1. Há coisas que são demais. É o caso das falhas no hospital de Faro. Um corpo trocado e cremado por erro. Alguém entra, sai e volta às urgências e acaba por morrer sozinho numa casa de banho. São situações que vão para além da compreensão, das falhas naturais de um sistema público ou privado de saúde. Quando se multiplicam casos tão tristemente caricatos é porque os alicerces se desfazem. Já nada se resolve com retoques e tiradas demagógicas. Cada vez mais, o SNS (e mesmo a saúde privada) está a rebentar pelas costuras ainda que contenha casos excecionais de capacidade humana e técnica. Além dos casos limite, há algo que se instala em cada um dos portugueses, esteja na saúde pública ou na privada: o medo de ficar doente e à mercê de um sistema que está ele próprio a entrar em falência de órgãos. Quem nos protege?
2. E quem acode a milhares de imigrantes económicos que estão atirados para a rua sem apoios, depois de terem sido enganados por redes de traficantes que montam bancas de atendimento, traficam vagas de agendamento por dinheiro gordo nas barbas do SEF e de um Governo incompetente, passivo ou cúmplice? Parte o coração ver que muitos dos enganados são de Timor, a favor de cuja independência os portugueses saíram à rua há uns anos, para limpar a vergonha de uma descolonização não pedida que gerou caos e morte. A situação dos migrantes mostra a leviandade de um Estado que agora procura tratar tudo à distância, por agendamento. A paranoia chega à exigência de exigir agendamento para um eletrocardiograma urgente pedido num hospital de Lisboa de um serviço para o outro, quando o de cardiologia estava deserto. Agendamento e teletrabalho são novas e sofisticadas formas de opressão burocrático-administrativa.
3. Como previsto, o caso Miguel Alves acabou com a inevitável demissão do braço direito do primeiro-ministro. De repente apareceu uma oportuna acusação por prevaricação que o empurrou definitivamente para fora do Governo, onde ele teimava em arrastar-se e de onde Costa não o podia tirar sozinho, depois de tantos anos de vida política comum. Costa esvaziou o balão antes da comissão política do PS e segue a banda. Miguel Alves vai passar pela tormenta de quem cai nas mãos da Justiça. Pode ficar meses, anos ou até morrer sem que o processo seja fechado de vez, condenado ou inocentado. Casos não faltam: Sócrates, Pinho, Mexia e muitos outros que têm vidas suspensas. Não é demais repetir que uma justiça lenta favorece os culpados e destrói inocentes. Seja como for, quem tem funções políticas tem de lidar com as situações com dignidade quando a justiça lhe bate à porta. Raramente acontece. Viu-se com a resistência ridícula de Miguel Alves. Já Rodrigo Gonçalves, do PSD, fez o contrário quando foi objeto de uma investigação altamente mediatizada. Figura influente e estratégica no aparelho de Lisboa, não hesitou em suspender as suas funções na comissão política nacional do PSD, apesar de nem arguido ser. Ficou-lhe bem.
4. Munido do cartão do PS, do canudo de Bolonha e dos enciclopédicos conhecimentos que a coisa confere, o jovem Tiago Cunha (faz jus ao nome) foi contratado aos 21 anos por 3.800 euros, três meses depois de terminar a formação, para assessor da ministra Mariana Vieira da Silva. Esta afirmou-se surpreendida com o rebuliço político-mediático que a coisa provocou. Numa genial intervenção, a ministra assegurou que a contratação nada tinha a ver com a circunstância do Cunha ser do PS. Na verdade, o problema até podia não estar aí, porque o que seria estranho era ele ser do PSD ou do Chega. Se houvesse ainda geringonça podia não ser, se o tachinho tivesse sido acordado entre todos. Percebe-se a surpresa da jovem ministra. Para ela, a contratação era mais do que normal e um primeiro passo. É até possível que ele chegue a ministro também. Afinal, Mariana (mais um produto ISCTE) apenas trabalhou um tempinho na área social onde o paizinho dava cartas e onde arranjou um lugar de recuo. Mas a carreira política, essa, foi feita em gabinetes ministeriais e sempre a subir até número dois do Governo. Para Mariana é normal que assim seja. A vida profissional e a experiência no terreno no lado civil ou no Estado não é determinante. O caso Cunha é exemplar. Quando lhe falaram de Tiago, Mariana deve ter descoberto óbvias afinidades. Afinal: “Se grasna como um pato. Se nada como um pato. Se voa como um pato. É porque é um pato”. Raríssimas coincidências, dirão alguns.
5. Há uns meses a magnífica e caríssima lancha de patrulhamento de costa da GNR (compra que escandalizou a marinha de guerra) encalhou junto a Carcavelos num exercício de formação. Agora foi um semirrígido voador da corporação que foi roubado no Algarve. Foi chamada a PJ para investigar o caso!!! A vocação marítima da GNR não parece evidente. O melhor era manter a tradição rural, a cavalaria, o hipismo e a fabulosa charanga, única no mundo. E a seguir transferiam-se as competências para uma entidade mais vocacionada, como a Polícia Marítima, que poderia ser adaptada a essa função. Talvez Gouveia e Melo pudesse tratar do assunto com alegria.
6. A propósito do Almirante, veio mesmo a calhar para os seus alegados desígnios a ideia peregrina do PSD de transformar o mandato presidencial num septenato único e não repetível (mais surrealista só o voto aos 16 anos). É a prenda ideal para qualquer independente ou para populistas. Um septenato torna muito complicado o exercício do contrapoder. Nos bastidores sussurra-se que a ideia foi da mesma figura que inventou um órgão absolutamente inútil que está no topo das decisões da RTP, o CGI -Conselho Geral Independente. De independente tem pouco e de efeitos práticos tem coletivamente zero, apesar de integrar gente de qualidade. Bons jogadores não fazem uma equipa.
7. O ministro Pedro Adão e Silva decidiu, entretanto, constituir uma comissão para escrever um livro branco que defina o Serviço Público de Rádio e Televisão (SP). A equipa tem figuras de qualidade, mas a tarefa uma espécie de quadratura do círculo. Há mais de cem anos que se tenta sem sucesso definir o SP, concretamente desde a criação da BBC, que é a coisa mais parecida que há do conceito. Há, porém, algo que se sabe: é o que não é Serviço Público. Por exemplo, SP não é ignorar durante uma noite inteira as eleições intercalares americanas em que o trumpismo tentava regressar e tomar conta do país mais importante do mundo. Lamentavelmente, a RTP (tal como a SIC) não acompanhou a noite com um especial nem com nada. A CNN/Portugal fez as vezes. Depois admiram-se que haja quem defenda a concessão do SP a privados e não a empresas de capitais públicos.
8. Paulo Raimundo foi entronizado no PCP. É mais um chefe de secretaria do que um secretário-geral. Tem menos carisma do que Carvalhas, o que parecia impossível. Mas é um ortodoxo à antiga soviética. Ao pé dele, Jerónimo com a sua bonomia dava ares de neoliberal passista. Mesmo assim, admitiu à RTP que Putin também tem culpas na guerra e não se limitou à lengalenga da NATO e da procura da paz. Internamente, PCP segue a lógica implacável do “mais vale quebrar que torcer”. Em França, o PCF usou provérbio oposto “faire comme le roseau: il plie mais ne rompt pas” (fazer como o caniço que dobra, mas não parte). Já não existe PCF! Vamos ver quanto dura o PCP.
Escreve à quarta-feira