Em 2022 passam 100 anos de estudos sobre a descoberta do túmulo de Tutankhamon, por Howard Carter, e 200 sobre a decifração dos hieróglifos por Champollion. Imagino que a importância destes dois acontecimentos para o conhecimento do Egipto seja absolutamente fundamental. Foram, para parafrasear Neil Armstrong quando chegou à Lua, saltos gigantes para a egiptologia?
Foram acontecimentos tão marcantes que há quem considere que a egiptologia nasce com o deciframento dos hieróglifos. É um acontecimento absolutamente essencial, porque a partir daí começamos a ter acesso a toda uma informação sobre o Antigo Egipto que doutra forma nunca conseguiríamos perceber. Champollion acabou por conseguir fazer esse deciframento às cavalitas de outros. Não acordou um dia e disse: ‘Já sei como se decifram os hieróglifos’. Houve muitos outros europeus, e também estudiosos árabes, que se dedicaram a isso. Champollion apoia-se nos estudos feitos por outras pessoas. E acaba por descobrir a chave para a tradução, que é um marco incontornável. E Tutankhamon, claro, também é importantíssimo porque é o primeiro túmulo de um monarca egípcio encontrado praticamente inviolado. Houve pelo menos duas tentativas de ladrões que conseguiram entrar e roubar algumas coisas, mas é o mais perto que temos de um túmulo inviolado. Deu-nos a conhecer muito sobre as práticas funerárias dos monarcas dessa época, do princípio do Império Novo. É uma fonte de informação absolutamente fabulosa, com um estado de preservação das peças absolutamente fantástico e, claro, um trabalho muito, muito detalhado feito por Howard Carter, que na altura era excepcional. Demorou praticamente dez anos a escavar o túmulo de Tutankhamon. Isto deveu-se à sua minúcia e atenção ao detalhe que na altura eram bastante inovadores. Carter teve o cuidado de fotografar cada objeto individualmente, quase como se fosse uma cena de um crime. Antes de ser retirado, cada objeto era numerado, fotografado, parecia quase um procedimento policial. São dois marcos fantásticos.
Quando é que se perdeu o código de decifração dos hieróglifos? Imagino que no tempo de Júlio César e Cleópatra essa chave ainda fosse conhecida.
A última inscrição hieroglífica que nós temos data do século quarto depois de Cristo. É uma inscrição no templo de Philae, que é dedicado à deusa Iset [ou Ísis], feita em honra ao deus Mandulis, um deus Núbio. E está datada. Mais ou menos por volta desta época, o imperador romano Teodósio [final do século IV] manda fechar os templos pagãos. Tudo o que não é cristão tem que acabar, e fecham-se os templos do Egipto. Por essa altura a língua falada era o copta, e além do copta falava-se grego, latim, aramaico. O egípcio hieroglífico já não era falado e não era utilizado para escrever. Quem detinha o conhecimento dessa língua eram só os sacerdotes. Calcula-se que o fecho dos templos egípcios e o desaparecimento progressivo dos sacerdotes terão levado no século IV ao desaparecimento desse conhecimento. E depois o copta acaba por ser a chave para o deciframento.
É difícil aprender a ler hieróglifos?
Muito honestamente, nos primeiros dois anos acho que não sabia muito bem aquilo que estava a fazer. Só a partir do terceiro ano a estudar hieróglifos egípcios é que comecei a perceber melhor aquilo que estava a passar. E enfim, agora já há dez anos que estudo hieróglifos e dou aulas, também – dei três anos na Universidade de Harvard e dou um curso intensivo de verão de Introdução ao Egípcio Hieroglífico, na Universidade Nova de Lisboa. E aquilo que me parece, após dez anos a trabalhar com esta língua, é que ainda sei pouco. É uma língua muito complexa, especialmente por causa da escrita.
E vale a pena esse esforço todo?
