Streaming. Por onde passa o futuro do entretenimento português?

Streaming. Por onde passa o futuro do entretenimento português?


A Netflix chegou a Portugal em 2015, abrindo o caminho ao streaming. Mais de sete anos depois, que efeitos é que esta mudança causou? Atores e cineastas tomam o pulso ao fenómeno, avaliam como as plataformas mudaram as suas carreiras e explicam o que pode ainda ser feito.


Longe vão os tempos em que os Irmãos Lumière começaram a fazer as suas primeiras projeções públicas ou em que Georges Méliès “levou” um foguete à Lua. Longe vai também a evolução do cinema, que se adaptou aos mais diversos suportes tecnológicos de uma forma que jamais estes pioneiros conseguiriam conceber.

Hoje, meios tradicionais, como o cinema e a televisão, coexistem com plataformas modernas, como o streaming. E discute-se que formato é mais prestigiante – uma longa-metragem ou uma série de televisão – ou qual vai ser a próxima plataforma de streaming a lançar o conteúdo visto por mais pessoas.

No meio destas controvérsias, é fácil esquecermo-nos de quem se encontra no olho do furacão: uma imensidão de seres humanos criativos e ansiosos para trabalhar.

Entre atores, realizadores, argumentistas, produtores, responsáveis de guarda-roupa, pela iluminação do estúdio, como se posicionam os profissionais nesta batalha pelo futuro do audiovisual? O i falou com diversos profissionais do setor, que pesaram quais as principais diferenças entre os setores e as suas vantagens.

“Sem dúvida que os recursos disponibilizados para fazer Glória (2021), são pouco comuns no meio audiovisual em Portugal, e tive o privilégio de experienciar isso”, explica Miguel Nunes, protagonista da primeira série original portuguesa feita sob a chancela da Netflix.

“Foi um conjunto de circunstâncias que se alinharam e que me permitiram criar um personagem durante um tempo justo, cerca de seis meses”, começa por explicar. “Para mim foi excecional, mas não diria que me permitiu ser mais criativo do que fui até então”. Um aspeto que, acrescenta, depende muito da relação que estabelece com a realização e “sobretudo” com os seus colegas atores.

“Isso foi-me proporcionado [em Glória] de uma forma muito feliz porque os encontros tanto com o Tiago Guedes, o realizador, quanto com os atores foram de uma enorme qualidade humana e artística”, recorda.

Para o realizador de Glória, que além deste trabalho tem no seu currículo os filmes Coisa Ruim (2005) e Herdade (2019) e a série protagonizada por Bruno Nogueira e Gonçalo Waddington, Odisseia (2013), na HBO Max, existe uma diferença grande na abordagem entre cinema e televisão.

“As plataformas de streaming não deixam de ser televisão, ou melhor, serão sempre ‘consumidas’ em ecrãs mais pequenos e sem a imersão da sala de cinema. Eu tento ter isso em conta quando estou a trabalhar”, revela.

Tiago Guedes refere que, apesar das características distintas de cada meio, nunca se sentiu “criativamente limitado” em nenhum dos meios, referindo que o maior entrave costumam ser os “aspetos financeiros, que acabam por, de certa forma, limitar algumas opções, mas que muitas vezes também obrigam a descobrir outros tipos de soluções”.

“Ao fazer o Glória tive à disposição meios que não são comuns nas nossas produções mas também tivemos que ter em conta que estávamos a produzir pela primeira vez em Portugal para uma das plataformas com maior número de conteúdos do mundo, e que iríamos estar lado a lado com produções de investimentos incomparavelmente superiores”, afirma. “O que quero dizer com isto é que não são apenas as condições que aumentam, mas a responsabilidade também”, conclui.

Uma porta que se abre, quem vai entrar? Tiago Guedes e Miguel Nunes não os únicos portugueses a trabalhar com o gigante do streaming. Ao i, Manuel Pureza, realizador responsável por Até Que a Vida Nos Separe (2021) ou Pôr do Sol (2021), duas séries que também chegaram a esta plataforma, recorda que a série sobre a família Paixão até foi a primeira a entrar neste catálogo internacional.

“Queríamos fazer uma segunda temporada para Até que a Vida Nos Separe, mas a RTP não estava interessada”, conta-nos. “Depois de recebermos o não, enviei emails para vários possíveis interessados. Atirei o barro à parede em relação à Netflix Internacional e recebi uma resposta imediata. Caímos nas graças de quem decidia”.

