A sociedade do “gostável”


“Gostável”, aliás, é a palavra-chave da nossa atualidade, com o inerente terror de ir contra a corrente e de ter dezenas, centenas, milhares ou milhões de polegares para baixo.


Cada vez é mais difícil o pensamento complexo, seja a respeito do que for, geoestratégia, sociedade, cultura, saúde, economia, afetos, et cetera – a respeito de tudo, diria. Imperam a velocidade e a avalancha de dados (frequentemente inexatos e/ou parcelares) e de opiniões, a tal ponto que tudo se tende a tornar simplificado, superficial e redutor, e muitas vezes tendencialmente totalizante, numa lógica esquemática e esquálida de bom-mau, a favor-contra, aplaude-critica, incensa-arrasa. Qualquer tentativa de aprofundar e complexificar a análise (quando se está a instalar ou já está instalada uma “verdade’) esbarra num coro ululante de críticas (uma espécie de barragem contra a problematização e o alargamento dos horizontes do pensamento), que podem mesmo chegar ao “cancelamento” do autor de qualquer opinião que procure fugir ao preto-e-branco simplista e eufórico a que tudo tende a ser reduzido. O fenómeno não é de agora, mas tende a acentuar-se numa sociedade global assente no mediatismo intenso (o tradicional e o das redes sociais) e no poder inebriante das imagens, do lugar-comum e da irresistível necessidade de ter opinião rápida, simples e “gostável”, e também de ver e ouvir muitas opiniões no mesmo sentido (em sentido contrário é que não).

“Gostável”, aliás, é a palavra-chave da nossa atualidade, com o inerente terror de ir contra a corrente (sobretudo para quem é figura pública, de político a artista) e de ter dezenas, centenas, milhares ou milhões de polegares para baixo, como se morrer ou viver nesta moderna arena romana não fosse já prerrogativa do imperador, mas do clamor das maiorias contextuais. E isso leva normalmente a uma de duas atitudes: o torpor, ficando calado, ou o estupor, seguindo o rebanho ruidoso, dizendo amen acriticamente às proclamações do momento, amiúde sem pensar muito nelas, e sem olhar para trás ou para a frente.

E nem estou propriamente a criticar, a lamentar ou a expressar a nostalgia de outros tempos. Estou apenas a constatar. É assim, as simple as that. E é cada vez mais. Claro que cabe chamar a atenção, cabe questionar, denunciar se for o caso, lutar contra se se achar que se deve, mas – passe o possível derrotismo – servirá de pouco. É assim, e há que saber que é assim. Vê-se isso todos os dias, resta pouco espaço para tentar furar ou saltar o muro do “já está”, polegar para cima, polegar para baixo, apoio, não apoio. Toda a gente sabe tudo, toda a gente está em tudo (embora não mais do que uns minutos), toda a gente já decidiu tudo, e ai de quem meta a cabeça de fora e pergunte “será bem assim?”. E muitas vezes é mesmo assim, e questionar até acabaria na confirmação e no reforço do tema, mas a rapidez e a superficialidade com que se decreta e sentencia só empobrecem e desvalorizam as questões importantes, pois tratando tudo da mesma maneira, fazendo equivaler frivolidades e geoestratégia, emparceirando entretenimento com temas sociais importantes, et cetera, tudo se banaliza, iguala, indiferencia e, assim, menoriza. É como se, parafraseando Francisco José Viegas numa entrevista, uma pessoa comesse quinoa e logo inaugurasse o ativismo sobre esse grão – sobretudo, digo eu, se postar a refeição.
 
Escreve quinzenalmente à sexta-feira

A sociedade do “gostável”


“Gostável”, aliás, é a palavra-chave da nossa atualidade, com o inerente terror de ir contra a corrente e de ter dezenas, centenas, milhares ou milhões de polegares para baixo.


Cada vez é mais difícil o pensamento complexo, seja a respeito do que for, geoestratégia, sociedade, cultura, saúde, economia, afetos, et cetera – a respeito de tudo, diria. Imperam a velocidade e a avalancha de dados (frequentemente inexatos e/ou parcelares) e de opiniões, a tal ponto que tudo se tende a tornar simplificado, superficial e redutor, e muitas vezes tendencialmente totalizante, numa lógica esquemática e esquálida de bom-mau, a favor-contra, aplaude-critica, incensa-arrasa. Qualquer tentativa de aprofundar e complexificar a análise (quando se está a instalar ou já está instalada uma “verdade’) esbarra num coro ululante de críticas (uma espécie de barragem contra a problematização e o alargamento dos horizontes do pensamento), que podem mesmo chegar ao “cancelamento” do autor de qualquer opinião que procure fugir ao preto-e-branco simplista e eufórico a que tudo tende a ser reduzido. O fenómeno não é de agora, mas tende a acentuar-se numa sociedade global assente no mediatismo intenso (o tradicional e o das redes sociais) e no poder inebriante das imagens, do lugar-comum e da irresistível necessidade de ter opinião rápida, simples e “gostável”, e também de ver e ouvir muitas opiniões no mesmo sentido (em sentido contrário é que não).

“Gostável”, aliás, é a palavra-chave da nossa atualidade, com o inerente terror de ir contra a corrente (sobretudo para quem é figura pública, de político a artista) e de ter dezenas, centenas, milhares ou milhões de polegares para baixo, como se morrer ou viver nesta moderna arena romana não fosse já prerrogativa do imperador, mas do clamor das maiorias contextuais. E isso leva normalmente a uma de duas atitudes: o torpor, ficando calado, ou o estupor, seguindo o rebanho ruidoso, dizendo amen acriticamente às proclamações do momento, amiúde sem pensar muito nelas, e sem olhar para trás ou para a frente.

E nem estou propriamente a criticar, a lamentar ou a expressar a nostalgia de outros tempos. Estou apenas a constatar. É assim, as simple as that. E é cada vez mais. Claro que cabe chamar a atenção, cabe questionar, denunciar se for o caso, lutar contra se se achar que se deve, mas – passe o possível derrotismo – servirá de pouco. É assim, e há que saber que é assim. Vê-se isso todos os dias, resta pouco espaço para tentar furar ou saltar o muro do “já está”, polegar para cima, polegar para baixo, apoio, não apoio. Toda a gente sabe tudo, toda a gente está em tudo (embora não mais do que uns minutos), toda a gente já decidiu tudo, e ai de quem meta a cabeça de fora e pergunte “será bem assim?”. E muitas vezes é mesmo assim, e questionar até acabaria na confirmação e no reforço do tema, mas a rapidez e a superficialidade com que se decreta e sentencia só empobrecem e desvalorizam as questões importantes, pois tratando tudo da mesma maneira, fazendo equivaler frivolidades e geoestratégia, emparceirando entretenimento com temas sociais importantes, et cetera, tudo se banaliza, iguala, indiferencia e, assim, menoriza. É como se, parafraseando Francisco José Viegas numa entrevista, uma pessoa comesse quinoa e logo inaugurasse o ativismo sobre esse grão – sobretudo, digo eu, se postar a refeição.
 
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