A limitação do recurso ao Supremo Tribunal de Justiça


Infelizmente é hoje voz comum que a nossa Justiça se apresenta como distante e inacessível aos cidadãos, encontrando-se por isso com muito má imagem.


Foi notícia nos últimos dias que o Supremo Tribunal de Justiça admitiu o recurso de revista excepcional em relação ao caso das mortes na Praia do Meco em 2013, em que seis jovens perderam a vida alegadamente num episódio de praxes académicas, reclamando por isso as suas famílias uma indemnização de 1,3 milhões de euros. Segundo a imprensa revelou, os juízes consideraram que este processo “dispensa qualquer tipo de apresentação” face à “significativa projecção mediática, não só pelo seu desfecho trágico mas também pelo contexto em que os factos ocorreram”. Consideraram por isso que o caso reveste “significativa relevância social, sendo evidente que a intervenção deste Supremo Tribunal contribuirá para a clarificação do melhor enquadramento jurídico a dispensar a casos que apresentem semelhanças”.

Nada há a apontar a esta decisão, uma vez que parece de elementar justiça que o Supremo Tribunal de Justiça aprecie um caso desta natureza. O que há a censurar é, no entanto, o facto de termos um sistema de recursos que só a título excepcional admite que o Supremo Tribunal de Justiça aprecie este tipo de casos. Efectivamente, ao contrário do que antigamente sucedia, em que o recurso ao Supremo Tribunal de Justiça era apenas limitado pelo valor do processo, hoje para se aceder ao nosso mais alto Tribunal é necessário que o Tribunal de primeira instância e o Tribunal da Relação não tenham adoptado decisões semelhantes. Como neste caso ocorreu a chamada dupla conforme, já que o Tribunal da Relação de Évora tinha julgado improcedente o recurso da decisão de primeira instância, não é admissível recurso de revista normal, que só seria possível se tivesse havido divergência entre as duas instâncias. Chegamos assim à situação paradoxal em que uma acção de €30.000,01 pode ser objecto de recurso de revista normal, se houver divergência entre as duas instâncias, mas uma acção de €1.300.000,00 que as instâncias tenham decidido da mesma forma apenas possa chegar ao Supremo como revista excepcional.

Só que a revista excepcional, nos termos do art. 672º do Código de Processo Civil, tem pressupostos muito restritivos apenas sendo excepcionalmente admitido o recurso quando: a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito; b) Estejam em causa interesses de particular relevância social; c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme. Ora, tirando o caso referido na alínea c), a verdade é que estes pressupostos são extremamente indeterminados, o que praticamente coloca na discricionariedade do próprio Supremo Tribunal aceitar ou não os recursos que lhe são dirigidos. Mas para além disso cabe perguntar porque razão o direito de acesso de um cidadão ao nosso mais alto Tribunal numa acção de elevado valor deve ficar dependente da relevância jurídica da questão ou da relevância social dos interesses em causa. O acesso ao direito e aos tribunais, que inclui naturalmente o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, não será só por si razão suficiente para justificar que o nosso sistema de justiça lhe assegure o direito ao recurso?

Infelizmente é hoje voz comum que a nossa Justiça se apresenta como distante e inacessível aos cidadãos, encontrando-se por isso com muito má imagem. Por outro lado, as elevadas custas judiciais desincentivam os cidadãos de recorrer à justiça. Por isso ao menos que não lhes seja vedado o direito a recorrer das decisões que discordam até ao nosso mais alto Tribunal.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

A limitação do recurso ao Supremo Tribunal de Justiça


Infelizmente é hoje voz comum que a nossa Justiça se apresenta como distante e inacessível aos cidadãos, encontrando-se por isso com muito má imagem.


Foi notícia nos últimos dias que o Supremo Tribunal de Justiça admitiu o recurso de revista excepcional em relação ao caso das mortes na Praia do Meco em 2013, em que seis jovens perderam a vida alegadamente num episódio de praxes académicas, reclamando por isso as suas famílias uma indemnização de 1,3 milhões de euros. Segundo a imprensa revelou, os juízes consideraram que este processo “dispensa qualquer tipo de apresentação” face à “significativa projecção mediática, não só pelo seu desfecho trágico mas também pelo contexto em que os factos ocorreram”. Consideraram por isso que o caso reveste “significativa relevância social, sendo evidente que a intervenção deste Supremo Tribunal contribuirá para a clarificação do melhor enquadramento jurídico a dispensar a casos que apresentem semelhanças”.

Nada há a apontar a esta decisão, uma vez que parece de elementar justiça que o Supremo Tribunal de Justiça aprecie um caso desta natureza. O que há a censurar é, no entanto, o facto de termos um sistema de recursos que só a título excepcional admite que o Supremo Tribunal de Justiça aprecie este tipo de casos. Efectivamente, ao contrário do que antigamente sucedia, em que o recurso ao Supremo Tribunal de Justiça era apenas limitado pelo valor do processo, hoje para se aceder ao nosso mais alto Tribunal é necessário que o Tribunal de primeira instância e o Tribunal da Relação não tenham adoptado decisões semelhantes. Como neste caso ocorreu a chamada dupla conforme, já que o Tribunal da Relação de Évora tinha julgado improcedente o recurso da decisão de primeira instância, não é admissível recurso de revista normal, que só seria possível se tivesse havido divergência entre as duas instâncias. Chegamos assim à situação paradoxal em que uma acção de €30.000,01 pode ser objecto de recurso de revista normal, se houver divergência entre as duas instâncias, mas uma acção de €1.300.000,00 que as instâncias tenham decidido da mesma forma apenas possa chegar ao Supremo como revista excepcional.

Só que a revista excepcional, nos termos do art. 672º do Código de Processo Civil, tem pressupostos muito restritivos apenas sendo excepcionalmente admitido o recurso quando: a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito; b) Estejam em causa interesses de particular relevância social; c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme. Ora, tirando o caso referido na alínea c), a verdade é que estes pressupostos são extremamente indeterminados, o que praticamente coloca na discricionariedade do próprio Supremo Tribunal aceitar ou não os recursos que lhe são dirigidos. Mas para além disso cabe perguntar porque razão o direito de acesso de um cidadão ao nosso mais alto Tribunal numa acção de elevado valor deve ficar dependente da relevância jurídica da questão ou da relevância social dos interesses em causa. O acesso ao direito e aos tribunais, que inclui naturalmente o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, não será só por si razão suficiente para justificar que o nosso sistema de justiça lhe assegure o direito ao recurso?

Infelizmente é hoje voz comum que a nossa Justiça se apresenta como distante e inacessível aos cidadãos, encontrando-se por isso com muito má imagem. Por outro lado, as elevadas custas judiciais desincentivam os cidadãos de recorrer à justiça. Por isso ao menos que não lhes seja vedado o direito a recorrer das decisões que discordam até ao nosso mais alto Tribunal.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990