Apesar de reconhecer a “bênção” que é estrear em 197 países diferentes e quão estranho é receber mensagens elogiosas de um país tão distante quanto a Coreia do Sul, Pureza afirma que o reconhecimento não tem comparação com o que obteve com Pôr do Sol, algo impulsionado por uma plataforma que nos é bem próxima… a RTP Play.

“O feedback que tivemos de Pôr do Sol na RTP Play foi algo mesmo avassalador e que nunca imaginei possível. A segunda temporada teve cerca de 1 milhão e 600 mil visualizações. É algo que compete diretamente e de uma maneira nova e atual com a televisão linear. Isto é algo que deve ser reconhecido e apreciado”, elogia.

“Se a Netflix foi algo que mudou muito a minha vida, não. Fico contente por ter sido o primeiro a exportar lá para fora, mas não foi aquilo que mudou o meu crédito no mercado”, reconhece, descrevendo como, após uma viagem de avião, existia um grupo de fãs à sua espera para tirar fotos com ele.

Se Pôr do Sol foi um sucesso esmagador em Portugal, ocupando o seu espaço na cultura pop portuguesa, com concertos na “vida real” da banda fictícia deste produto de ficção, os Jesus Quisto, e a ser mencionada em intervenções políticas – com a coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, a mencionar a abastada família Bourbon de Linhaça num discurso –, há quem tenha vingado em produções internacionais.

Pêpê Rapazote em Narcos e Nuno Lopes em White Lines são dois dos casos de sucesso de atores que tiveram oportunidade de trabalhar em produções internacionais, originais da Netflix, juntando-se-lhes Alba Batista em Warrior Nun, Albano Jerónimo em The One e Vikings (ainda que esta não seja do gigante de streaming) e Lídia Franco em 6 Underground. Depois de ter protagonizado Glória, Miguel Nunes passou a estar agenciado também no Brasil e em Inglaterra.

“Comecei a trabalhar no estrangeiro em 2005, por opção, porque o mercado em Portugal é muito ténue e parco de oportunidades”, explica Pêpê Rapazote, que interpretou o papel de Chepe Santacruz Londoño, um dos reis da cocaína do cartel de Cali. “Sem querer entrar em políticas, é mais fácil fazer um percurso lá fora. Existem barreiras, no meu caso, nem são burocráticas, mas talvez mais artísticas e intelectuais”, ressalva.

“Foram-se abrindo portas com oportunidades um pouco devagar, em Espanha, Itália, França e Estados Unidos”, descreve, recordando que a primeira grande oportunidade foi aparecer em Shameless, onde contracenou com o icónico William H. Macy. “Daí em diante as coisas começaram a andar melhor”, recorda.

Após as audições, Pêpê Rapazote conseguiu o papel na mediática série, onde se destacou pelo seu carisma no centro de um elenco repleto de confiantes e conceituados atores, como Pedro Pascal ou Damián Alcázar.

“Sendo uma série tão mediática abriram-se mais portas, comecei a ser mais reconhecido e tive mais oportunidades sobretudo no mercado latino”, conta-nos. “Quem vê Narcos não diz que o ator fala inglês. Ninguém nos Estados Unidos me chama para papéis americanos em função do Narcos. Para todos os efeitos, sou um ator latino que fala espanhol, às vezes nem há consciência que pode haver mais para além disso”.

Em White Lines, Nuno Lopes encarna Duarte “Boxer” Silva, que, tal como ele na vida real, também é um DJ (apesar do personagem trabalhar em Ibiza). “O streaming permitiu que muitos atores internacionais surgissem em séries de língua inglesa. O meu personagem de White Lines é escrito por um escritor espanhol, por isso, era preciso alguém que soubesse falar em espanhol e em inglês”, explica o ator. “Há uns anos seria feito por um ator inglês que soubesse falar minimamente espanhol, mas, agora, já pode ser feito por um português”, reconhece, apresentando ainda o exemplo de Vikings e Game of Thrones, que conta com atores de todo o mundo e onde “conta muito pouco qual é a sua nacionalidade”.

Também numa interessante iniciativa lançada pela Netflix e pela Academia Portuguesa de Cinema (APC), foram disponibilizados na plataforma cinco longas-metragens no âmbito de uma promoção dos trabalhos de profissionais mulheres do cinema nacional.

Nesta seleção estão incluídos A Metamorfose dos Pássaros (2020), de Catarina Vasconcelos; Soa (2020), de Raquel Castro; Mar (2018), de Margarida Gil; Simon Chama (2020), de Marta Sousa Ribeiro; e Desterro (2019), de Maria Clara Escobar, que estarão disponíveis na plataforma de streaming durante um ano.

As cineastas responsáveis por estes filmes foram distinguidas com um prémio monetário de 15 mil euros.

