O dia 22 de Dezembro de 2022 será considerado no futuro um dia negro para a história da democracia em Portugal. Foi esse o dia em que o Parlamento aprovou, com os votos favoráveis do PS, do PAN, da Iniciativa Liberal e de um deputado do PSD, o diploma de alteração à Lei das Associações Públicas Profissionais. É manifesto que este diploma é claramente inconstitucional, pois viola a liberdade de associação dos mais de 430 mil profissionais inscritos nas Ordens Profissionais, pretendendo colocar os órgãos das Ordens, que até agora eram eleitos democraticamente, sob o controlo de entidades externas, que são falsamente apresentadas como órgãos das Ordens.
Um dos órgãos externos é o órgão de supervisão, que é apenas composto em 40% pelos profissionais inscritos nas Ordens. Os outros 40% são compostos por docentes do ensino superior não inscritos na Ordem, os quais deverão ser eleitos simultaneamente com os membros da Ordem para integrar este órgão. Já os restantes 20% serão cooptados por maioria absoluta de entre personalidades de reconhecido mérito, também não inscritas na Ordem. É manifesto que assim este órgão terá necessariamente uma maioria de 60% de personalidades externas, deixando por isso de ser representativo dos profissionais inscritos na Ordem. Mas a lei ainda tem o cuidado de especificar que o seu presidente também não pode estar inscrito na Ordem, retirando assim aos profissionais que se queiram candidatar a esse órgão até o direito de escolher o seu presidente. Deve dizer-se que irá seguramente haver grande dificuldade em organizar candidaturas a este órgão, pois dificilmente algum profissional quererá organizar uma lista a um órgão da sua Ordem que ele próprio nunca poderá liderar. Esse órgão inorgânico tem, no entanto, extensas competências, que se sobrepõem às do órgão executivo.
Da mesma forma, o órgão disciplinar passa a partir de agora a ter que “integrar personalidades de reconhecido mérito com conhecimentos e experiência relevantes para a respetiva atividade, que não sejam membros da associação pública profissional”. Esta condição é impossível de cumprir, pois não se vê como é que não profissionais podem ter conhecimentos e experiência relevantes de uma actividade que não exercem. O que se pretende é retirar aos profissionais inscritos nas Ordens o direito ao julgamento pelos seus pares, que passa a competir a entidades externas, que não estão minimamente em condições de avaliar o cumprimento das regras deontológicas pelos profissionais. A própria Provedora da Justiça alertou já para os efeitos perversos desta solução, que pode levar a julgamentos disciplinares injustos.
Outro órgão externo às Ordens é o provedor dos destinatários dos serviços, um órgão não eleito cujo titular é proposto pelo órgão de supervisão externo e que tem competências até para impugnar os regulamentos aprovados pela assembleia representativa dos profissionais. Trata-se assim de uma espécie de controleiro dos órgãos eleitos das Ordens, com a especificidade de ser obrigatoriamente remunerado, quando os restantes titulares não o são.
Todos estes órgãos passam assim a ser sempre compostos por membros não inscritos nas Ordens, os quais também integram obrigatoriamente os júris dos exames de estágio, pelo que até a avaliação da preparação de um estagiário para o exercício da profissão é efectuada por quem nunca a exerceu.
A nova Lei das Associações Públicas Profissionais é um diploma absolutamente aberrante e inconstitucional, que nunca deveria ter visto a luz do dia num Parlamento democrático, sendo que nem a Assembleia Nacional do Estado Novo alguma vez se lembrou de aprovar diploma semelhante, apesar da oposição que as Ordens Profissionais tiveram em relação ao regime anterior. Espera-se, por isso, que a constitucionalidade deste diploma possa vir a ser apreciada, em defesa das centenas de milhares de profissionais a quem se quer retirar o direito de elegerem e serem eleitos para os órgãos das Ordens Profissionais.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990