Permiti que comece esta conversa com uma evidência: a crónica é o género jornalístico onde quem escreve mais se revela. Não por acaso isso torna-a, nos melhores momentos, na mais literária das modalidades praticadas em jornal. E há tanta gente que o pode provar, que deixou obra e legado: os mestres brasileiros como Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues ou , mais por cá, Carlos Pinhão ou Baptista-Bastos, para ficar só no século XX. Os cronistas desta estirpe são poetas do quotidiano, sujeitos a prazos apertados mas atentos às pequenas coisas porque são essas as que nos levam ao que é maior do que nós e universal.
O Afonso de Melo pertence, por mérito próprio, a este grupo. Esta nova colecção das suas crónicas anacrónicas – e anacrónicas porque fora deste tempo e tantas vezes contra o tempo e contra mundum – são mais uma prova, se provas fossem necessárias, do amor e mestria com que o Afonso navega nestas águas por vezes traiçoeiras.
Neste livro poderemos encontrar os perfis extraordinários de grandes figuras, trágicas ou heroicas, que o Afonso nos habituou a ler no jornal: Maradona, Garibaldi, Vitor Oliveira, John Lennon e tantos outros que são tratados com carinho e memória, como se o autor nos convidasse a entrar na sua galeria pessoal. Isso é ainda mais evidente quando escreve sobre personagens como Billy The Kid ou Bonnie & Clyde, marginais românticos e voluntários que estão muito próximos do coração do cronista.
Mas o que esta colecção nos traz, por vezes de forma dura e dolorosa, é o cronista descarnado, sem defesas, em plena dor. Entre as crónicas são escritos pequenos adágios , às vezes de uma tristeza insuportável outras feitas de um grito mudo e impotente. É preciso coragem, na minha opinião, para fazer este exercício público. É uma escrita mais do que à flor da pele: é a flor do nervo, com tinta de lágrimas.
Não é fácil este confronto do ponto de vista de quem lê. Saímos por vezes magoados, impotentes perante aquela dor. Este livro, avisa-se, tem fantasmas. Muitos. A morte e a perda aparecem ao longo destas páginas como uma melodia soturna e recorrente. Mesmo as grandes figuras retratadas têm algo em comum: são maiores do que a vida mas sempre menores do que a morte.
Não deixa, no entanto, de haver luz e esperança. Através da sua geografia afectiva – Águeda, Alcacer, o Bairro Alto, este lugar mesmo onde nós estamos – o Afonso encontra o refúgio e a solução possível e eterna: a da amizade e da memória. Este lugar a que o título alude – o que fica à esquerda do Bojador – é a Índia, santuário e paraíso terrestre para o autor. E passa a sê-lo para nós também, que como ele sentimos esta coisa absurda da finitude e dos negrumes que todos por vezes atravessamos.
Viajante por urgência, diz o Afonso a página incerta: “Preciso urgentemente da viagem, não importa o destino.” Embarquemos com ele e enfrentemos as tempestades, que as nuvens se dissiparão à força de estarmos juntos.