 

Uma dádiva portuguesa

Apesar de todos reconheceram as vantagens trazidas pelos gigantes de streaming, existe um sentimento em comum e que é transversal praticamente a todas as conversas: o apreço que os criativos têm pela RTP Play e pelo trabalho desenvolvido por esta plataforma.

“A maneira como a Netflix se reúne contigo é mesmo de sedução”, admite Manuel Pureza. “A plataforma está idealizada para uma interação muito rápida com o utilizador porque, segundo o algoritmo, demoramos apenas um segundo a decidir se queremos ou não ver a série. Eles mostram-nos inúmeras formas como vão apresentar a nossa série, para os mais diferentes públicos, e ficamos completamente seduzido com a ideia de que existe alguém no México que está a trabalhar na tua criação para esta poder ser comunicada da melhor maneira. Isso é espetacular”, confessa. Ainda assim, reconhece que prefere a forma mais “próxima” como a equipa da RTP colabora com os criativos.

“A maneira como a RTP Play publicou o nosso conteúdo nas redes, como patrocinou o autocarro dos Jesus Quisto, como fez acontecer esse evento e o videoclip de apoio à seleção nacional… É uma abordagem diferente, há uma aposta muito maior na proximidade, que nos senta à mesa e nos pergunta: ‘Como é que VOCÊS acham, que isto deve ser feito?’. Foi um trabalho de equipa mesmo interessante que eu acho que fez toda a diferença”.

Mas esta não é a única valia da plataforma, que serve como um arquivo para o canal com mais de 80 anos de história. Ao ajudar a recuperar diversos conteúdos e a tirar-lhes o “pó”, permite que uma audiência mais jovem possa ter acesso a uma vasta seleção de documentários, séries ou filmes nacionais e internacionais.

“A RTP Play faz um serviço extraordinário, é uma das coisas que mais me orgulho daquilo que é feito em Portugal, não só a recuperar conteúdo de arquivo como no material atual”, elogia Nuno Lopes.

“Temos um serviço de streaming gratuito e de que usufruímos pouco por burrice, tem conteúdo extraordinário e é um trabalho muito bom. Não há muitos serviços gratuitos com tantos produtos de qualidade como a RTP Play”, acrescenta.

 

Investimento em Portugal e em português

A chegada destas plataformas a Portugal pode trazer muita coisa boa, e não só em termos de reconhecimento. Os entrevistados referem as novas oportunidades de trabalhos para os mais variados profissionais do setor, e, para realizadores como Tiago Guedes, há uma hipótese de alguns dos seus trabalhos, como o filme de terror Coisa Ruim, de 2005, ser apresentado a uma nova audiência. Mas, como estes deixam claro, existe ainda muito trabalho a fazer.

“Acho que estas plataformas serão sempre aliadas dos criadores portugueses a partir do momento em que invistam neles, ao produzirem e ao divulgarem os seus trabalhos”, refere o realizador português.

No entanto, a questão é que, apesar destes trabalhos aparecerem com o selo e com o “patrocínio”, por exemplo, da Netflix, não se deixem enganar: isto não quer dizer que Glória esteja em pé de igualdade com Narcos, Stranger Things ou House of Cards, existindo uma diferença brutal no orçamento de cada um dos projetos.

 “A Netflix está a apostar em Portugal, o que é positivo porque dá trabalho a profissionais e contribui para o aumento de ficção que se está a fazer em Portugal, mas qual é o investimento que se está a fazer no nosso país?”, questiona Nuno Lopes. “O investimento de uma série de streaming em Portugal é bastante inferior aos orçamentos que vejo quando faço coisas lá fora. Apesar de trazer mais trabalho não se pense que se está a competir com os valores de outras séries da Netflix internacional, nem em relação aos tempos de rodagem, nem o que se paga aos atores nem aos técnicos”, acrescenta.

O ator que também protagonizou o filme São Jorge propõe que, em Portugal, se passe a fazer menos ficção, o que permitiria canalizar um maior orçamento para cada projeto. “Se vamos dar um salto qualitativo e lá para fora temos que apostar em menos ficção, mas com mais dinheiro”.

Outro objetivo que Nuno Lopes considera ser essencial é a aposta em novos objetos artísticos e que fujam à norma dos conteúdos que proliferam nestes serviços de streaming – a maior parte das séries atuais seguem a estrutura do “whodunit”, um enredo que começa com um crime e a trama passa por deslindar este mistério.

“Às vezes, quando trabalhamos para uma plataforma, tentamos ir de encontro ao que está a ser produzido nesta plataforma. Uma das maneiras em como podemos apostar para mudar o paradigma é apostar em séries que fujam a esta norma que está a ficar cada vez mais normalizada”, propóe Nuno Lopes.

