“Grande Ciência” para enormes esperanças


 Nos projetos científicos mais avançados (ou no apoio a esses projetos), a chamada “big science” (ou “Grande Ciência/Ciência Grande”), os caminhos que desbravam, ou a tecnologia desenvolvida, promovem-se novas tecnologias ou inovações disruptivas, o equivalente à Fórmula 1 para a indústria automóvel.


Apesar da altura do ano, não irei tentar fazer um balanço do ano de 2022 em termos científicos, universitários ou políticos. Outros, com certeza mais sagazes e perspicazes, já elegeram as descobertas e as figuras do ano. O que me interessa aqui é tentar encontrar um padrão nas escolhas e aí tentar compreender um pouco melhor o que move os jornalistas, os cientistas e os políticos. 

As listas com as descobertas científicas do ano são, talvez, menos polémicas e um pouco mais diversas do que as listas com as figuras do ano. Este ano, como em muitos anteriores, encontramos muitos resultados das ciências físicas, incluindo-se aqui a astronomia e a física do espaço. 

Em 2022, a imagem do buraco negro no centro da nossa galáxia do Event Horizon Telescope, o sucesso estrondoso do Telescópio James Webb da NASA, Agência Espacial Europeia (ESA) e Agência Espacial Canadiana, a colisão da missão Double Asteroid Redirection Test (DART) da NASA com o asteróide Dimorphos, ou os resultados da fusão nuclear com lasers do Lawrence Livermore National Laboratory dominam muitas das listas das descobertas. Claro que os avanços biomédicos ou alguns progressos com as vacinas continuam presentes, mas, ano após ano, são os avanços da física que continuam a captar a imaginação de quem escreve nos media. Podemos argumentar que é na física que estão os grandes avanços, mas esta posição é difícil de defender. Há avanços científicos e tecnológicos que estão a ter um impacto tremendo no nosso dia-a-dia mas, que mesmo assim, não têm feito nem fazem parte das “descobertas do ano” (o caso óbvio que me recordo é a inteligência artificial).

As escolhas que aparecem nos media são, com certeza, motivadas pela capacidade de entusiasmarem ou interessarem os leitores: a física continua a capturar a imaginação da humanidade, hoje como há 500 anos – o desvendar dos segredos do Universo, perscrutar o Céu e observar mais longe, compreender as leis fundamentais ou dominar e usar essas leis para o benefício da Humanidade. Por outro lado, muitos dos mais ambiciosos projetos científicos e organizações focam-se nas ciências físicas, continuando a tradição iniciada com o projeto Manhattan da bomba atómica que, de facto, demonstrou a capacidade da ciência, através da concentração de talento, para resolver problemas científicos e tecnológicos de elevada complexidade e moldou a forma como a ciência moderna, e a física em particular, se desenvolveram e organizaram nos últimos 70 anos.

Muitas das grandes descobertas dos últimos anos na física são resultado de projetos de grande dimensão ou de instrumentos complexos, que se desenvolvem ao longo de muitos anos (em alguns casos, várias décadas), com grandes equipas e investimentos elevados. Obviamente, os governos e os filantropos de todo o mundo não fazem estes investimentos (exclusivamente) para inspirar os seus concidadãos com a resposta a questões fundamentais ou para assistir ao entusiasmo dos cientistas. Sabem, e bem, que nos projetos científicos mais avançados (ou no apoio a esses projetos), a chamada “big science” (ou “Grande Ciência/Ciência Grande”), os caminhos que desbravam, ou a tecnologia desenvolvida, promovem novas tecnologias ou inovações disruptivas, o equivalente à Fórmula 1 para a indústria automóvel. As próprias empresas envolvidas nestes projetos, por exemplo através de contratos de fornecimento, desenvolvem novas competências em resposta aos desafios na fronteira da tecnologia dos maiores projetos científicos. Os estudantes e os cientistas envolvidos são treinados com capacidades únicas e expostos a técnicas/tecnologias que acabam por se tornar importantes para a indústria em geral. As comunidades científicas menos amadurecidas interagem e ligam-se a comunidades e a grupos científicos mais fortes e mais desenvolvidos. 

