1. Em menos de uma semana (o que exclui a hipótese de ser apenas um efeito das alterações climáticas), certas zonas da grande Lisboa e do país ficaram inundadas, registando-se mesmo duas mortes. A situação é recorrente, atingindo os mesmos sítios. Fica à mostra uma incapacidade centenária de evitar estas devastações. A segunda leva da tempestade (de segunda para terça desta semana) foi inesperadamente a mais violenta, mas já não surpreendeu tanto porque a Proteção Civil e o IPMA não falharam muito nos alertas, depois de terem sido bastante ineficazes oito dias antes. Mesmo assim, só poucas horas antes da chegada das maiores bátegas é que se aperceberam da verdadeira dimensão catastrófica do que aí vinha. Já eram seis da manhã de ontem quando as autoridades locais pediram para as pessoas não virem para Lisboa, salvo por razões fortes. Falharam por mais de 8 horas, porque o pior já tinha acontecido. Os bombeiros fizeram mais uma vez o que podiam com os seus meios, socorrendo e ajudando nas situações mais prementes. Quanto ao Governo desapareceu durante a borrasca e a manhã seguinte. As televisões de sinal aberto (sobretudo a RTP) dormiram pacatamente e mantiveram toda a noite emissões gravadas, mesmo nos canais de informação para vergonha dos seus dirigentes e desgraça dos que as sustentam. Só a CMTV (a mal-amada líder do cabo) cumpriu, pondo no ar informações úteis e imagens colhidas por cidadãos anónimos. As medidas preventivas foram escassas, os transportes públicos colapsaram, do Metro à Carris, passando pela CP e, obviamente, o aeroporto de Lisboa que tem uma lamentável manutenção. Os sinais de devastação ficaram por todo o lado e a normalização levar tempo, muito mais do que aquele que vier a ser apontado, como é tradição entre nós.
2. Agora, multiplicam-se apelos para se desbloquearem ajudas de emergência às pessoas e empresas afetadas pelos temporais. Governo e autarcas prometem uma ação eficaz, o que é provavelmente mais uma falsidade tipo apoios contra a covid de Siza Vieira. Mas vamos admitir que é verdade e que haverá dinheiro e ações concretas. Oxalá os que ficarem à frente das operações reclamadas com urgência não sejam, dentro de três ou quatro anos, criticados, levados à justiça e condenados por terem, na ânsia de fazer, ultrapassado certas formalidades burocráticas. Se querem depressa, façam uma lei de exceção para o que é excecional. Não se permita, por omissão, a repetição de perseguições ocorridas, por exemplo, depois do incêndio de Pedrógão. O que é excecional hoje não pode amanhã ser comparado à rotina. Quem está perante a emergência não pode “ser preso por ter cão e por não ter”. O Estado não deve ser bipolar. Sabiamente, um antigo governante afirmava há dias o seguinte: “Se fosse eu não fazia rigorosamente nada até ter todas as autorizações e um visto prévio do Tribunal de Contas”. “Os voluntariosos de hoje são potenciais réus amanhã.” Palavras sábias!
