Era como ter gregor samsa dentro da boca. Lembram-se? “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se na sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. Por estas e por outras é que Kafka era Kafka e ninguém houve mais kafquiano do que o próprio Kafka. Ou seja, em português das docas, “não tinha maneiras”, enfiava-nos pelas goelas tudo o que havia de mais horrendo na literatura logo na primeira frase e, depois, ia por aí adiante até nos fechar num labirinto de personagens paranóicas, nevróticas e esquizofrénicas.
Eu poderia começar uma crónica com esta frase: “Em determinada noite acordei de sonhos intranquilos com o ruído de um dente a crescer”. E como cresceu, o maldito! Um molar superior. Aproveitando o vazio deixado em baixo por um companheiro entretanto arrancado, ocupou-lhe o espaço como se fosse, sei lá!, um gigantesco escaravelho, se quiserem… Não demorou muito a tocar a gengiva inferior e a provocar-me maleitas na parte interna da bochecha do lado direito. Ao contrário da maior parte da Humanidade, gosto de ir ao dentista. O dr. Israel foi, durante vários anos, o único homem capaz de me manter meia-hora de boca aberta sem dizer uma palavra. Agora resolveu reformar-se e fez ele muito bem, deve haver um limite para o suportar de cáries e halitoses na vida de cada um de nós.
Ele teve a sua parte e não foi pequena, que goze o merecidíssimo descanso. Já a minha boca, entregue a novas e competentes mãos, vivia o tormento desta metamorfose de um mero molar que deve ter lido algures a história do sapo que queria ser boi. E, assim sendo, houve que extirpá-lo. Não doeu porque nesta altura da minha vida em que carrego no peito a dor de um pai morto, já nada sobra para doer, muito menos nas gengivas. Vi-o já cá fora, extraído com perícia. Sim, apesar de ensanguentado, pareceu-me igualzinho a um insecto monstruoso. Como Gregor. O facto de não ter sentido nada deve-se à minha metamorfose. Talvez seja, nos dias que correm, nada mais do que um escaravelho…