissões Diocesanas tiveram 26 pessoas presenciais. Parece que as Comissões Diocesanas foram uma coisa colocada de parte, mas que têm a sua importância e penso que o terão no futuro.
As comissões diocesanas agora continuam mas sem padres.
Sim, continuam sem padres. Acho que o Papa criou estas comissões com a sua razão. Acho que as Comissões Diocesanas ajudam a que as vítimas possam ter um espaço entre si e o próprio bispo, que seja ali uma parte mediadora onde se possa abrir o coração. É evidente que, se me pergunta o que eu preferia?, preferia que as pessoas pudessem ter serenidade, tranquilidade e paz para chegar à Polícia e apresentar uma queixa. Acho que isto seria a coisa mais normal. É evidente que compreendo que uma pessoa que foi abusada sexualmente em criança não tem ânimo e muitas vezes capacidade para se poder expor e, acima de tudo, para enfrentar um tribunal, um processo, uma prova, peritagens e tudo mais. Temos que pensar, também, de outra maneira. Não é apenas duro para as vítimas, é duro para os padres.
É duro para os padres no sentido em que podem estar a ser acusados injustamente?
É duro para os padres, porque nós também vamos ter que responder, vamos ter que provar a nossa inocência, e muito mais…
Fala como se todos estivessem na lista…
Mas como é que eu sei que não estou na lista?
Em Lisboa eram…
24.
Quantos já tinham morrido?
Oito. Dois estão doentes, três não têm nomeação, quatro foram afastados cautelarmente conforme as indicações do Santo Padre.
Mas já sabem quem são.
Mas quem é que sabe? Ninguém sabe quem são.
Há um caso que se sabe.
Há dois casos, já. Mas, quer dizer, há uma suspeição sobre todos.
Por que pediu a demissão de D. José Ornelas?
Não peço a demissão. O que digo é que aquilo que vem no seguimento disto tudo…
Está aqui: ‘Se há um mês eu não tinha dúvidas de que os padres da lista de pedófilos no ativo, que afinal não era, teriam de ser afastados, hoje não tenho a menor dúvida de que quem mandou fazer este relatório se devia demitir’. Diz ou não?
Não falo de D. José Ornelas. Há um Conselho permanente…
Fala de D. José Ornelas. ‘E aqueles que não previram a armadilha que nos estava preparada’.
São vários. Esta Conferência Episcopal, como está, esta direção da Comissão Episcopal, como está, para o futuro vai ser muito difícil ter credibilidade para poder falar, para poder apaziguar. Sabemos que em abril vai haver eleições. Acho que ninguém quer ser candidato.
Supostamente não há candidatos, as pessoas votam em quem querem.
Claro.
E D. José Ornelas disse ao SOL que ainda não decidiu se aceita ou não aceita.
Acho que faz bem em não aceitar por tudo. Porque precisamos de ter confiança e acho que neste momento…
A opinião pública acha que o D. José Ornelas esteve mal por não ter ido muito mais além.
Os bispos foram mais além, D. José Ornelas foi mais além do que aquilo que seria, na minha opinião, razoável.
Defendeu que deviam afastar todos os padres.
Não defendi. Disse que era uma relação causa efeito. Não pensar que é uma lista de padres suspeitos de pedofilia e que a seguir não os afastem, é ser ingénuo. Não defendi que os afastassem. Quando digo que foram mais além do que aquilo que é razoável é, por exemplo… O afastamento de um padre, quer dizer, ir mais além do que aquilo que são as recomendações normais e afastar um padre sobre o qual recai uma denúncia anónima, eu acho que estou a ir muito mais além do que aquilo que seria razoável num Estado de Direito.
Fala que acha um escândalo que a Igreja tenha pago 200 mil euros a esta comissão.
Sim, acho que é escandaloso se o trabalho que eles fizeram não for um trabalho de assessoria e for um trabalho para no final dizerem ‘eles não têm em conta as vítimas’. Acho que foi dinheiro deitado ao lixo. Se o dinheiro que gastámos não foi para podermos purificar a Igreja e para adotarmos procedimentos claros e objetivos dentro da Igreja, mas foi apenas para que a Comissão Independente ou membros da Comissão Independente viessem atacar a Igreja e agora nos deixassem descalços, acho que talvez não tenhamos gasto o dinheiro da melhor forma.
Gostava de saber quem ganhou o quê desses 200 mil euros?
