DOHA – Sábado o céu de Doha estava pleno de nuvens e ameaçava chover, não chover a sério, porque aqui Allah não oferece líquidos aos borbotões, mas aquelas pinguinhas que já tinham aparecido dois dias antes. Habituei-me há muito a desligar a fortuna das condições atmosféricas que o rodeiam. Afinal, vendo bem, parece que estava uma manhã deslumbrantemente azul sobre Hiroxima poucas horas de cair a bomba. De certa forma, tal como gosta de dizer o meu mano Nuno Miguel Guedes, este Portugal-Marrocos (terceira dose em fases finais de Campeonatos do Mundo) era um choque civilizacional: não provocado por nós, já contentes por aqui termos chegado, sonhando com algo de jamais experimentado, mas por eles que, depois da eliminação da Arábia Saudita, do Qatar e da Tunísia, passaram a ser os representantes de uma espécie de Sociedade Árabe Unida, os excelsos muçulmanos num país muçulmano, aqueles que, finalmente, poderiam carregar todo o intrínseco orgulho árabe até ao topo do mundo, quem diria?
Perdemos. Com um golo apenas de El-Nesryi, em cima do intervalo, um golo daqueles que Ronaldo costumava marcar. Perdemos e vivemos perdidos no meio de um jogo que talvez fosse suposto ganharmos. Mas, mais uma vez, a pergunta surge, inevitável: porquê? Seria assim obrigatório que este Portugal estivesse presente nas meias-finais de um Campeonato do Mundo quando essa é a excepção que apenas aconteceu por duas vezes na nossa história, em 1966 e 2006? Ah! Porque temos os melhores jogadores que jamais o sol cobriu, uma geração mais ínclita de que todas as gerações (Infantes Lencastre incluídos), e com Ronaldo, ainda por cima. Lamento ser desmancha-prazeres, mas não temos.
Para começar não temos mais Ronaldo porque o tempo passou inexoravelmente por ele e já não é mais o ‘Super-Homem’ que só precisava de uma cabina-telefónica para mudar de roupa e vir em nossa salvação. Houve, sobre Cristiano, uma maldade suprema de Cronos, o deus do Tempo, a de não o ter colocado no máximo das suas potencialidades no Mundial de 2006, aquele no qual esteve rodeado pela melhor de todas as gerações que atravessou. Talvez aí… talvez com essa gente… pudéssemos ter sido os melhores do planeta.
Realidade
Nunca passei um cheque em branco a esta seleção. Sempre disse e repeti que deveria resumir a sua ambição a estar presente nos quartos de final deste Mundial do Qatar e não mais do que isso. Claro que sonhar é de graça e todos têm direito ao sonho, sobretudo quando, em mais uma daquelas arrumações astrológicas que costumam abençoar Fernando Santos, Marrocos tirou a Espanha da nossa frente. De nada serviu. Repetiu-se o Alcácer Quibir de 1986 e regressámos a casa sem honra e sem glória. No tempo da velha palmatória, éramos obrigados a saber de cor e salteado, estações e apeadeiros, as linhas de caminhos-de-ferro de Portugal e das colónias. E que havia, no território continental, três linhas chamadas de via reduzida, carris mais estreitos: Vale do Vouga, Vale do Tua e Vale do Sabor. Em Águeda, entre Aveiro e as Talhadas (depois Viseu), corria o Vouguinha, como era carinhosamente tratado, ou o queima-fatos, por aqueles que levavam com faúlhas nas lapelas. Pois há que dizer que foi grande a diferença de andamento entre o Vale do Vouga e o Marrakesh Express, essa viagem noturna que nos leva de Tanger a Marrakesh e foi transformada numa canção pelos Crosby Stills & Nash. Repito-me, mesmo sabendo que contrario a opinião da grande maioria de todos os que seguem esta seleção: não consigo encontrar-lhe categoria para se assumir claramente como candidata a vencer um Europeu, quanto mais um Mundial, prova de um gigantismo impressionante. Forma, jogue quem jogar, um onze de rapazes habilidosos mas sem o suporte físico exigível em jogos como o frente a Marrocos, conjunto de compleição atlética incomparavelmente mais potente. Portugal possui uma série de jogadores francamente sobrevalorizados que brilham no meio de equipas de clubes onde estão rodeados por companheiros que lhes permitem andar mais à solta, o que não sucede no conjunto lusitano que não se pode dar ao luxo de deixar três ou quartos elementos à-boa-vai-ela e precisa, sim, que todos lutem descomplexadamente pela posse da bola durante 90 minutos. Além disso, que diabo!, a seleção de Fernando Santos oferece aos opositores golos completamente infantis – para não lhes chamar obtusos – e o exemplo esteve aí para quem quis prestar-lhe atenção: todos os seis golos sofridos nos cinco jogos que disputou aqui no Qatar são de bradar aos céus e nem sequer vale a pena, agora, estar a apontar individualmente os culpados.
Al Thumama foi o inferno pantanoso de que falava o Padre António Vieira. Perante um exército de guerreiros bravos que erguiam as suas adagas e os seus estandartes em defesa de uma unidade cultural e religiosa que os fez rondar as fronteiras do fanatismo, Portugal voltou a ser um Portugalzinho quebradiço e timorato que tremia como varas verdes a cada grito um uníssono “Allez Maghreb!”. Os homens valentes que tinham massacrado uma Suíça bovina como jamais a tínhamos visto (e que nos faz pensar na afirmação do selecionador Murat Yakin que muitos dos seus jogadores tinham sido atacados por uma virose na véspera, ainda por cima quando se tornou público que se haviam espalhado pelo Qatar muitas infeções respiratórias de proveniência desconhecida) viram-se amarrados às suas próprias insuficiências: Bernardo Silva rodou à volta de si mesmo como um hamster dentro de um cilindro; João Félix teimou em dribles quando a cada adversário ultrapassado surgia outro no seu lugar; Bruno Fernandes quis oferecer bolas aos seus dianteiros e só conseguia vislumbrar um Gonçalo Ramos preso numa teia de aranha de marroquinos; os laterais raramente saíram lá de trás; Ruben Neves e Otávio eram a simples negação de si próprios, como o foram em todas as partidas a que foram chamados. Francamente!, que ambições podem passar pela cabeça de quem quer que seja com uma dupla que deveria ser de dínamos e joga a passo de caracol? Não. Não foi injusto. Foi normal. Fomos aquilo que intrinsecamente valemos. Fizemos a nossa obrigação, ninguém pode exigir mais a um conjunto apenas bonzinho. Foi, quanto muito, triste, porque houve gente a mais a soprar o balão de uma injustificada ambição. E, no céu de Doha, a lua foi apenas a testemunha silenciosa de uma realidade entediante.