Portugal participa em alguns destes grandes projetos científicos (com esforços institucionais muito assimétricos), por exemplo associados ao CERN, ESA, ITER, ou SKA [1], mas seria importante reforçar este envolvimento, alinhar os estímulos locais, e promover a liderança nacional nesses projetos (que passa sempre pelos difíceis compromissos plurianuais de longo prazo a que, como país, somos particularmente relutantes). Alguns dos grandes países europeus, como por exemplo a Itália, alinham o seu roteiro de infraestruturas científicas com o roteiro europeu de infraestruturas, fomentando assim uma maior integração do esforço local com os projetos internacionais. A generalidade dos países alinha também o reforço (e o apoio) à “Big Science” com a existência localmente de uma comunidade científica com reconhecimento internacional e uma indústria com ligações ou potencial para contribuir para os projetos, apoiada por estudos/planeamento/visões de longo prazo que alinham os planos e expectativas de todos os potenciais intervenientes locais, nomeadamente cientistas e indústria. Em Portugal falta também uma maior articulação de esforços ou um apoio diferenciado quando essa conjugação existe. 

Muitos dos que serão os grandes avanços que serão listados nos balanços dos próximos anos continuarão a estar associados à “Big Science” – por exemplo, no próximo ano teremos a primeira luz no Observatório Vera Rubin e o reinício do “upgrade” do laser de raios-X (LCLS II) do Stanford Linear Accelerator. Esta tendência irá provavelmente acentuar-se e alastrar-se a outras áreas: muitos dos mais estimulantes desafios científicos (e tecnológicos) envolvem comunidades internacionais muito vastas, que cada vez mais se associam. Estes desafios precisam de investimentos avultados longe do alcance individual de um país, mas também porque é nestes projetos que se desenvolvem e testam muitas das tecnologias do futuro e.g. computação quântica ou os supercomputadores do futuro. O desenvolvimento da Europa (e também de Portugal) passará também pela nossa capacidade de aproveitar a capacidade da “Big Science” para nos inspirar e, principalmente, para reforçar as enormes esperanças na ciência para a melhoria económica e social da nossa sociedade.

[1] O CERN é o Centre Européen pour la Recherche Nucléaire, o maior laboratório de física de partículas do mundo; a ESA é a Agência Espacial Europeia; o ITER é a maior experiência de fusão nuclear do mundo, em Cadarache, França; o SKA  é o Square Kilometre Array, um rádio telescópio internacional em construção na Austrália e na África do Sul.

Professor Catedrático do Departamento de Física, Instituto Superior Técnico
web: http://web.tecnico.ulisboa.pt/luis.silva/
twitter: @luis_os

“Grande Ciência” para enormes esperanças


 Nos projetos científicos mais avançados (ou no apoio a esses projetos), a chamada “big science” (ou “Grande Ciência/Ciência Grande”), os caminhos que desbravam, ou a tecnologia desenvolvida, promovem-se novas tecnologias ou inovações disruptivas, o equivalente à Fórmula 1 para a indústria automóvel.


Apesar da altura do ano, não irei tentar fazer um balanço do ano de 2022 em termos científicos, universitários ou políticos. Outros, com certeza mais sagazes e perspicazes, já elegeram as descobertas e as figuras do ano. O que me interessa aqui é tentar encontrar um padrão nas escolhas e aí tentar compreender um pouco melhor o que move os jornalistas, os cientistas e os políticos. 

As listas com as descobertas científicas do ano são, talvez, menos polémicas e um pouco mais diversas do que as listas com as figuras do ano. Este ano, como em muitos anteriores, encontramos muitos resultados das ciências físicas, incluindo-se aqui a astronomia e a física do espaço. 

Em 2022, a imagem do buraco negro no centro da nossa galáxia do Event Horizon Telescope, o sucesso estrondoso do Telescópio James Webb da NASA, Agência Espacial Europeia (ESA) e Agência Espacial Canadiana, a colisão da missão Double Asteroid Redirection Test (DART) da NASA com o asteróide Dimorphos, ou os resultados da fusão nuclear com lasers do Lawrence Livermore National Laboratory dominam muitas das listas das descobertas. Claro que os avanços biomédicos ou alguns progressos com as vacinas continuam presentes, mas, ano após ano, são os avanços da física que continuam a captar a imaginação de quem escreve nos media. Podemos argumentar que é na física que estão os grandes avanços, mas esta posição é difícil de defender. Há avanços científicos e tecnológicos que estão a ter um impacto tremendo no nosso dia-a-dia mas, que mesmo assim, não têm feito nem fazem parte das “descobertas do ano” (o caso óbvio que me recordo é a inteligência artificial).

