A escalada de tensão em torno da central nuclear de Zaporíjia, a maior na Ucrânia e no continente europeu, voltou a fazer soar alertas na comunidade internacional para o risco de uma guerra num país com uma infraestrutura nuclear de grande dimensão. O secretário-geral da ONU, António Guterres, fala de uma “missão suicida”. No terreno, os técnicos ucranianos que avaliam a segurança da rede não escondem a preocupação. Ao telefone com o i dos escritórios do centro estatal ucraniano para a segurança nuclear e radioativa, Dmytro Gumeniuk, engenheiro nuclear responsável pelo departamento de análise do SSTC NRS, insiste que se está perante “terrorismo nuclear” e acusa a Agência Internacional de Energia Atómica, que este fim de semana reconheceu que se está a brincar com o fogo em Zaporíjia, de passividade nos últimos meses.
Este é o ataque mais crítico desde o início da guerra?
Sim, creio que é a situação mais crítica em termos de segurança nuclear desde o início da guerra.
Pode descrever o que aconteceu na central nuclear de Zaporíjia nos últimos dias?
Como se sabe, desde 4 de março os militares russos ocuparam a central nuclear de Zaporíjia. Durante um período estiveram simplesmente lá sem fazer nada. Há cerca de duas semanas, começámos a ter relatos de que começaram a colocar minas e bombas em torno do perímetro da central e na semana passada levaram máquinas de guerra para dentro do campus, para perto do edifícios de turbinas da unidade 1. Este edifício está localizado perto desta unidade de produção de energia.
Estão a disparar dentro do perímetro da central?
Não na zona de contenção dos reatores nucleares mas nos edifícios adjacentes, onde estão tubagens de vapor que são necessárias para o arrefecimento do reator e para a ligação de energia à rede. Em caso de explosão, é possível haver estragos nestas tubagens e o arrefecimento do reator pode perder-se, o que pode atingir o combustível nuclear e levar à libertação de contaminantes radioativos para o ambiente. Na última sexta-feira os militares russos atingiram a central, começaram a disparar de várias zonas e parte da rede elétrica foi danificada. A cidade de Enerhodar, que é uma cidade satélite da central, ficou sem eletricidade e sem água durante várias horas e além disso houve ataques dirigidos a edifícios da cidade. No domingo, um dirigente russo disse que a central tinha sido construída pelos russos e que por isso os russos vão permanecer em Zaporíjia e que irão disparar caso haja alguma tentativa dos ucranianos de tentar desocupar este território. Portanto temos uma situação muito delicada e para mim muito preocupante. Uma central nuclear não é um lugar para jogos e combates. Neste momento, para mim, não é claro como é que os russos vão prolongar esta situação e também não consigo perceber como é que a Agência Internacional de Energia Atómica (IAEA) não tem apoiado o lado ucraniano no que toca a garantir a segurança destas instalações.
No início da guerra o regulador ucraniano pediu garantias de que equipas técnicas independentes pudessem estar nas centrais. Isso não tem sido assegurado?
Muitos trabalhadores da central têm tentado fugir de Enerhodar para locais mais seguros. Segundo os relatos que tenho, cerca de 30% dos trabalhadores deixaram esta área e torna-se problemático ter gente suficiente para garantir a operação da central em segurança.
Veem sinais de contaminação nuclear?
Neste momento não vemos. As unidades que estão a funcionar e as unidades em manutenção estão estáveis e não vemos sinais de fuga de material radioativo por isso não temos sinais de contaminação, mas é possível caso estes jogos estúpidos das tropas de Putin continuem no perímetro na central. Na última semana houve pelo menos três situações de disparos contra instalações na central Zaporíjia. Se continuarem a fazê-lo, poderá haver danos em infraestruturas críticas, seja em edifícios ou redes, que possam levar a um acidente radioativo.
Em caso de acidente, quão vasto poderá ser o impacto? Em que projeções têm estado a trabalhar?
