Contos de homens sós numa noite de verão

Contos de homens sós numa noite de verão


A Quinta da Ribafria, em Sintra, recebe até 27 de agosto Um Homem Sozinho não faz um Exército, contos de Anton Tchekhov com encenação de Sérgio Moura Afonso. Histórias sobre natureza humana na calma aparente da noite.


O cenário é o da Quinta da Ribafria, em Sintra, entre o som de cigarras, o chilrear dos pássaros na noite e um aroma a tília ou cidreira. Num jogo de luzes,  três atores dão corpo e voz à encenação a partir de três contos do escritor russo Anton Tchekhov, que ficou conhecido como psicólogo da natureza humana e um dos escritores mais imagéticos do seu tempo, tão atual hoje como no final do século XIX.  

Um cocheiro sozinho, um fazendeiro rico e a sua mulher e a menina-criada Varka que, por ser pobre, não pode adormecer. 

São as personagens de Um Homem Sozinho Não Faz um Exército, encenação de Sérgio Moura Afonso, em cena desde o início de julho e até 27 de agosto, todas as sextas e sábados às 21h30 nesta propriedade do século XVI na Várzea de Sintra.

Um texto que quebra a calma da noite, que também ali tem estado quente, e que se remete para a guerra tão atual, é das guerras interiores e do conflito quotidiano entre homens e mulheres, que por vezes nem se veem, que fala. 

“Três atores, três personagens, três narradores presentes que nos transportam para dentro de uma realidade moscovita do final do século XIX, mas que na verdade está ainda bem presente, infelizmente, nos nossos dias. A fome, a miséria, a misoginia, o controlo psicológico, a sedução das palavras, o populismo e apatia generalizada que nos remete para uma ideia de conforto que não só é enganadora como reconfortante para que não haja qualquer possibilidade de um confronto com o nosso espelho”, apresenta o encenador e diretor da associação cultural Capítulo Reversível no programa.  

“Tchekhov teve como propósito escrever tragicomédias que de certa forma expusessem e ridicularizassem os costumes, a política e a sociedade da época. No entanto com o crescimento do teatro moderno começou a sobressair o psicologismo das personagens que nos remete nos dias de hoje para uma tragédia sem deixar perceber a ironia da vida”. 

O texto “debruça-se sobre o tema da comunicação. O que fica por dizer ou que não se tem coragem de proferir. O que estava guardado para dizer ou que nunca se dirá. As oportunidades surgem, a razão atua, entra em conflito com o coração e faz travar a língua. E é nesse momento que o comboio passa. E às vezes não volta”. 

Palavras no guião que hoje se descarrega à chegada com QR code, porta de entrada para um trabalho em que os adereços e o desenho de luz, brincando com as paredes que são aquelas e podiam ser quaisquer outras, são ainda assim o oposto de tecnologia: uma presença por instantes em três quotidianos, cada um tocante à sua maneira, histórias de homens sós há 200 anos, como seriam e são em qualquer lugar ou tempo. 

Philippe Araújo, João Ascenso e Maria Curado Ribeiro são os atores em palco, como que personagens que se desenhassem mentalmente ao ler as páginas de um livro de contos de Tchekov sob a luz trémula de um candeeiro numa noite de verão – compõem-se também eles à medida do acto, como quando nos entregamos à leitura e as figuras vão-se desenhando do texto lido.

Dão a alma ao cocheiro Iona, do conto Angústia, a Pavel Anndreievitch, um abastado ex-funcionário no Ministério das Comunicações e a sua mulher Natália Gavrilovna do conto A Minha Mulher e, por fim, à criadita Varka de Dormir, Dormir. 

Em todas as histórias, esse sinuoso caminho em que a humanidade e a desumanidade se encontram e desencontram em coisas mais ou menos banais. 

O cocheiro a quem morreu o filho e ninguém quer saber, e que carregado de dor e de solidão, estado ainda mais pesado, até diante de um animal seria mais humano que os pândegos que nunca sofreram. 

O homem abastado e o seu superior moralismo, que não parece saber que a “fome não é uma batata”, como a “morte não é uma batata” e se exibe diante da mulher que o odeia cada vez mais, tanto quanto se odeia a si. E por fim a menina de 13 anos e o medo enraizado de que os patrões lhe batam. 

Num tempo de rapidez e de ecrãs, é uma composição num lugar talvez inesperado mas que desacelera e convoca a mais leituras e a revisitar, já depois, os contos originais, apenas três dos mais de 500 escritos por Tchekhov, muitos com tradução para português. 

“Dá a impressão de que, se o peito de Iona estourasse e dele fluísse para fora aquela angústia, daria para inundar o mundo e, no entanto, não se pode vê-la. Conseguiu caber numa casca tão insignificante, que não se pode percebê-la mesmo de dia, com muita luz”, diz o observador perante o inconsolável Iona.

Voltarão todos a cena no final da semana.