Quem chega à vila de Palma é como se desembocasse num oásis no meio do deserto de aldeias abandonadas que a guerra criou. Na rua principal o comércio explode, escondendo as marcas de um virulento ataque no final de março de 2021 e que mudou dramaticamente o curso dos acontecimentos na região, com ondas de choque para todo o país. Dias depois, a TotalEnergies declarava o estado de “força maior” e interrompia o projecto, milhares de deslocados internos foram refugiar-se em Pemba e em Quitunda, a aldeia do reassentamento junto ao acampamento da petrolífera.
“Quando cheguei em agosto, vindo de Nacala, isto aqui metia medo”, explica-me Magalhães, um motorista “todo o terreno” que há meses está estacionado em Palma. “A vila era fantasma, não havia ninguém, só militares”. Diz-me o guia improvisado que telefonou ao patrão para regressar de imediato. “Não havia sítio para ficar, os mosquitos pareciam nuvens”.
Em quatro meses tudo mudou. Na rua principal, o comércio ocupou as duas faixas laterais. Há tudo. Ou quase tudo. Capulana, sal, arroz, farinha de milho, ovos frescos, óleo alimentar, sementes, utensílios agrícolas, recarga de telemóvel e preservativos J3. No Tedy Wanted Spare Part há pneus novos e estribos para motorizadas. Há carvão em pequenos sacos e gasóleo em garrafa de plástico que já foi de óleo. Dizem-me que vem dos quartéis. Apesar da bomba de gasolina de “marca branca” que já está em funcionamento, porque na vila há luz de Cahora Bassa.
Palma, para além de tudo o que já se disse sobre a indústria do gás, é um importante entroncamento neste quase extremo de Moçambique. Para norte vai-se a Kionga e Namoto, quase mesmo na margem do Rovuma, a rota tradicional do comércio com a Tanzânia em Mtwara e de muitas ilegalidades que a guerra trouxe à estaca quase zero. A migração informal, o tráfico das pedras, do marfim e das madeiras. As drogas por dhow, um tipo de embarcação muito comum nos mares do Índico, são agora mais a sul.
Para oeste vai-se a Pundanhar e Nangade, uma rota comercial importante que liga depois a Mueda. Há ainda muitos deslocados de Pundanhar em Palma. As forças de segurança têm sentido dificuldades em segurar esta zona agrícola importante. Discretamente, a estrada a partir de Palma, em terra batida, está a ser terraplanada. Cerca de 50km. A população aceita voltar “se os ruandeses vierem guarnecer lá”. Ficam depois mais 60km até Nangade. Lá onde a força do Lesoto e da Tanzânia têm dificuldades em suster os ataques jihadistas e as infiltrações mais a norte. Boa estrada é mais comércio, circulação de pessoas e bens, mais eficácia na segurança.
Para sul é a N380, uma estrada reabilitada quase de raiz pelo consórcio Zagope/Andrade Gutierrez. A N380 faz a ligação a Mocímboa e depois a Macomia e ao cruzamento do Silva Macua (Sunate). A 24km, em Afungi, fica o “acampamento da Total”, o coração do projecto do gás na bacia do Rovuma. De facto, o acampamento é de todas as empresas envolvidas na área 1 e 4, incluindo a Galp. Até novembro não havia escolta para Mocímboa. Mas depois de dois incidentes letais na zona de Oasse e Muidumbe, voltaram as escoltas. “Há muitos que vão sem escolta, mas é o risco deles. Como também vão a Nangade”, explica-me um motorista experiente no trajecto. Como a mini-bus do sr. Saide Mbaruco, letras garrafais com o seu nome estampado no vidro para-brisas.
