Miosótis brotam no jardim da tristeza


Sim Duarte, ensinar-te-ei, se conseguir, o que o teu bisavô Afonso me ensinou: que há sempre um poema para cada momento da nossa vida. Por isso,  cumpre a vontade do Torga: “Brinca na eterna idade que já tive e perdi/Quando, por imprudência/Saltei o risco branco da inocência/E cresci”.


AL-KHOR – Sou absolutamente disléxico com os dias do mês. Já não tanto com os da semana. Se me perguntarem em que dia do mês estamos, não sei. Passa-me ao lado. Com as segundas, terças e quartas-feiras não é de todo simples, mas os domingos são uma brincadeira de crianças – menos aqui que os domingos são à sexta. Claro que isto não dá jeito nenhum para apanhar aviões, pagar as contas da água ou enviar uma mensagem de parabéns. Por outro lado, oferece-me uma enorme capacidade de passar ao lado de uma data de porcarias que só servem para enervar um ser humano até à fronteira dos aneurismas. Parece que hoje estamos a 14 de dezembro e eu, perdido por entre as areias do deserto que vai de Doha a Al-Khor, julgava que era 11 e alegrei-me de súbito ao pensar que o meu neto Duarte, esse pedacinho de vida que brotou no jardim da minha tristeza com a alegria azul dos miosótis, fazia um mês de existência por inteiro mergulhada num mar de infinita ternura. Ele não leva a mal, está demasiado entretido a abrir os olhos e a tentar perceber a novidade em folha do mundo onde veio parar. Eu sinto a saudade do seu respirar sereno no meu colo, recuperação de uma angústia de morte através do mover contínuo das gerações, tal e qual os alcatruzes da nora que ficava nos Moinhos, no lugar do Olival, com a mula velha que se chamava Carriça à roda e à roda. Tanto do que tenho para lhe dar deixou de existir. Serei quanto muito memória das memórias que não terá, se lhe fizerem falta, habitante que é deste universo em que caminho para o fim ao mesmo tempo que ele caminha em sentido contrário. Tal como me esqueço dos dias do mês, esqueço-me do que possa ter para lhe dar, se é que ainda me resta algo mais do que, para já, pedir-lhe que não cresça tão depressa que nem eu nem ele reparemos, inesperadamente, nos anos que se foram. Sim Duarte, ensinar-te-ei, se conseguir, o que o teu bisavô Afonso me ensinou: que há sempre um poema para cada momento da nossa vida. Por isso,  cumpre a vontade do Torga: “Brinca na eterna idade que já tive e perdi/Quando, por imprudência/Saltei o risco branco da inocência/E cresci”.

Miosótis brotam no jardim da tristeza


Sim Duarte, ensinar-te-ei, se conseguir, o que o teu bisavô Afonso me ensinou: que há sempre um poema para cada momento da nossa vida. Por isso,  cumpre a vontade do Torga: “Brinca na eterna idade que já tive e perdi/Quando, por imprudência/Saltei o risco branco da inocência/E cresci”.


AL-KHOR – Sou absolutamente disléxico com os dias do mês. Já não tanto com os da semana. Se me perguntarem em que dia do mês estamos, não sei. Passa-me ao lado. Com as segundas, terças e quartas-feiras não é de todo simples, mas os domingos são uma brincadeira de crianças – menos aqui que os domingos são à sexta. Claro que isto não dá jeito nenhum para apanhar aviões, pagar as contas da água ou enviar uma mensagem de parabéns. Por outro lado, oferece-me uma enorme capacidade de passar ao lado de uma data de porcarias que só servem para enervar um ser humano até à fronteira dos aneurismas. Parece que hoje estamos a 14 de dezembro e eu, perdido por entre as areias do deserto que vai de Doha a Al-Khor, julgava que era 11 e alegrei-me de súbito ao pensar que o meu neto Duarte, esse pedacinho de vida que brotou no jardim da minha tristeza com a alegria azul dos miosótis, fazia um mês de existência por inteiro mergulhada num mar de infinita ternura. Ele não leva a mal, está demasiado entretido a abrir os olhos e a tentar perceber a novidade em folha do mundo onde veio parar. Eu sinto a saudade do seu respirar sereno no meu colo, recuperação de uma angústia de morte através do mover contínuo das gerações, tal e qual os alcatruzes da nora que ficava nos Moinhos, no lugar do Olival, com a mula velha que se chamava Carriça à roda e à roda. Tanto do que tenho para lhe dar deixou de existir. Serei quanto muito memória das memórias que não terá, se lhe fizerem falta, habitante que é deste universo em que caminho para o fim ao mesmo tempo que ele caminha em sentido contrário. Tal como me esqueço dos dias do mês, esqueço-me do que possa ter para lhe dar, se é que ainda me resta algo mais do que, para já, pedir-lhe que não cresça tão depressa que nem eu nem ele reparemos, inesperadamente, nos anos que se foram. Sim Duarte, ensinar-te-ei, se conseguir, o que o teu bisavô Afonso me ensinou: que há sempre um poema para cada momento da nossa vida. Por isso,  cumpre a vontade do Torga: “Brinca na eterna idade que já tive e perdi/Quando, por imprudência/Saltei o risco branco da inocência/E cresci”.