Um vómito de absurdo ruído entra-me pela janela da varanda e emporcalha tudo em redor, paredes e respetivos quadros, máscaras orubas, um ídolo da terra dos buriates, espalha-se pelo soalho e devora os bronzes do Benin, os iaques nepaleses, os modelos de veleiros, os baús indianos, as garrafas de whisky que já não bebo e só ofereço, os livros mais grossos que empilho no chão à mistura com pastas de recortes de jornais antigos, o tapete que veio um dia de Bukhara… Enfim, um nojo que se infiltra por todo o lado e se me cola aos ouvidos, pegajoso, mole como uma lula ao fim de três dias na areia espapaçada ao sol, uma violação revoltante do sossego, um estilhaçar criminoso da quietude que ainda há pouco pairava sobre o rio, levando os pássaros, apavorados, para um lugar qualquer para lá do céu. Sinto-me Antoine Roquentin, convencido que esta náusea não tem fim, pelo contrário, irá ser preciso muito tempo para que possa determinar exatamente a natureza desta alteração súbita do pequeno universo que me rodeia. Só se escondem por detrás do excesso de barulho os seres mais básicos da natureza, aqueles que reagem às pancadas brutas do som na terra por mero efeito do tropismo. A sensação é de total impotência. A agressão não me rebentou os dois tímpanos porque um deles há muitos anos foi perfurado por uma otite. O jorro infeto já nem sequer me provoca a revolta merecida porque me paralisa essa dimensão da estupidez de quem bolça tamanha porcaria, se calhar até com satisfação mal contida. Ouço, pelo meio, uns berros animalescos, uns palavrões que ecoam pelas vielas até ao castelo, lá no alto, provavelmente até Deus os ouve, na sua tão preguiçosa inexistência. Sacha Guitry tinha uma frase maravilhosa: “O que mais gosto na música de Mozart é que o silêncio que se lhe segue também é de Mozart”. São três horas da manhã. O silêncio que se segue ao vómito é um silêncio morto. Exangue depois de ter sido barbaramente assassinado.
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