O oásis Palma Mas, para se chegar à situação oásis, houve um trabalho formiga, ou teia de aranha, que está ainda a ser feito. Discretamente, longe dos olhares dos media, foram fretadas grandes barcaças, com capacidade de ancorar e descarregar junto à praia enormes quantidades de produtos e primeira necessidade e materiais de construção. Uma espécie de operação cara lavada. “Desapareceram” quase todos os edifícios esventrados e incendiados pelos saques, após o fatídico ataque de 24 de Março de 2021. Até os bancos comerciais, dinamitados pelos militares para assaltarem os cofres, voltaram às suas cores de marca, à espera de funcionários e garantias de segurança “para que não se repita a barbárie do que aconteceu há dois anos”, como explica um dos jovens responsáveis pelo reassentamento das populações. Há a sugestão do envolvimento do banco central para que a actividade bancária volte a Palma e a Mocímboa da Praia. Banco com esse nome, para já, só há em Quitunda, a vila do reassentamento que respira paredes meias com o enclave securitário que é o acampamento de Afungi. São 800 homens da força especial moçambicana (JTF) apoiada logisticamente pelo projecto do gás, mais o reforço recente de 200 polícias ruandeses. “Eles (os ruandeses) é que põem ordem em tudo isto aqui. Se não isto era uma coboiada. À noite, acabaram os tiros dos militares que causavam muito pânico entre a população”, este é de novo Magalhães, um pseudónimo, para evitar actividades extras das dezenas de ‘sises’ (agentes da segurança de Estado) que patrulham Palma à paisana.
A população não regressou a Palma de forma espontânea. O grosso veio de Quitunda. Família de autocarro, pertences de camião, escolta ruandesa. O resto veio por “rádio boca”. Das aldeias de Mondlane e Quelimane, de Olumbe. Há agora uma estrada ao longo da costa para Olumbe, mais curta e que evita o trajecto mais perigoso via N380.
Discretamente, a TotalEnergies “foi buscar” a Fundação Masc para implementar este projecto de “capitalismo básico”. Os comerciantes foram apoiados a fundo perdido com um pacote de produtos, incluindo transporte, tipo fundo inicial de tesouraria. Os alfaiates voltaram às varandas, os pescadores, com novos utensílios, voltaram à faina do mar. Um entreposto frigorífico compra tudo o que o pescador não consegue vender. Garoupa, atum, charéu, lula, polvo. O preço é de revirar os olhos: 200 meticais o quilo (três euros). A messe do acampamento também agradece. O frango ainda é congelado mas o peixe é fresco. O “chef” diz que “80% é produto local”. Até o pão de trigo leva mistura de mandioca.
Iniciativa privada Com este empurrão, os privados dão também sinal de vida. O Amarula, um lodge que ficou tristemente famoso pelo cerco jihadista a 24 de Março, também reabriu as suas portas a meio gás. A gerente disse ao jornalista ugandês Charles Onyango-Obbo que recuperou parte da mobília original junto dos militares que saquearam o hotel. O sal iodado está a vir de Kionga. Em breve vai haver oficina com mestres a fazer barcos, “não de plástico, de madeira de verdade”, como na tradição.
João Pereira, o académico que dirige o MASC, tem passado largas temporadas entre Palma e Mocímboa. Para fazer funcionar a pequena economia de mercado. Para estimular as transacções foi à Tanzânia comprar triciclos “wanhoo”, um utilitário chinês para os trajectos locais em terra batida. E como a TotalEnergies tem músculo, foi também recrutar à sociedade civil e ao Estado a advogada Alda Salomão, antes na discussão do processo de terras do lado dos camponeses e o engenheiro Mateus Mutemba, antigo director do parque da Gorongosa, ambos adicionando massa crítica ao programa “Pamodja Tunaweza” (“juntos somos capazes”), uma espécie de versão autóctone do programa de conteúdo local, uma das bandeiras das elites moçambicanas para também terem o seu quinhão do projecto do gás.
O IFPELAC, o braço do Estado para a formação profissional, tenta fazer a sua parte, respondendo à crítica recorrente que não há formação para os locais, logo até o servente de cozinha vem de Maputo, às vezes do Zimbabué, com passaporte moçambicano. Como Iumba Machone, que veio de Maputo para vestir um fato de barras florescentes e bandeiras de sinalização, para mostrar onde começa o novo pavé que liga o plateau da vila administrativa alta à zona piscatória de Palma, a primeira estrada que não é de areia. A estória interessante, como grande parte das “estórias de pavé”, é que há uma máquina no local, comprada para ficar no local, operada localmente e que pode gerar muitos mais metros de estrada, como os 1100 metros que no último sábado tiveram palmas e discursos de ocasião por parte das excelências locais e dos arredores e dos mirones transportados em autocarros “emprestados” ao município de Maputo: TPM-Turismo.