 

Uma bolha prestes a rebentar?

Apesar do poder do streaming e de estarmos a viver um momento em que este se está a tornar um dos principais métodos para consumir cultura e de lazer, as principais plataformas enfrentam graves problemas.

No ano passado, a Netflix testemunhou um drástico número de cancelamentos e está a registar graves prejuízos. O novo sistema restritivo de partilha de contas irá impedir que os utilizadores dividam o seu perfil com outras pessoas. Já a HBO Max teve de retirar do seu catálogo diversos conteúdos relevantes, como a série original Westworld, e ambas foram obrigadas a cancelar diversas séries que tinham novas temporadas no horizonte.

No caso da Disney+, apesar do sucesso de séries da Marvel, como Wandavision ou Loki, e da Guerra das Estrelas, Mandalorian ou a mais recente Andor, em novembro do ano passado, a Walt Disney Company foi obrigada a voltar a contratar Bob Iger, que foi CEO da empresa entre 2005 e 2022, de forma a “incentivar” a confiança dos seus investidores.

Entretanto, o resto da competição, como a Apple TV ou a mais recente a chegar a Portugal, SkyShowtime, apesar dos vários milhões investidos, por exemplo, em O Senhor dos Anéis: Os Anéis do Poder, da Amazon Prime, considerada a série mais cara de sempre em termos do orçamento por episódio, continuam sem conseguir produzir uma série épica que seja capaz de rivalizar com uma Guerra dos Tronos ou com Stranger Things.

Todos estes dados levantaram preocupações entre especialistas, que afirmam que a “bolha do streaming está prestes a rebentar”. Esta é uma realidade que também preocupa os realizadores e atores portugueses?

Mais ou menos. Apesar de reconhecerem que podem existir menos oportunidades, os profissionais do setor têm outras questões que os apoquentam.

“Preocupa-me mais a irresponsabilidade e gestão danosa que o Ministério da Cultura tem demonstrado tanto na gestão dos programas de apoio às artes quanto na aprovação de um Estatuto do Trabalhador da Cultura que não serve, nem responde aos problemas e condições que precisamos”, denuncia Miguel Nunes.

“O que mais me preocupa na realidade é a produção em massa de conteúdos, réplicas e sucedâneos sem originalidade”, revela Tiago Guedes. “Espero sinceramente que não se deixe de apoiar e investir na singularidade das vozes diferentes que andam por cá e por esse mundo fora”, continua.

“Trata-se de uma indústria que estará sempre interligada e dependente do talento de artistas de todas as áreas. Por mais que se tente burocratizar os processos, todos aqueles que investem e procuram retorno económico precisarão sempre dos artistas para atingir os seus objetivos, e de os apoiar naquilo que eles sabem fazer melhor, que é arriscar, saltar para o desconhecido e descobrir novos caminhos”, afirma.

Nuno Lopes reforça este sentimento, afirmando que o que realmente teme é que se observe uma perda espaço para, por exemplo, o cinema de autor, condenando a “teoria” de que um conteúdo precise de ter sucesso para ser validado.

“Preocupa-me que seja quase obrigatório que um conteúdo tenha de ter sucesso nos seus primeiros vinte dias ou pela quantidade de pessoas que estão a ver a série de seguida. Há conteúdos que demoram a serem processados e só passado algum tempo é que acabam por se tornar séries de culto”, reflete. Teme ainda que se esteja “a perder um lado artístico e original em detrimento de uma obsessão pelo consumo imediato dos espetadores e do seu consumo consecutivo”.

“As plataformas de streaming quando surgiram eram plataformas alternativas à televisão de consumo, mas estão a tornar-se elas próprias uma televisão de consumo”, crítica.

Pêpê Rapazote acredita que será “possível” continuar a viver mesmo depois destas plataformas desaparecerem, podendo existir um retrocesso ao que estamos (ou estávamos) habituados”.

“Antes de existirem plataformas de streaming, existiam grandes canais de televisão pagos, como a HBO e a Showtime, e, se um dia as plataformas terminarem, voltamos para esses mercados”, pondera, desvalorizando a “gravidade” desta situação.

“Se acontecer alguma perda no mercado, não é que fiquemos muito diferentes daquilo que éramos há 20 anos. A vida continua, é o que era antes. É como imaginar um mundo se os telemóveis deixassem de existir. Voltámos a viver como viviam antes destes luxos. Não é propriamente o tempo dos homens das cavernas, embora possa parecer”, conclui.