Acho que a apresentação de contas não seria má. O que acho é que é dinheiro deitado ao lixo se nós nos centrarmos apenas e só na necessidade de afastar o padre A, o padre B, o padre C a partir de queixas anónimas e não nos centrarmos no que é realmente importante: que há pessoas que estão a sofrer há 25, 30 anos, que não falaram do seu sofrimento e agora decidiram falar pela primeira vez. E a primeira coisa que a Comissão que esteve a tem a dizer é que os bispos sabem que eles sabem que os bispos sabem muita coisa, ponho realmente dúvidas. Porque se hoje a Comissão sabe que os bispos sabem que eles sabem muita coisa, então devem dizer quem é que são os bispos que sabem. Existe uma coisa chamada Nunciatura Apostólica e devem apresentar uma queixa junto da Nunciatura Apostólica sobre os bispos que encobriram.
E no Ministério Público?
Isso não sei. Não conheço a lei para falar sobre casos de encobrimento… não sei. Desconheço completamente a lei em relação a isso. Mas sei os procedimentos dentro da Igreja Católica. Existe a Nunciatura Apostólica e se o Dr. Daniel Sampaio tem alguma informação da qual nós não dispomos, deve apresentá-la à Nunciatura e não vir diante da opinião pública levantar a suspeita. Com esta afirmação de que os bispos sabem que eles sabem o que eles sabem levanta-se a suspeição sobre todo um corpo de uma Conferência Episcopal que não é apenas ingénua, mas é estar a dizer são todos encobridores. Se sabem alguma coisa, devem apresentar a queixa devida.
Como acha que teria sido correto este processo? As diretrizes do Papa pedem que se investiguem todas as denúncias anónimas.
Não há nenhuma diretriz que fale de uma Comissão Independente. Diz que a Igreja tem que ter cada vez mais, e o Papa voltou a reforçar esta semana, canais e meios que permitam às pessoas, que se quiserem aproximar da Igreja, apresentar queixa e falar ou receber ajuda da própria Igreja esse contacto deve ser claro. Quando digo ajuda, significa receber da própria Igreja a capacidade de superar as feridas por nós incutidas. Os bispos espanhóis orientaram as coisas duma forma muito diferente. Os bispos da Polónia estão agora a começar a fazer as coisas. Ainda não sabemos quais são os moldes.
Mas ainda não disse qual o modelo correto para detetar os abusos sexuais na Igreja.
Não sei dizer qual é o modelo correto. Há um modelo correto que é respeitar as pessoas. Primeiro que tudo, o modelo correto é não expor a vítima. Ouvir-se a si constantemente na televisão, ler-se constantemente nos jornais, com as denúncias que apresentaram na Comissão Independente não se pode considerar respeito pelas vítimas.
Mas por que é contra uma comissão independente?
Não sou contra nem a favor. Desde que se cumpram as leis mínimas do respeito pelas pessoas que acho que aqui não estão cumpridas.
Porquê?
Porque não respeitam as vítimas que entregaram os seus depoimentos, com o dever de reserva, e não são respeitados os padres, mesmo os padres abusadores que merecem a sua confidencialidade. Acho que aqui teríamos de ter uma forma respeitadora de uns e de outros. Tem de haver clareza! Não sou propriamente uma amiba. Tenho um cérebro. A Comissão Independente, para além de dizer os relatos dos abusos que alguns membros da Igreja inflingiram enquanto crianças não pode esquecer que existem milhares de padres em Portugal que nada fizeram e que merecem o seu bom nome. Os padres – todos – e também muitos leigos, gostaríamos de saber quais foram os critérios de validação dos testemunhos apresentados à Comissão Independente. Gostaria de saber como é que alguém pode, por exemplo, verificar traumas a partir de testemunhos escritos. Como é que alguém, que não recebe uma pessoa, que não fala com ela, que não a olha nos olhos, que não ouve o seu testemunho ao vivo, como é que se pode verificar a veracidade do seu testemunho?
É entrar nas diretrizes do Papa que devem ser aceites os testemunhos anónimos.
Vamos ver. Podemos pegar e dizer assim: Alguns destes testemunhos anónimos têm uma correspondência com os arquivos históricos. E então há uma correspondência com os arquivos históricos.
Mas dizendo coincidência com arquivos históricos, podemos dizer duas coisas: ou são denúncias que chegaram ou é o perfil de cada padre.