Vale mesmo muito a pena. Acho que a maior parte dos alunos chega a pensar: ‘Ok, quão difícil isto é de facto? São passarinhos, crocodilos, não deve ser assim tão difícil’. E isto acontece em todo o lado. Quando eu ensinei na Universidade de Harvard era a mesma coisa. Os meus alunos chegavam todos contentes. ‘Passarinhos e crocodilos? Não pode ser assim tão complicado’. Depois, quando começamos a falar sobre a língua, de repente a pessoa apercebe-se da complexidade. E aí já diziam: ‘No que me fui meter…’. É difícil, mas vale tanto a pena! É uma língua fascinante. A parte visual acaba por nos dar informações a que não conseguíamos chegar só pela escrita. E, quando temos a possibilidade de ler estas fontes escritas em primeira mão, é quase como se tivéssemos uma pessoa do Antigo Egipto a falar connosco. É fantástico.
Tutankhamon, de quem falámos, morreu muito jovem. Mesmo não tendo sido um faraó muito marcante, foi sepultado com um tesouro fabuloso. Só a máscara funerária pesa mais de dez quilos em ouro. Podemos supor que todos os túmulos dos faraós eram igualmente sumptuosos?
Eu acho que até mais, se pensarmos que Tutankhamon era um rei muito jovem, que reinou pouco tempo – deve ter reinado cerca de uma década, não sabemos bem. Aquilo que vemos no túmulo dele é que foi apetrechado um pouco à pressa, porque ninguém estava a contar que ele fosse morrer tão cedo. Morreu com 19, 20 anos, muito jovem, portanto acabou por receber um túmulo preparado um pouco à pressa. Se imaginarmos um monarca como Amenhotep III, que tinha um império absolutamente grandioso, e que reinou durante décadas e viveu até uma idade muito avançada, podemos supor que a quantidade de equipamento funerário e de materiais preciosos seria o dobro ou o triplo da de Tutankhamon. Nem me atrevo a imaginar! E isso é que acaba também por fascinar tanta gente. É que Tutankhamon foi um rei que não fez grande coisa, e mesmo assim já recebeu tanta riqueza no seu túmulo. Provavelmente esse é um dos motivos pelos quais pouco sobrou dos outros túmulos, que foram todos violados durante a Antiguidade. Tutankhamon pode ter escapado precisamente por, de certa forma, ter um túmulo tão pequenino. [risos]
Imagine que estava a falar com uma pessoa que ia ao Egipto nas férias. O que a aconselharia a não perder?
Para começar, não pode mesmo perder as pirâmides. Sempre que volto lá, subo ao Planalto de Guiza e parece que é a primeira vez que estou a ver aqueles monumentos. Não há volta a dar. Mas também recomendaria que fossem a Assuão, uma cidade que não é muito visitada. Frequentemente as pessoas ficam-se por Luxor e só passam por Assuão quando fazem os cruzeiros, e é um pouco de passagem. Mas eu adoro Assuão, acho que vale muito a pena visitar a cidade em si e, claro, os monumentos egípcios à volta. Dentro da cidade há a ilha de Elefantina. Era a fronteira, o Egipto acabava ali e depois começava a Núbia, que é o atual Sudão. A ilha de Elefantina tem templos e uma cidade do Império Antigo, a altura da construção das grandes pirâmides. Pode-se visitar este complexo, esta cidade, estes templos e um museu ao ar livre também muito interessante. Portanto, vale a pena passar lá uns tempos. E se alguém gostar da Agatha Christie, que é uma das minhas autoras favoritas, há o Old Cataract Hotel, que é o hotel onde ela costumava ficar. E podem até ficar no quarto onde ela costumava dormir…
Por um preço exorbitante, claro.
Mas se tiverem a possibilidade e assim o quiserem, acho muito bem que o façam. [risos] É um hotel muito bonito, que mantém o espírito do princípio do século XX e tem uma vista lindíssima sobre o rio Nilo. Assuão está no meu top de sítios para visitar no Egipto.