A notícia, já de si, era abjeta: “Vinte milhões de cidadãos dos Estados Unidos (ou seja, um habitante em cada dez, pelo menos) vivem em condições de pobreza abjeta e não dispõem do mínimo vital”. Como se esperava, um pouco por toda a parte, abriram-se fissuras. Há sempre uns que se recusam a aceitar a realidade, ainda por cima quando vivem bem num país notoriamente rico. Invenções dos jornais. Boatos postos a correr por oposicionistas com interesses esconsos. Dedo da União Soviética numa tentativa de desestabilizar um crescimento económico que só não via quem andasse pelas ruas com palas nos olhos como um mula em redor de um poço, puxando pelos alcatruzes da nora à roda e à roda.
Os americano também são uns fanáticos das comissões. Vai daí, perante números deste calibre, que começavam a criar incómodos internos e internacionais, eis que avançam para a criação de mais uma comissão, a Comissão Nacional das Zonas Pobres dos Estados Unidos. Bom, reconhecerem que tinham zonas pobres já era um avanço civilizacional notável, como podem imaginar. Afinal já não era só o Almada Negreiros que podia bradar aos céus: “Somos um país muito rico nem pobres!” Concluiu essa dita comissão após um longo inquérito levado de norte a sua do país que – “Quanto mais aumentava a prosperidade dos Estados Unidos mais pobres existem que não fazer parte dessa abundância crescente”. Um paradoxo? Sim. Ou a prova que a tal abundância servia que para que meia dúzia de milhares se abichassem com dinheiro terrivelmente mal repartido.
A comissão
Assentaram as conclusões da comissão em alíneas extremamente práticas e era isso mesmo que se pretendia. No fundo a pobreza não podia esperar. E já estávamos para lá daquele dichote barato que anunciava: “Quer combater a pobreza? Mate um pobre todos os dias!” A chamada “fórmula de pobreza americana” preocupava muito mais do que índios, negros e imigrados, tomem lá atenção. Ameaçava já faixas populacionais que, até então, nunca lhes faltara as sanduíches de manteiga de amendoim e uma saltada ao parque ao fim de semana para ensaiar umas jogadas à maneira de Babe Ruth e Joltin’ Joe. Mas, obviamente, as principais razões para se ser um pelintra vinham logo a abrir o relatório: 1) Não ser branco; 2) Viver no campo; 3) Ser mulher com mais de 65 anos e ter filhos a seu cargo. Enfim, se estivesse incluído numa destas três definições de ser humano mais valia atirar-se para o fundo de um poço ou dar um tiro nos miolos se tivesse dinheiro para comprar balas para o revólver.
Para que o tormento desta gente fosse ainda pior, a comissão desdobrava-se um números cada vez mais picuinhas atirando uma gigantesca e significativa fatia de cidadãos norte-americanos para um desespero infame. Um tal de dr. Oscar Ornatti, num relambório científico assinado por ele próprio, fazia um aviso muito sério aos seus compatriotas: “Sejam brancos! Sobretudo sejam brancos!” Mas em que diacho de universo viveria esta aventesma? Mas agora os fetos antes de serem expelidos entram numa espécie de espiral vertiginosa e, por vontade própria, saem com a cor que escolheram? Os pais são como o Henriquinho de O Pátio das Cantigas a furar com pregos as paredes da adega do Evaristo: “Deus queira que me saia branco! Deus queira que me saia branco!?” O dr. Ornatti não tinha, pelos vistos, os parafusos todos bem atarraxados. Aconselhava também todos os casais entre 25 e 35 anos a mudarem com urgência para as cidades do norte, ter o máximo de habilitações literárias possível e, sobretudo, nunca se deixar adoecer. Só faltava mesmo dizer que os pobres eram um grupo de gente estúpida que não acabava o liceu e gastava o pouco dinheiro que tinha em casas de fraca qualidade e sem aquecimento central. Fosse noutros tempos mais impacientes e não regressaria a casa sem o chapéu roto e tombado sobre uma orelha, os dois olhos negros e um nariz partido que lhe espirraria sangue para a bata que, decididamente, não merecia usar.
A comissão, mais virada para números do que para conselhos bacocos, referia que reuniam as três condições desaconselhadas pelo dr. Ornatti certa de 48 por cento da população geral dos Estados Unidos e não levavam para casa ao fim do ano mais do que 2 500 dólares (algo equivalente a 72 contos e meio), entrando pois naquela definição abjetamente científica de abjetamente pobre. Olhem, se não queriam andar por aí nas vascas da miséria, seguissem os conselhos do dr. Oscar Ornatti que, por acaso, também era bastante abjetos.