Algumas vítimas apresentaram a sua queixa, depois a comissão deve ter ido ver nas diferentes dioceses ou nos diferentes institutos, quem são as pessoas: quem é este padre, se houve alguma queixa, como resolveram a situação e tudo mais. Isso tudo está esparramado no relatório! Há um relato extremamente claro e objetivo, que acho que já entra dentro de uma violação do direito de confidencialidade dos dados que a Igreja forneceu à própria Comissão Independente!
Dá a sensação que acha que os abusos são uma coisa menor. Parece que há a necessidade de proteger o abusador.
Não. O que diz na página 454 é o seguinte: rever a imposição de sigilo de confissão em matéria de crimes sexuais contra crianças por membros da Igreja Católica. Se a Comissão Independente recomenda aos padres levantarem o segredo de confissão, no caso de se tratar de abuso de menores, para ser coerente com a recomendação que nos faz, a Comissão Independente deveria rever a sua posição acerca do sigilo sobre os dados que tem e entregá-los à Polícia Judiciária, conforme lhes foi pedido na semana passada. A PJ pede-lhes que lhes entreguem os dados. E eles dizem que não, porque estão debaixo do sigilo. Portanto, a comissão diz que nós temos de levantar o sigilo da confissão, mas a Comissão Independente não quer levantar o sigilo. Então, eles acreditam mesmo nas recomendações que fizeram à Igreja ou não? Se dizem que estou aqui para proteger os padres, eles estão lá para proteger psiquiatras, pedopsiquiatras, psicólogos e cenógrafos e tudo mais.
Há aqui qualquer coisa que não está correto! Acho que, se, de facto, esta Comissão tem dados objetivos, deve entregá-los, e não apenas dizer que houve uma queixa, uma denúncia anónima sobre o padre X ou Y. Tem de entregar os dados! Tal como não pode dizer que os bispos sabem muita coisa sem dizer o que eles sabem. Também tem que dizer o que é que eles sabem sobre nós, sobre os padres abusadores, sobre os padres que não abusaram, sobre os padres que têm processos. Não posso sair desta entrevista, não posso sair daquela porta e pensar que amanhã, depois de alguém ler a minha entrevista, alguém pode apresentar uma denúncia anónima e que eu seja afastado no dia seguinte. O tempo da PIDE já acabou há cinquenta anos. Nós vamos fazer cinquenta anos de liberdade, cinquenta anos do 25 de Abril!
Já chegou a escrever que estamos perante uma Inquisição ao contrário.
Sim, podemos dizer que é uma Inquisição! No entanto, na Inquisição dava-se o direito de as pessoas serem inquiridas e de conhecer a sua acusação. Os processos estão na Torre do Tombo, as pessoas sabiam do que eram acusadas e tinham direito a um advogado! Neste momento estamos a afastar padres que não sabem do que é que estão a ser acusados, a não ser os que cometeram atos de pedofilia algures por aí, nos anos 90 ou nos anos 80. Isto não é próprio de um Estado de Direito. Quando escrevi uma carta aberta ao Presidente na Assembleia da República foi porque estava a olhar para a frente. Estava a ver que isto iria recair em cima de todos nós, porque não se vai saber quem estaria na lista dos padres. Para se preservar o sigilo daqueles 100 padres, a culpa vai recair sobre todos os outros. Isto é, não há culpas coletivas aqui. Nós não podemos confundir uma árvore com a floresta toda.
Escreveu há uns tempos que teve vontade de bater em alguém que lhe chamou pedófilo. Isso é cada vez mais frequente?
A mim aconteceu-me três vezes, mas são as vezes suficientes para me passar da boneca. Ninguém pode viver numa sociedade em que haja suspeição sobre uma determinada classe – seria a mesma coisa que hoje, perante as narrativas que estamos a escutar, dizer que ao estarmos a defender os afegãos não estamos a defender as vítimas. Quando dizemos que nem todos os afegãos são como este que esfaqueou duas profissionais na Fundação Aga Khan, ou quando dizemos que estava descompensado ou que teve um surto psicótico, o que estamos a dizer? Estamos a dizer que não podemos confundir uma árvore com a floresta. O resto dos afegãos não tem culpa daquela árvore estar doente, não é? O mesmo se passa connosco. Pergunta-me se três vezes que é chamado de pedófilo é demais?, eu digo: Sim! É demais.