3. Se há coisa que pouco muda na nossa política é o PSD. Num trabalho recente e bem feito, o Público explicava que se começam a detetar sinais de impaciência de alguns setores relativamente a Luís Montenegro, que só tem seis meses de liderança. Qualquer pessoa mais informada sabe que a premissa está errada. Verdadeiramente estranho é só agora Montenegro começar a ser questionado. Houve quem no PSD nunca tivesse um dia sem uma firme oposição interna. Como não se pode responsabilizar Montenegro pelas eleições regionais da Madeira e dos Açores, que serão as primeiras, aponta-se como decisivas para o seu futuro as europeias e as autárquicas seguintes. Se o resultado for mau, Montenegro já tem putativos sucessores. Entre eles avulta a nova coqueluche Carlos Moedas, cujas virtudes se exaltam: fala lindamente línguas, andou por areópagos internacionais, trabalhou para o Goldman Sachs antes e não depois da política (o que realmente é raro), além de ter ganho inesperadamente a Câmara de Lisboa. Não falta a referência de ser de Beja, de origem humilde e dos pais serem comunistas. Moedas até já é considerado mais capaz e menos problemático do que Rangel, apelidado de genial há um ano. É verdade que Carlos Moedas é um sobredotado em muitos aspetos relevantes e, como ficou patente nestes dias dramáticos de temporal, está no terreno, apoia as pessoas, fala aos média, assume responsabilidades, desenvolvendo um mandato globalmente positivo, apesar de não ter maioria e de a sua equipa apresentar pontos fracos. É por isso provável que um dia seja líder do PSD. Mas agitar o seu nome quando Montenegro tem um semestre de estrada em geral bem feito tem mais a ver com acertos de contas de um passado recente do que com o futuro. Ao atual líder já bastam os incómodos das inopinadas aparições articulistas de Passos Coelho, plasmando o método inaugurado, nos anos 80, por Cavaco Silva quando Balsemão governava.
4. Augusto Santos Silva tem regulares trejeitos de tiranete. Um deles ocorreu na semana passada quando não admitiu um projeto de resolução do PSD que pretendia a convocação de um referendo sobre a eutanásia, acabada de aprovar na Assembleia a que preside. Santos Silva invocou a inconstitucionalidade e avocou poderes que não tem, por competirem ao Tribunal Constitucional. Saiu do trotskismo, mas o trotskismo não saiu dele.
5. Quanto ao referendo que o PSD pretende, trata-se de uma proposta sensata. Justifica-se de facto em casos como a eutanásia ou (como sucedeu) da interrupção voluntária da gravidez. Por isso, Montenegro tem uma posição defensável uma vez que é matéria de consciência individual. Mas será que jovens de 16 anos têm maturidade para votar uma matéria desse género? Fica a pergunta para o PSD que quer baixar o direito de voto para essa idade.
6. Estamos fora do Mundial de futebol onde tivemos uma prestação aceitável. Caímos frente a Marrocos, mas deixámos para trás seleções como o Uruguai, a Suíça e a Coreia não famélica (a do Sul). Fomos mais longe do que muitos outros favoritos, embora seja verdade que em edições anteriores estivemos melhor sem tanto estardalhaço mediático. Na era Fernando Santos/Ronaldo ganhámos títulos, jogos dificílimos e prestígio. Agora, é tempo de renovação, prestando a necessária homenagem a figuras relevantes na caminhada de vários anos, designadamente o presidente da FPF, o treinador e todos os jogadores na pessoa do insuperável Ronaldo, provavelmente o português mais conhecido de sempre. Apenas lhe falta um nadinha de serenidade e a capacidade de controlar pessoas que lhe são próximas com a mesma habilidade com que controla o esférico. Isto para usar uma palavra que (graças a Deus!) caiu em desuso na boca dos nossos relatores, os quais, entretanto, inventaram a transição ofensiva, que os antigos (era antes de Tadeia) chamavam contra-ataque. Registe-se ainda a injustiça de Rui Patrício não ter tido a oportunidade de jogar pelo menos contra os coreanos e ter suportado isso sem azia visível. Um senhor!
7. Palavras Descruzadas é um livro essencial para quem comunica em português. É da autoria de António Bagão Félix, um conceituado economista, professor, político, católico, benfiquista apaixonado, grande conhecedor de botânica e, claro, da nossa língua. O livro contém excelentes reflexões e conselhos sobre o nosso idioma, apontando erros, ambiguidades e o mau uso de palavras e expressões. Se os jornalistas e comunicadores o lessem, passando a aplicar os seus conselhos, evitavam-se muitas calinadas que depois se propagam (o próprio articulistas tomou boa nota e promete proceder a certas retificações).
Escreve à quarta-feira