Na fila dos grupos culturais, apimentados pelo som agudo dos pequenos tambores do planalto de Mueda, está o grupo ruidoso dos formandos do IFPELAC, equipados a rigor, incluindo capacete de protecção, mesmo com o calor não muito abaixo dos 40 graus Celsius. Ruia Salimo, 30 anos, dois filhos, 6.ª classe, está a fazer pintura. Isaura Júlio Rocha veio de Tete e está a aprender serralharia. Monica Guilhermo, 25 anos, veio de mais perto, de Nangade, tem a 11.ª classe e aprende electricidade, como Nagumono Momade, de 32 anos, que vem da aldeia de Quelimane. Os cursos têm quatro meses, oferecem mesa posta e um subsídio de 2000 meticais por mês. Enquanto dançam, gritam “jobs”, empregos, um bem muito escasso por estas paragens.
Talvez por isso Laurinda Mussa e Jossefina Damásio estão na “força local” desde o princípio do ano, “mesmo não recebendo nada”. Mas gostam do que fazem e gostam de trabalhar com os ruandeses. “Damo-nos bem, conseguimos compreender-nos, eles falam swahili, nós também e o emákwé que falamos aqui é uma língua próxima. As idades não foram perguntadas, mas os rostos marcados mostram que os 50 passaram há muito.
Mais casas para Quitunda No âmbito do “renascimento” de Palma, o IFPELAC e a empresa ruandesa Radar Scape assinaram o seu primeiro acordo de trabalho em Afungi envolvendo a reabilitação 76 casas na vila de Quitunda.
As casas a reabilitar foram alvo de grandes vandalizações depois do ataque jihadista à sede do distrito. Quitunda é um novo centro urbano construído de raiz para alojar a população deslocada da área concessionada (DUAT) às petrolíferas. A área do DUAT é delimitada por uma enorme cerca de rede com 2,70m de altura, arame farpado no topo, vedação dupla nalguns pontos, parede de betão junto ao complexo habitacional, uma empreitada da sul-africana WBHO.
A Radar Scape faz a sua primeira incursão em Moçambique numa zona onde está presente, desde 2021, o contingente militar ruandês, agora com mais de 2500 tropas. E com propensão a aumentar para novas zonas operacionais em Cabo Delgado.
Depois do ataque de 2021, em desespero, os deslocados de Palma e povoações vizinhas rumaram para Quitunda, ocupando compulsivamente todos os espaços públicos e as casas em construção destinadas aos habitantes de Quitupo, uma aldeia dentro da área concessionada. Agora, que a tempestade passou, os deslocados vão regressando às suas zonas de origem.
Para Mocímboa da Praia foi ensaiada uma operação idêntica à de Palma. Retorno assistido com materiais de construção, kit de produção e segurança alimentar.
Em Quitunda não há praticamente “feridas abertas” da ocupação desordenada. Voltou a electricidade, voltou a água canalizada. Sobra um enorme capinzal a que todos encolhem os ombros. À espera do “dinheiro do dono” para se sair dos ociosos alpendres das casas. Alguns, orelhas moucas às “orientações das estruturas”, vão construindo casas maticadas, paredes meias com as alvenarias.
Voltando aos ruandeses. A Radar Scape vai fazer “formação de formadores” e “formação no local de trabalho” (on the job training) trazendo para Quitunda formandos do IFPELAC. O projecto está avaliado em USD800.000,00 e foi custeado pela TotalEnergies. Na construção das primeiras 400 casas, a empreitada esteve a cargo da multinacional italiana CMC.
Se o projecto do gás evoluir favoravelmente em 2023, as casas em Quitunda poderão chegar a quase 700 unidades, contemplando a totalidade das famílias a realojar dentro do DUAT. Também a portuguesa Gabriel Couto, dezenas de máquinas armazenadas e toneladas de inertes armazenados no acampamento de Afungi, esperam “novas ordens” para que possam aumentar a pista local dos actuais 1600 metros para os 2400. Empreendimento que trará a Afungi os Boeing 737. Para já, “vêm periodicamente ligar os motores e mudar os óleos”. A Mota Engil, outra grande empreiteira portuguesa encarregue das terraplanagens e dos acessos ao porto de Afungi, retirou todo o seu equipamento em 2021. Os novos empreendimentos têm estado a cargo da empreiteira WBHO.
Enquanto se esperam grandes decisões para 2023.