As escolhas que aparecem nos media são, com certeza, motivadas pela capacidade de entusiasmarem ou interessarem os leitores: a física continua a capturar a imaginação da humanidade, hoje como há 500 anos – o desvendar dos segredos do Universo, perscrutar o Céu e observar mais longe, compreender as leis fundamentais ou dominar e usar essas leis para o benefício da Humanidade. Por outro lado, muitos dos mais ambiciosos projetos científicos e organizações focam-se nas ciências físicas, continuando a tradição iniciada com o projeto Manhattan da bomba atómica que, de facto, demonstrou a capacidade da ciência, através da concentração de talento, para resolver problemas científicos e tecnológicos de elevada complexidade e moldou a forma como a ciência moderna, e a física em particular, se desenvolveram e organizaram nos últimos 70 anos.

Muitas das grandes descobertas dos últimos anos na física são resultado de projetos de grande dimensão ou de instrumentos complexos, que se desenvolvem ao longo de muitos anos (em alguns casos, várias décadas), com grandes equipas e investimentos elevados. Obviamente, os governos e os filantropos de todo o mundo não fazem estes investimentos (exclusivamente) para inspirar os seus concidadãos com a resposta a questões fundamentais ou para assistir ao entusiasmo dos cientistas. Sabem, e bem, que nos projetos científicos mais avançados (ou no apoio a esses projetos), a chamada “big science” (ou “Grande Ciência/Ciência Grande”), os caminhos que desbravam, ou a tecnologia desenvolvida, promovem novas tecnologias ou inovações disruptivas, o equivalente à Fórmula 1 para a indústria automóvel. As próprias empresas envolvidas nestes projetos, por exemplo através de contratos de fornecimento, desenvolvem novas competências em resposta aos desafios na fronteira da tecnologia dos maiores projetos científicos. Os estudantes e os cientistas envolvidos são treinados com capacidades únicas e expostos a técnicas/tecnologias que acabam por se tornar importantes para a indústria em geral. As comunidades científicas menos amadurecidas interagem e ligam-se a comunidades e a grupos científicos mais fortes e mais desenvolvidos. 

Portugal participa em alguns destes grandes projetos científicos (com esforços institucionais muito assimétricos), por exemplo associados ao CERN, ESA, ITER, ou SKA [1], mas seria importante reforçar este envolvimento, alinhar os estímulos locais, e promover a liderança nacional nesses projetos (que passa sempre pelos difíceis compromissos plurianuais de longo prazo a que, como país, somos particularmente relutantes). Alguns dos grandes países europeus, como por exemplo a Itália, alinham o seu roteiro de infraestruturas científicas com o roteiro europeu de infraestruturas, fomentando assim uma maior integração do esforço local com os projetos internacionais. A generalidade dos países alinha também o reforço (e o apoio) à “Big Science” com a existência localmente de uma comunidade científica com reconhecimento internacional e uma indústria com ligações ou potencial para contribuir para os projetos, apoiada por estudos/planeamento/visões de longo prazo que alinham os planos e expectativas de todos os potenciais intervenientes locais, nomeadamente cientistas e indústria. Em Portugal falta também uma maior articulação de esforços ou um apoio diferenciado quando essa conjugação existe. 

Muitos dos que serão os grandes avanços que serão listados nos balanços dos próximos anos continuarão a estar associados à “Big Science” – por exemplo, no próximo ano teremos a primeira luz no Observatório Vera Rubin e o reinício do “upgrade” do laser de raios-X (LCLS II) do Stanford Linear Accelerator. Esta tendência irá provavelmente acentuar-se e alastrar-se a outras áreas: muitos dos mais estimulantes desafios científicos (e tecnológicos) envolvem comunidades internacionais muito vastas, que cada vez mais se associam. Estes desafios precisam de investimentos avultados longe do alcance individual de um país, mas também porque é nestes projetos que se desenvolvem e testam muitas das tecnologias do futuro e.g. computação quântica ou os supercomputadores do futuro. O desenvolvimento da Europa (e também de Portugal) passará também pela nossa capacidade de aproveitar a capacidade da “Big Science” para nos inspirar e, principalmente, para reforçar as enormes esperanças na ciência para a melhoria económica e social da nossa sociedade.

[1] O CERN é o Centre Européen pour la Recherche Nucléaire, o maior laboratório de física de partículas do mundo; a ESA é a Agência Espacial Europeia; o ITER é a maior experiência de fusão nuclear do mundo, em Cadarache, França; o SKA  é o Square Kilometre Array, um rádio telescópio internacional em construção na Austrália e na África do Sul.

Professor Catedrático do Departamento de Física, Instituto Superior Técnico
web: http://web.tecnico.ulisboa.pt/luis.silva/
twitter: @luis_os