Olho para as pessoas que se sentam à sombra das árvores da Doca da Ribeira das Naus, naquele espaço relvado que fica nas traseiras do Ministério da Marinha e agora tem um lago onde os patos se debatem com a invasão verde das algas sobre a água.
Há namorados a namorar as namoradas; há solitários que namoram ao telemóvel; há gente deitada que dorme a sono solto; e mais gente ainda, em grupos de estudantes de mochilas atiradas para o lado, desprezadas como os sapatos que tiraram para saborear o prazer de estarem descalços sobre a erva. Há muito que a acidez do divino Eça deixou de bater certo nesta Lisboa de novas eras. Lembram-se?
A Capital: nunca um escritor deu vida a uma personagem, Artur Corvelo, o Arturzinho, que depois tratasse tão mal, página a página, destruindo-lhe todos os sonhos, desfazendo-lhe a personalidade, tornando no alvo da chacota de todos os que se cruzaram na sua vida; e, finalmente, um novo-rico empobrecido outra vez pela ganância voraz dos que se diziam seus amigos. Não, o grande Eça não teve um pingo de piedade.
Desmanchou o Artur, que vinha lá da casa das tias, depois de ter apanhado o comboio para Lisboa na Estação de Ovar, como um taxidermista desfaz uma perdiz para a reconstruir apenas com ossos e palha por dentro. E depois, à medida que me aproximo do meu lugar de escrita vespertina, na Rua do Norte, canto esquerdo do Calcutá, também já não consigo encontrar verdade na sua frase fatídica: “Lisboa é o único ponto vivo desta fétida lesma que se escapa à beira do velho Atlântico sob o nome desacreditado de Portugal”.
O Portugal desacreditado diz-me pouco. Cada um acredita no que quiser. Há mais de 800 anos que andamos por aqui à espera de um futuro e ele veio sempre. Não faço ideia de que futuro nos espera, mas a lesma continuará, certamente, escapada à beira Atlântico por mais 800 anos. E por muito que nos doa, continuamos aqui. Ao sol. Cada um criando e destruindo as suas próprias personagens. Alguém tenha piedade de nós…