É uma questão muito difícil porque depende do número de unidades danificadas. Há seis unidades na central de Zaporíjia e uma unidade de armazenamento de combustível usado. Por exemplo, danos numa unidade poderiam levar a consequências como o acidente de Fukushima ou Chernobil. Se forem danificadas as seis unidades, temos seis Fukushimas ou seis acidentes como Chernobil. No pior cenário, na minha opinião, uma grande parte da Europa podia ser afetada.
Na Roménia, a mais de mil quilómetros da central, a população está a ser aconselhada a comprar comprimidos de iodo. É necessário?
Depende do desenvolvimento da situação. A minha opinião é que neste momento não é necessário. Mas comprámos comprimidos de iodo para todo o staff do SSTC NRS e respetivas famílias.
Os russos estão a acusar a Ucrânia dos ataques a estas centrais. Tem informação de operações de milícias?
Não tenho informações sobre isso. Para o nosso instituto o que existe neste momento é uma enorme preocupação. Os meus colegas estão no centro de crise que está a monitorizar toda a situação e o que tentamos fazer é previsões do que pode acontecer, o que se torna muito difícil quando se podem colocar problemas muito diferentes, depende também das condições atmosféricas. Agora a convicção é que no pior cenário, se houvesse danos em toda a central, temos uma situação grave, o que se torna provável tendo em conta toda a atividade bélica à volta.
Tem alertado para o risco nuclear desta guerra desde o início. A Agência Internacional de Energia Atómica mostrou preocupação mais uma vez depois destes incidentes em Zaporíjia. Visto daí, parece-lhe que tem havido ação suficiente em evitar um acidente desta natureza?
É uma boa pergunta. Na minha opinião a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) tem tido uma postura bastante passiva. Penso que deveriam ordenar uma retirada russa da central. Não o fazem porque há muitos russos a trabalhar na AIEA. Ao mesmo tempo penso que é muito difícil falar com as tropas russas em Zaporíjia e por isso seria impossível ordenar-lhes que desocupassem as instalações. Putin e o seu exército estão a usar a central de Zaporíjia como um escudo nuclear na guerra contra a Ucrânia. É uma forma de terrorismo nuclear e nós somos vítimas.
Há baixas entre os trabalhadores desta e outras centrais?
Vários colegas continuam a trabalhar, outros tentaram fugir. Quem lá está diz que a situação tem-se agravado com uma pressão psicológica sobre o staff, que está diminuído. Na sexta-feira e no sábado ficaram sem eletricidade, sem água e isto não são condições adequadas para estar a trabalhar.
Só isso aumenta o risco de um acidente ou erro.
Exato.
Vê que soluções?
A melhor solução seria o exército russo desocupar a central. Outra solução que penso que seria boa era Putin ordenar os militares a deixar os engenheiros ucranianos operarem a central em segurança, mas está tudo demasiado instável e pouco claro. Não consigo prever o que se vai passar a seguir.
Estão em guerra há mais de cinco meses. Muitos ucranianos fugiram, muitos morreram e muitos como o Dmytro ficaram, e além dos seus trabalhos têm sido voluntários. Qual é o estado de espírito neste momento?
É muito difícil, é como diz, muitos fugiram, muitos de nós ficámos a trabalhar para o nosso exército e para a nossa vitória. Não consigo explicar o que sinto, só dizer que acredito no nosso exército e na nossa vitória. E que se perdermos não será apenas a Ucrânia a perder esta guerra mas toda a Europa e todo o mundo. A Ucrânia não é o destino final do sr. Putin. Polónia, Lituânia e outros países serão os seguintes. É necessário pôr fim a esta guerra na Ucrânia, ganhá-la. Muitas pessoas têm regressado à Ucrânia para combater e tentamos fazer o melhor pela vitória.
Do voluntariado que tem feito junto das comunidades na zona de Kiev, sente falta de algum apoio em particular?
Neste momento a situação na minha região tem estado bastante calma. As principais necessidades são de pessoas que perderam as suas casas. Noutras zonas como Kharkiv ou Mykolaiv, que continuam diariamente debaixo de ataque, o que precisam mesmo é de proteção contra a Rússia, eventualmente alguns medicamentos. Não estou muito familiarizado com as necessidades específicas na frente da guerra, mas neste momento o que mais precisamos é de vitória e para isso precisamos de apoio internacional com armamento.